Memória | Licença poética 28/04/2023 - 12:24

O resgate de uma entrevista inédita concedida por Sérgio Rubens Sossélla a Cesar Bond — realizada no início da década de 1990, em Paranavaí (PR)

Vinicius Comoti
 

A noite nasce na conversa dos poetas, no conhaque na biblioteca, Cesar Bond e Sérgio Rubens Sossélla. A cumplicidade da amizade que se estende ao domínio da arte, a convergência das fronteiras entre as linguagens, a fumaça opaca dos cigarros desprega a memória do véu do tempo. A reciprocidade de Bond, mescla da intimidade poética com o ofício jornalístico, conspira com a poesia de Sossélla e seu carrossel de sonhos e símbolos, influências e o leitor menino, gavetas e solidão.

Uma ligeira aproximação das obras, o "homem tão chapéu" de Bond se transfigura no "cowboy" de Sossélla, que relatando suas "aventuras e desventuras" pelo interior do estado do Paraná, em nós, de rabo-de-cavalo, julgando a vida (1990 / 1991), se lembra do provérbio boliviano: "Em cima do meu cavalo, eu; acima de mim, o meu chapéu". Bond complementa com a "pequena pista para decifrar pessoas apenas ou tudo isso: chapéus".

O chapéu abriga a errância, o ordinário, o enigma, a morte. Na pintura do artista paranaense Zimmermann, La Traicion (Frida Khalo), de 1994, o chapéu é a base da vela fúnebre e assume o centro de um vazio cavernoso que se expande pela tela. E justamente desse extremo com a finitude é que a palavra poética, embebida na sua feminidade elementar, rompe a carnalização das coisas na "falsimilhança" do mundo. Uma outra oralidade, ritmo e expressão, que faz do poeta um "criador de espantos", lembrando de um verso de Sossélla, debruçado na infiltração da palavra e sua consequente procissão pelo labirinto dos sentidos.

É como "bruxo" que o escritor Jamil Snege define Sossélla em sua entrevista, onde as respostas são poemas e um gnomo vaga por toda a visita. Magia e confidência. Nesta dobra é que entra o cinema e sua projeção de imagem e som, instigando a montagem do poema, sua fisionomia e impureza, chegando Bond a chamar os poemas de Sossélla de "legendas", para o que "você nunca viu e nunca verá".

Para o cineasta e também poeta Sylvio Back, em seu "diálogo" com Sossélla, “por trás do poeta esconde-se um cinéfilo". Indagação que o autor argumenta com a lembrança das sessões no Cine Curitiba e os contornos da figura do "cowboy", que "encarna a coragem dos covardes, a força dos fracos, a revolta dos oprimidos, a consciência dos injustiçados". Cowboy e chapéus, a presença de uma ausência.

Mesmo Sossélla tendo publicado algumas centenas de livros, e Bond Ah, Esses Homens Tão Chapéus (1986), As Mulheres São Todas (1987) e Vente em Mim (2000), eles são de uma mesma natureza gráfica, edições caseiras, a economia dos meios conjugada com a invenção artesanal e a desmistificação do aparato editorial. Repercute em ambas as obras os reflexos da "geração mimeógrafo".

A introdução de Bond foi editada, pois o trecho é de assunto familiar, e não acrescenta em nada ao verdadeiro intuito da publicação. Uma nota foi incorporada ao depoimento, com o fragmento em que Sossélla comenta de A Nova Holanda, sua prosa de 1988, para uma melhor resolução do pensamento do autor. Se nos apegarmos ao poema citado no final da entrevista, "a melhor / licença poética / é o estupro", do livro .22, temos como base o ano de 1991, o que pode nos informar a possível data da conversa, já que esse dado foi suprimido na apresentação. Nesse mesmo livro, .22, nos deparamos com o seguinte comentário de Bond na contracapa: "Drummond (que tantas vezes advertiu para a originalidade do Sossélla) sempre convidou o leitor a passear com ele, pelas ruas de suas memórias, sua estética poética, seus conflitos amorosos e suas "pequenas e mineiras visões de mundo". O Sossélla não tem a mesma paciência. Com ele é: leia, feche os olhos e vire-se. O responsável pelas imagens, a partir de agora, é só você. A minha parte eu já fiz e não devolvo o ingresso."

A descoberta da conversa entre Cesar Bond e Sérgio Rubens Sossélla é fruto de uma arqueologia da poesia paranaense da qual agora o leitor tem a oportunidade de se prover e acalentar. A minha parte eu já fiz e não devolvo o regresso.

 


 

Com o poeta e amigo

 

Eu estava em Paranavaí, cidade do Norte do Paraná, na casa do poeta e amigo Sérgio Rubens Sossélla.

(...)

Mas, voltando, são 11 horas da noite da véspera deste veredito e eu e o poeta Sossélla estamos na enorme biblioteca de sua casa, com 22 mil livros. Sossélla apresenta um conhaque e uma garrafa térmica de chá. Separa duas carteiras de cigarro e aí começa a nossa conversa.

 

Cesar Bond: Como é que você consegue escrever tanto? Você já tem o quê, uns 250 livros prontos?

Sérgio Rubens Sossélla: Por incrível que pareça, os meus poemas, 70% deles nascem prontos. Tenho um insight, e a coisa me vem pronta, fruto de sonhos ou de transes. Me vem pronto no sentido de que eu tenho o fundo deles, eu tenho o esqueleto desses poemas. Então, eu simplesmente "carnalizo" a coisa toda. Aí vem o ato da leitura, porque eu datilografo os meus poemas, faço uma segunda leitura e dou um banho de gaveta. Ficam às vezes um ano, dois anos os poemas na gaveta. Quando eu vou fazer a releitura desse material poético, eu enxugo, burilo, substituo um verbo por outro, procuro sintetizar ao máximo.

 

Você chega a se surpreender ao abrir a gaveta e encontrar aquilo escrito?

Exatamente, às vezes os meus poemas me parecem seres estranhos que eu fechei na gaveta. Quando eu abro essa gaveta me dou conta de que estou a partir daí convivendo com essas criaturas.

 

Por que você acha interessante mantê-los na gaveta? É pra manter uma distância?

Em parte, sim. Existe um segundo aspecto disso aí. A impossibilidade de eu publicar esse material, à medida que eu os confecciono. Eu tenho atualmente cerca de 500 poemas prontos e não posso publicar esse material todo. Eles vão ficando. Eu abro pastas, vou separando por assunto poético. E continuo escrevendo, porque tenho também a meta de fazer a publicação mínima de dez livros por ano. Como tenho feito.

 

Qual o nível que você exige dos teus poemas?

É o poema que tenha o mínimo de palavras e o máximo de impacto, de expressividade. Um poema como se fosse uma porrada. Eu sempre pensei assim, um poema como um cartaz: a maior objetividade possível e/ou a maior subjetividade possível.

 

Essa ideia da síntese foi alguma coisa que você resgatou de relações pessoais? Porque isso me parece muito importante.

Exatamente, você foi no cerne da coisa. Foi através do Milton Carneiro, através da poesia do Milton Carneiro. Ele era um conversador emérito, ele falava horas seguidas sem você se cansar. E era de uma poesia enxuta, seca, contida, sintética. Foi lendo a poesia de Milton Carneiro que eu comecei a escrever poesia.

 

Você acha que deve a ele a sua visão?

Essa é a minha raiz, essa é a visão que eu tenho da poesia hoje. Depois eu me liguei a outros poetas, como, por exemplo, o Manuel Bandeira. O Manuel Bandeira é marcante, está em mim a figura imensa do Manuel Bandeira. Ernani Reichman também. Como eu escrevia crítica literária, e na época eu estava lendo o Fialho de Almeida, ele me deu uma cortada enorme. Ele disse: “Isso tudo é uma porcariada que você está escrevendo. É uma aparente erudição, você quer chamar atenção pelas citações. Mas procure podar isso e não ser a semelhança de alguém, e sim ser a semelhança de você próprio, o velho Platão já dizia isso. No mínimo seja um sósia de você mesmo”.

 

Por falar em síntese e forma, você tem buscado sempre referenciais do cinema. Como o cinema entra em você?

O cinema entra pelos olhos do leitor menino, desde muito pequeno eu curto cinema. Ele aparece através de minha mãe. Minha mãe, todos os dias ela saía de casa e ia à matinê. E quando ela voltava me contava os filmes. Muitos anos depois, já adolescente, eu fui assistir no Cine Curitiba aos filmes que ela me narrava. E fui ver que os filmes não eram bem assim como ela contava. Os filmes eram bem diferentes em inúmeras cenas. Ela reelaborava essas cenas, ela "magicizava" a coisa toda que ela via, inventava. Então ela via o filme pelos olhos próprios. Cenas que deveriam existir ela criava, cenas que não existiam ela criava, cenas existentes que ela gostasse, permaneciam.

 

Então existe o cinema como sonho?

Aí existe o cinema e a síntese. Porque o sonho é a síntese. No sonho não existe um fotograma, um quadrinho, uma cena a mais. Não existe um adjetivo impropriado, é sempre exato, é sempre objetivo.

 

Existe com perfeição absoluta?

Com perfeição absoluta. Você se lembra do fragmento1 de A Nova Holanda que se refere a uma mulher... Estou no fundo do mar, ouvindo a pressão marítima, vendo aquele verde das águas, e surge uma mulher e me entrega um cavalo em gesso. Sonho, foi sonho. Eu poderia ou partir para poesia e montar o poema em cima disso, desse fundo, desse esqueleto, para "carnalizar" isso, ou me transportar para a prosa de ficção. Achei que mais interessante seria jogar isso aí para o caminho da prosa. Então é assim, repetindo exatamente o que acontecera no sonho. Esse é o meu caminho poético.

 

O centauro de gesso é real? A mulher é real? O mar é real? O Sossélla é real?

Em alguns poemas, sim. Em outros, em razão desses transes mediúnicos.

 

Por que esse isolamento, esse recolhimento? Você alimenta esse isolamento ou ele é que te alimenta?

Somente me beneficia o isolamento. Embora, evidentemente, eu me ressinta de contatos como com você, com o Guinski, com os amigos todos, com os escritores, com os artistas de um modo geral, isso me causa uma restrição na minha maneira de ser. Mas tem outro lado que me beneficia, porque isso aí já é uma visão de mundo que eu tenho. Desde antes de escrever o meu primeiro livro eu já vivia solitariamente aqui em Curitiba. Vivendo no interior, na minha experiência de magistrado, eu passei a notar que as 24 horas duram 48 horas na província.

 

É outra velocidade?

Sempre me alimentei de frases. Eu me agarro nas frases para suportar a minha solidão. Tem uma frase do Ibsen que diz: "O homem forte é o que fica só".

 

É o maior desafio que a pessoa pode ter.

Exato, ficar só e resistir às intempéries todas da vida. E olhando a figura imensa de Ernani Reichman, que viveu só em Curitiba, o tempo todo, era chamado de bruxo quando ele era vivo. Ou você faz a tua obra ou você não se realiza. Muitas vezes você não se sente realizado embora esteja fazendo a sua obra. Ela não acontece da maneira que você quer que ela aconteça.

 

Agora voltando à questão da veracidade, eu leio o Borges com certo receio. Por mais que ele se mostre verdadeiro, parece que ele está sempre escondendo alguma coisa. Isso existe também nos teus textos. O que você diz é verossímil, mas não é verdadeiro. Existe uma carga de mentira dentro do poeta?

Tem uma palavra de Guimarães Rosa, um neologismo, que vem em cima disso aí, a falsimilhança. Existe sempre uma falsimilhança.

 

Para chegar a isso, o domínio da síntese é o principal?

Sim, o domínio da síntese.

 

Todos os poetas elegem seus símbolos. Você reconhece alguns símbolos na sua poesia?

Na minha poesia e na minha prosa de ficção existe o pré-domínio de alguns valores simbólicos que são fundamentais, como por exemplo o mar, a terra e o céu. O mar, matriz comum, a placenta nossa, me faz retornar, me faz regressar ao útero; a terra, do mesmo modo. Só que a regressão ao mar, com muito medo. O mar me causa pavor. E a regressão à terra, sem medo.

 

A associação que você faz com o centauro, talvez tenha assim uma figura pela qual você se apaixonou?

Sim. O centauro entrou no A Nova Holanda como um ser: minha avó paterna tenta cavalgar o centauro, mas na verdade é ela que tropeça e cai e cai e tropeça. O centauro está na dele, tranquilo, transportando. O centauro entra como, digamos assim, o lírio em si. Vi minha avó paterna enlutada e não a minha mãe.

 

O lúdico.

O lúdico. Uma vírgula que você altere mais tarde, transportando de um lugar para outro, um adjetivo que você suprime, um verbo que você acrescente, sempre atendendo à síntese, é a mulher que se oferece ou a mulher que se recusa. Então você atinge o prazer na verdade, encontrando o poema como você o deixou, naquela qualidade que você exige, ou encontrando o poema que se recusa às mudanças que você queira.

 

E a palavra é feminina.

Feminina é a palavra mesmo. Eu tenho uma anotação, que transformei num poema, pensando acerca da licença poética. Tenho dois poemas assim. Um que diz: “Com licença, poética...” E o outro que diz que a melhor licença poética é o estupro. Sem pedir licença, a licença poética, você tem que estuprar a palavra, infiltrar nela.

 

 

 

1 A passagem citada e depois novamente comentada por Sossélla de A Nova Holanda:” Encontro minha avó paterna enlutada. Ela cavalga, aos prantos, gemendo e pedindo perdão. O animal que monta é de um negrume inteiro. Ela cai. Corro para ajudá-la, e já está sobre o cavalo. E vai ao chão, e sobe, até a próxima queda. Nada posso fazer em seu auxílio. Vovó é prisioneira dessa situação, cavalo e cavaleiro, tropicantes. Espécie monstruosa de centauro, se derrubando e ele próprio se galopando”.

 

Vinicius Comoti nasceu em São Paulo e vive em Curitiba. É cineasta, escritor, jornalista e doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Rabicó de Puto (2019), Bagarocas (2020) e O Meu Amor é Um Picles Passado (2022) são alguns dos livros que publicou.