ESPECIAL | Roda com Ledusha 29/09/2023 - 12:20

Entrevista especial com a autora feita por outros poetas e escritores

 

Ledusha faz um percurso literário intrigante, avessa a rótulos e formatos prontos sobre classificações poéticas. Transita pela poesia marginal, pela música, pelo cinema. Marcada pela irreverência e humor, por vezes cáustico, todavia sempre elegante. Primazia de quem sabe seu ofício. Revela-se à margem das classificações (termo antagônico ao seu próprio temperamento, considerada ausente) e se diz não pertencente a “nenhum clube oficial”. Talvez por este motivo não seja tão conhecida e nem tão comentada nos meios literários, embora sua obra seja referência tanto para autores/as contemporâneos a Ledusha como para a geração atual.

 

Olhando as ilhas

 

A primeira nuvem fosca nos olhos

A primeira alegria entalhada no vácuo

O namorado esteta que chorava à toa

O atlas que homem nenhum me deu

 

Essa condição literária marca Ledusha como uma poeta sempre em transformação, além dos clichês literários, o que a torna, de modo não linear — como sua escrita — uma artista camaleônica, pronta a embarcar em naus sem bússola, a explorar continentes desconhecidos e ressurgir em outras expressões artísticas.

 

Posto 9

 

Meu mar de mosaicos rabisca

movimentos mais e mais ariscos

Sereia de ouvido evito a sombra

que despenteia meus tontos desejos

e entre bocejos e lambidas da brisa

escancaro os dentes para o Atlântico

 

O Cândido propôs a escritoras/es que enviassem perguntas a Ledusha e compuseram um retrato atual sobre sua trajetória, suas opiniões e sua obra, que permanecem em constante movimento, como ondas que nunca se formam do mesmo jeito e nunca batem no mesmo lugar. Confira essa multientrevista com a autora feita por Alice Sant’Anna, Francisco Mallmann, Joca Reiners Terron, Natasha Felix e Mariano Marovatto.

 

rubber soul

 

agora que envelheço e os músculos da face

ameaçam meu talento

para o assobio

aflora tal percepção do ocaso

que assisto siderada ao fim do fôlego de uma gota

na brancura da pia como àquela ária

com que a Callas suprimiu o meu

que mal conhece a ópera

já tive medo de padres e sinos

nunca de tempestades

riso de olhos asas de lágrimas pernas de corisco

Bandeira marcado à brasa era toda ouvidos

rabiscos construíram também o que não sou

 

agora que envelheço

(falo de dentro como quem olha de fora)

meu desconforto isento de recato

estende-se onde bem quer

 

 

Joca Reiners Terron: Seria tão legal ver sua poesia reunida e me pergunto o porquê disso ainda não existir. Aliás, existe resposta para essa lacuna?

Eu adoraria! Também não sei… minha produção é exígua, irregular, às vezes inculta, às vezes bela.


Joca Reiners Terron: Bissexta é nome de poeta ou é palavrão?

Palavrão nada, Joca – Bissexta é o meu sobrenome!

 

Alice Sant’Anna: Você acha que a geração marginal tem uma unidade ou cada poeta é muito diferente entre si?

Acho que há certa unidade, talvez mais ligada a um modelo de comportamento, na época, do que a um estilo de escrita. Já entre os poetas a diversidade é grande. Veja, por exemplo, Ana Cristina, Chico Alvim, Chacal, Waly, para citar os que mais gosto. Cada um a seu modo. Mas é importante dizer, como disse em outras entrevistas: nunca fiz parte, realmente, do clube oficial. Mantive-me à margem da poesia marginal. Só namorei alguns poetas.

 

Alice Sant’Anna: Na sua opinião, qual o impacto da poesia dos anos 1970 nas gerações que vieram depois?

A geração que veio logo em seguida colheu frutos mais doces, teve maior liberdade (muitas vezes confundida com o “todo mundo é poeta”, que já rolava, e os que pegaram carona, pura esculhambação). Outro dado importante é que a visão dos editores se ampliou, e a publicação de poesia tornou-se mais frequente. E a ditadura militar se escafedeu em 85!

 

Francisco Mallmann: Querida Ledusha, qual sua memória mais antiga com a poesia?

Chico querido, aprendi a ler muito cedo e vivia xeretando na biblioteca dos meus pais, li muita coisa misturada… minha mãe sempre recitava um poema, tristíssimo, do Guilherme de Almeida, “Saudade”: “mas aqui dentro quanta bruma / quanta folha caindo uma por uma / dentro da vida de quem vive só”. Eu não aguentava ouvir até o fim, saía correndo para chorar escondida, tinha vergonha. E me lembro de dois poemas do Bandeira: “Irene no céu” e “Andorinha, andorinha” – devia ter uns 5 anos quando li, e fiquei maravilhada.

 

Francisco Mallmann: Para você, o que é o humor?

É o que nunca deve faltar – para Cortázar, até nos velórios. Não confundir com chatos contando piadas preconceituosas uma atrás da outra. Humor sem inteligência e irreverência até o Didi Mocó sabia que não funcionava.

Poesia sem um fiapinho de humor fica difícil. Não significa ler ou escrever às gargalhadas, obviamente.

Você fisgou uma maneira preciosa de lidar com o humor no seu espetacular Tudo o que Leva Consigo um Nome.

 

Natasha Felix: Invariavelmente colocando o lançamento do Risco no Disco como uma situação marcante na sua trajetória, como era, na década de 1980, a sua relação com a ideia de ser poeta? E hoje, como esse lugar se configura na sua vida?

Sinceramente, na época eu não pensava nisso. Ia fazendo. Fui daquelas crianças que instintivamente têm vários talentos, e acho que isso mais me atrapalhou do que ajudou. Me faltou mais orientação, nesse sentido. Só tinha certeza de que faria algo ligado à arte. Então, num (in) determinado momento, essa sensibilidade exacerbada se concentrou na poesia e chegou ao mundo via versos.

Hoje, continuo não pensando muito nisso, apenas trabalho com mais cuidado, elaboração, vamos dizer assim. Mas nem de longe sou uma intelectual pensante da poesia. Inclusive de vez em quando o jeitão anos 1970 e 1980 dá as caras para um chopinho.

Agora, aos 70 anos, tenho recebido várias homenagens e manifestações de reconhecimento. Com a maturidade, a compreensão das coisas aumenta, a pessoa torna-se mais consciente do seu estar no mundo, o que para mim ajuda a configurar mais nitidamente este lugar.

 

Mariano Marovatto: Queria que você explicasse mais demoradamente a sua relação de amor e admiração pelo Tom Jobim. O que na obra dele é o que te pega e te puxa e te leva?

Minha professora de piano achou melhor me dispensar do conservatório; disse que eu teria ouvido quase absoluto e não havia jeito de prender minha atenção nos métodos.

Ia muito ao cinema (matinês) com mamãe, e ela contava que chegando em casa eu corria para o piano e tocava a música do filme. Sendo assim, Tom não passaria por mim despercebido, com sua música deslumbrante. “Tirei” “Eu não existo sem você” (Tom e Vinícius, 1958), a primeira dele que lembro. E a partir daí me apaixonei por sua música, muito pela beleza dele, também – era novinha mas não era cega, né? De certa forma tinha imensa gratidão, mesmo que inconscientemente, pela alegria que sua música me causava, trazendo com ela uma identificação imensa. Fui uma criança triste, desprovida da sensação de pertencimento, como ainda sou, mas poucos notavam, porque era muito moleca e engraçada, também. A partir daí esse amor, admiração e gratidão só cresceram.

Quando me mudei para o Rio, pude conhecê-lo. Estar várias vezes perto do Brasileiro Soberano foi a glória. Tinha amigos que frequentavam sua roda, amigos do seu filho Paulinho, e não foi difícil. Pude constatar que ele era uma pessoa fascinante como imaginava, como se já o conhecesse. Nessa época, entendi que o amor que lhe tinha não era do tipo paixão homem-mulher — não sei o nome disso, é meio mágico. Lindo e genuíno.