ESPECIAL NICOLAU | Bala Zequinha 29/09/2023 - 11:54

por Valêncio Xavier

 

Surgidas no fim da década de 20, as figurinhas das balas Zequinha foram, por 40 anos, sinônimo de diversão e alegria para a gurizada curitibana. Mexeu nos costumes, criou gírias e jogos e incorporou no inconsciente coletivo de Curitiba a folclórica figura do Zequinha. A pesquisa Desembrulhando as Balas Zequinha, que serviu de base para este texto de Valêncio Xavier — exclusivo para Nicolau — foi publicada em 74 e é, até hoje, o primeiro e único estudo “sério” sobre as figurinhas de coleção.

Em 1928, Francisco Sobânia, um dos quatro irmãos proprietários da fábrica de balas A Brandida, foi para São Paulo especializar-se na fabricação de chocolates. Na capital paulista, Francisco Sobânia conheceu as balas Piolim, que traziam figurinhas com desenhos do famoso palhaço para serem colecionadas e trocadas por prêmios, uma vez completada a coleção.

Gostou da ideia e, voltando a Curitiba, procurou a Impressora Paranaense, para quem encomendou o desenho e a impressão da primeira série das balas Zequinha, figurinhas no formato 5x7 centímetros. Lançadas em 1929, com 30 figurinhas, foram logo aumentadas para 50, mais tarde para 100 e, finalmente, para 200. Quem colecionasse a série completa poderia trocá-la por bolas de futebol, bicicletas, brinquedos e outros prêmios menores. Nunca foi lançado um álbum. A garotada colava sua coleção em cadernos, ou se utilizava das carteirinhas: dois pedaços de papelão presos por três tiras de cadarços que permitiam passá-las de um lado ao outro, miraculosamente, diante dos olhos embasbacados de quem não conhecia o truque.

No início da década de 40, os Irmãos Sobânia venderam a patente das balas Zequinha para outra firma, mudando de dono outras vezes, até 1969. Em 1974, houve novo lançamento, sem muito sucesso. Mas durante 40 anos, as figurinhas das balas Zequinha proporcionaram divertimento para a garotada curitibana e se constituíram num importante meio de comunicação popular, conservando costumes, fixando tipos, criando modismos, estabelecendo normas de linguagem, sugerindo jogos e incorporando uma simpática e louquíssima figura ao folclore urbano de Curitiba.

 

Figurinha “Difícil”

Os desenhistas da Impressora Paranaense, sob a chefia de Alberto Tile, parecem ter feito as primeiras figurinhas copiando os modelos das balas Piolim, e obedecendo às indicações dos Irmãos Sobânia. Mais tarde, com o aumento do número de figurinhas e com a pressa de lançá-las no mercado, os desenhistas trabalharam com mais liberdade. Senão, como explicar a trágica série do número 130 ao 134: Zequinha Viúvo, Machucado, Perneta, Raquítico e Suicida?

Hoje as crianças compram figurinhas, compram o álbum e nada ganham por colecioná-las, nem as balas existem mais para adocicar os gastos. Antes, as figurinhas eram um incentivo para aumentar as vendas das balas. No caso das balas Zequinha, houve épocas em que a procura era tão grande que os membros da família Sobânia tinham que ajudar os operários a enrolá-las. Apesar da lisura na distribuição de prêmios havia as “figurinhas difíceis” (expressão que se incorporou ao nosso idioma como sinônimo de pessoa arredia). Eram figurinhas de tiragem menor do que a normal, e quem possuísse uma podia trocá-la por até 20 ou mais figurinhas fáceis para “casar” nos jogos do bafo ou do tique. No Jogo do bafo, cada adversário colocava suas figurinhas viradas de costas no chão. Aquele que, batendo nelas com a palma da mão, conseguisse desvirá-las, ganhava-as. Às vezes, uma discreta cuspidinha na palma da mão, sem que o adversário visse, ajudava na desvirada.

O jogo do tique consistia em “casar” as figurinhas contra a parede ou muro. Jogava-se moeda ou chapinha que batiam na parede, fazendo tabela, e caiam no chão; a que chegasse mais perto das figurinhas casadas, ganhava-as.

 

Minidicionário Zequinha

Nas balas Zequinha vamos encontrar peculiaridades do linguajar curitibano, algumas desaparecidas, outras que se conservam até hoje. Salteado (98) por assaltado. Hoteleiro (182), significando não o proprietário, mas o empregado do hotel. Bomba (95), que ainda hoje se usa para designar posto de gasolina. Vitrola (87), quando a marca registrada da RCA Victor ainda não fora substituída por toca-disco, ou radiola. Auto-Mecânico (58), quando ainda se fazia a distinção entre os mecânicos de automóveis dos outros. Aventurando (52), por vagabundeando ou flanando. Chim (38), a linda palavra que hoje não se usa mais para chinês. Pirata (28), por conquistador (paquerador). Quando pirata, em seu sentido real de flibusteiro, está na figurinha 38. Como Curitiba conserva ainda hoje alguma coisa de sua linguagem típica — foco, por lâmpada elétrica; chavear, por fechar à chave — as legendas das balas Zequinha formam um curioso dicionário curitibano-português que pode servir de base para estudo mais aprofundado.

As várias situações e profissões exercidas pelo personagem das figurinhas fizeram com que o nome Zequinha ficasse como sinônimo chistoso de indivíduo metido a fazer de tudo. Ainda hoje se diz em Curitiba: “Esse é um Zequinha-faz-tudo!” Ou mesmo: “Fulano é um balazequinha!”

Zequinha exerceu as mais variadas profissões: pastoreava seus carneiros nos campos que ainda existiam na Curitiba dos anos 20 (7). Peixeiro (9), Salchicheiro (15), profissão desaparecida que, em Curitiba, significa pessoa que faz as coisas malfeitas. Ferreiro (104), Doceiro (146), Pasteleiro (89) e até Motorneiro (162) dos bondes que faziam ponto final na praça Tiradentes.

Cavou sua Trincheira (180) e foi Sentinela (190) na Revolução (39), e com a vitória dos gaúchos fez questão de ir ao Rio de Janeiro (81) abraçar uma figura que alguns dizem ser Getúlio, difícil de identificar no canhestro desenho. Mas na verdade Zequinha se revelou um auténtico Anarchista (23).

Individuo normal, Zequinha Com o Violão (135) fazia serenata para as moças, até que foi por uma Visitado (164) e com ela Dançando (118) ficou Noivo (67), aderiu à vida de Casado (117). Marido Satisfeito (183) era muito Amoroso (121), até que ficou Viúvo (130).

Talvez por saudade da mulher é que Zequinha andava sempre embriagado (18). caído ao chão, agarrado a um poste, garrafa de cachaça ao lado. Sem dinheiro para sustentar o vício, Zequinha foi ser Ladrão (157), Gatuno (53), arrombador de cofres, quando ainda não se tinha o costume de assaltar os bancos em dia claro; serviu até de Lampeão (3) quando os cangaceiros assustavam o Brasil, mas isso durou pouco porque o cinema falado popularizou os ‘bandidos norte-americanos e Zequinha virou Gangster (177), mesmo sem entender direito esta profissão, pois a única coisa que fez nela foi raptar uma mulher.

Mas não era mau sujeito. A prova é que no Natal sempre servia de Papai Noel (99), primeiro com as roupas, barrete e pinheirinho de modelo alemão que a Casa Amhoff importava e expunha em suas vitrines desde a década de 10, e depois (na série de Gabardo e Massocheto) com o modelo mais americanizado que estamos acostumados.

Nem tudo foram rosas na vida de Zequinha: Na Praia (48), onde os curitibanos iam em temporada levando de comida a criados, sempre com medo do medo de maleita, ele ia quase afogando-se (123). De tão Raquítico (133), ficou muito Doente (103). Mendigo (136), teve um Machucado (131) que o deixou Perneta (132).

Nervoso (49), ia Suicidando-se (134), mas não deu certo e acabou Enforcado (137), para ressuscitar na figurinha seguinte e ir Arrumando-se (138) para enfrentar a vida.

Olhando-se a figurinha Zequinha Pensando (196), preocupado, cabeça triste, apoiada nas mãos, indiferente 20 tique-taque do relógio na parede, acabamos por nos perguntar: “Afinal que espécie de gente era esse Zequinha?” Um Louco (174)? Um curitibano típico? Não sabemos. Preferimos nos lembrar dele Aventurando (52), numa imagem surrealista, sentado num tronco com uma cartola, de onde sai um galho no qual se assenta um pássaro que vai entrar pelo oco da cartola e fazer seu ninho nos pensamentos de Zequinha.

Ou mesmo tentar compreender Zequinha pela maneira feliz com que ele olha o mundo quando está sentado num enorme Bumbo (155), parecendo dizer que nesta vidinha curitibana dos anos 30 há “muito trabalho por nada”.

De toda maneira, são perguntas que nunca saberemos responder, pois Zequinha já nos deixou. Ele está lá onde chegou muito antes dos americanos, de nós: na Lua (127), uma “lua de papel” num litográfico céu cheio de estrelas, tão toscamente desenhado, falso como um menino que, “disfarçado”, cospe na mão no jogo de “bafo”, mas é tão real quanto nossos sonhos.

 

Valêncio Xavier é autor de Curitiba, de nós (FCC, 1975), Mez da Grippe (FCC, 1981), Maciste no inferno (Criar Ecições, 1963), O Minotauro (Logos. 1985). A propósito de figurinhas, com Poty (Studio Krieger, 1986), O mistério da prostituta japonesa & Mini-Nashi-Oichi (Módulo 3, 1996).