ESPECIAL | Literatura de intimidades 26/04/2024 - 14:23

Em todas as artes, o kitsch é fenômeno, e na escrita faz elo com a literatura e o sentimentalismo

 

Lucas Daniel

 

O pisca-pisca nas janelas, a árvore com enfeites no canto da sala, as guirlandas penduradas pela casa e a ceia posta à mesa marcam a data no fim de ano. Nas últimas 364 noites, as casas nunca estiveram tão kitsch. As crianças abrem os presentes do Noel verdadeiramente envolvidas, enquanto os pais, que sabem que o bom velhinho não existe, entregam cartões decorados com frases clichês e ilustrações de bonecos de neve. Os adultos lacrimejam os olhos, não apenas pelo espírito do Natal, mas sim pela projeção sentimental que todo aquele compilado natalino (incluindo a emoção dos pequenos) oferece a eles. É quase inevitável, como se fosse uma necessidade humana consumir esses sentimentos. E a literatura e as outras artes também não nos oferecem isso de bandeja? 

Nas disciplinas que envolvem o estudo da história da arte, o kitsch aparece como elemento essencial para entender a relação do humano com o mundo, no entanto, a origem etimológica é incerta. Alguns acadêmicos e filósofos, como Gianni Carchia e Paolo D'Angelo, atribuem o termo ao verbo kitschen, que era de uso comum na Alemanha e na Áustria no fim do século XIX e significava, na oralidade, “fazer móveis novos com velhos”. “Outra versão difundida é que a palavra vem do inglês ‘sketch’, usado por anglo-saxões nos comércios de Munique para desvalorizar obras e comprá-las por preços mais baratos”, explica Gerson Trombetta, professor e pesquisador de Estética, Filosofia da Arte e Estudos Literários na Universidade de Passo Fundo (UPF).

O kitsch tem uma especificidade estética caracterizada por um desvio do gosto daquilo que é, em geral, 4 Em todas as artes, o kitsch é fenômeno, e na escrita faz elo com a literatura e o sentimentalismo considerado belo (por mais subjetivo que esse conceito seja) na cultura. Você não pode comprar o quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, e talvez nunca visite o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (MALBA), que guarda sua obra, mas você pode comprar um par de meias com uma ilustração que reproduz a arte original. É uma representação da representação, um objeto que, mesmo na inocência de não querer substituir a famosa pintura em óleo sobre tela, pode ser tão sentimental e útil quanto, legitimado pela reprodução técnica. 

“O kitsch é marcado pelo princípio da quantidade e um ‘mau gosto’ afirmado. É o pinguim de cozinha, são os gnomos espalhados no jardim, a estatueta de um personagem de desenho animado, ou ainda, a coleção de ímãs de viagem expostos na porta da geladeira”, exemplifica Trombetta. No Brasil, um dos símbolos desse conceito é a jarra de abacaxi, objeto que ficou popular ao aparecer na série de televisão “A Grande Família ", produzida e exibida pela TV Globo entre os anos 2001 e 2014. O professor ainda complementa: “O elo que nos conecta com esses objetos é sentimentalista. Ninguém observa o filtro de barro e diz ‘Nossa, que obra sublime’, mas ao mesmo tempo, olham aquele objeto e pensam ‘eu gosto de ter isso no meu balcão’. Um laço afetivo pelo sentimento que isso traz”.

 

Pinguim kitsch
O pinguim de geladeira é um dos tradicionais itens decorativos no Brasil e é um dos símbolo do conceito kitsch. Foto: Foto: Thaise Severo / Acervo.

 

 

Projeções sentimentais 

Apesar de a conceituação do termo não ser clara, afinal, em muitos casos, trata-se de noções subjetivas, é fácil identificar objetos e ambientes kitsch. Mas nem todas as produções se apegam à composição pela característica de uma estética visual. A arte literária, por exemplo, se vale muito mais das potências sonoras, sintáticas e semânticas. No entanto, como as outras artes, a literatura também lida com desejos, sentimentos, necessidades, inquietações e impulsos — o que Gerson chama de “assuntos universais”. Surge, então, uma conexão entre o texto, a emoção genuína que ele suscita e a resposta [o kitsch] falsa, emocional e superficial projetada do enredo ao leitor. “Assim, o kitsch é o cocô do cavalo do bandido”, diz Trombetta. 

Clement Greenberg, um influente crítico de arte visual americano do século XX, polarizou a produção de arte, posicionando-a ou na vanguarda do desenvolvimento artístico ou no kitsch, com aquilo que sobra na beirada. O professor da UPF ressalta que Greenberg não é o único, já que existe uma rede de críticos contra o sentimentalismo: “Isso é um horror para a academia. Sentimentos fofos parecem ser de segunda ordem, de uma categoria inferior. Daí o preconceito, porque é como se fossem invasores da nossa consciência estética”, explica. No entanto, para ele, condenar incessantemente o sentimentalismo é, em si mesmo, nada mais que sentimental. Em outras palavras, também é kitsch.

 

 

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Gerson Trombetta é doutor em Filosofia e pesquisador de Estética, Filosofia da Arte e Estudos Literários na Universidade de Passo Fundo. Foto: Acervo pessoal/Gerson Trombetta.

 

 
Na literatura esse termo não é um gênero e sim um elemento. Ele prioriza e estimula o lado emocional, de forma quase hipnotizante. Também, os escritores de livros de entretenimento não fazem, em geral, tanto uso dos recursos retóricos, resultando em linguagens mais simples. É onde surge a birra da academia com os escritores, que separam fronteiras entre livros que estimulam o racional e o emocional. “O artista de verdade não tem problema nenhum com falsas dicotomias como alta e baixa cultura, erudição versus entretenimento, isso é um problema idiota criado por acadêmicos e universitários sem imaginação”, afirma Ronaldo Bressane, que é escritor, tradutor, jornalista e professor de escrita criativa, autor de títulos como Escalpo (2017), seu romance mais recente.

Como elemento, o kitsch pode ser uma ferramenta de reconfiguração da escrita, mas isso só é possível por conta das transformações promovidas pela literatura contemporânea na recepção do leitor. Trombetta utiliza em seu artigo “Literatura, sentimentalismo e kitsch”, publicado em 2020 pela Revista Desenredo, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF a dissertação de mestrado de Arnaldo Franco Junior, “O kitsch na obra de Clarice Lispector”, defendida em 1993, para exemplificar como a escritora passou a incorporar o elemento nas suas obras depois de A Paixão Segundo G.H. (1964). Escolhendo A Hora da Estrela, de 1977, ele expõe como a trama se mantém cheia de palavras com “conotação melodramática”. Inclui a própria construção da personagem Macabéa, no ideal feminino de Marilyn Monroe, com um final infeliz “que caracteriza a perspectiva crítica com que a autora utiliza o melodrama e o sentimentalismo”.

Gerson cita Clarice apenas como um exemplo de como o kitsch não é, em si, um problema, já que, enquanto elemento, ele também pode trazer ambiguidade e complexidade na literatura. O pesquisador argumenta: “Apesar de ter textos que poderiam facilmente estar em uma estante de livros filosóficos, ela flerta com elementos que são completamente sentimentalistas, que nós não chamaríamos de grande literatura”. Em A Hora da Estrela (1977), Lispector obriga o leitor a redimensionar o papel da cultura de massa nas sociedades globalizadas ao não prometer a redenção [utópica] da personagem oprimida.

A dissertação de Franco Junior ressalta que Clarice, nessa segunda fase, após 1964, não insere elementos sentimentalistas nos textos sem motivo, mas sim porque quer transgredir a rotulação crítica da época. Além disso, ela passa a misturar textos destinados à publicação de livros e os destinados à imprensa (o que não gostava de fazer), ao ter que agradar um público leitor assinando crônicas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. Por vezes, isso gerava conflitos na escrita da autora, que não deixava de ironizar o clichê e o mau gosto dos leitores; o sublime versus banal passa a se traduzir em o sublime versus kitsch

 

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Ronaldo Bressane, autor de Escalpo (2017), Sandiliche (2014) e Mnemomáquina (2014). Foto: Divulgação.

 

 

Anos depois, frases da escritora se tornaram meméticas, retiradas do contexto original com uso indiscriminado do copypaste. “Não acho Clarice Lispector kitsch, mas o uso que se faz de suas frases é, assim como das frases de Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Cazuza, Clarice Falcão ou Drauzio Varella, porque a comunicação de massa é necessariamente farsesca e fascista. A comunicação de massa precisa da redundância, do esvaziamento de sentido, da fragmentação do conhecimento, do monopólio da emoção e da ausência do contraditório”, contrapõe Bressane.

 

Originalidade na literatura contemporânea

Uma das grandes críticas a esse elemento do mau gosto é a acusação de que ele, ao contrário do modernismo, despiu-se de toda pureza e originalidade.  Por certo tempo, e com resquícios, o lema era: não importa a arte, desde que não seja kitsch. Ser inovador e criativo é o que distinguia a “alta” cultura do reino dos fingimentos, visto sempre como fruto da cultura popular. Hoje, na literatura, um dos desafios de todo escritor é ser original e produzir algo tão diferente que parece ter sido gerado a partir de uma nova ideia. Mas afinal, em que isso implica?

Para Ronaldo, primeiro é necessário desviar a ideia de que o sucesso comercial de uma obra anula sua criatividade e originalidade artística: “Antes de Mano Brown, alguém já havia transformado a vida de um presidiário em uma canção quilométrica?”, questiona. Ele exemplifica ainda com o sucesso da saga Harry Potter, caso o critério seja apenas não ser uma cópia do já estabelecido. Vanessa Passos, que é doutora em literatura, professora de escrita criativa e autora do premiado A Filha Primitiva (2021), também questiona: “Quantos livros clássicos já não foram best-seller da sua época? Nós podemos citar, por exemplo, Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, que foi um livro muito polêmico, mas que vendeu”. Para ela, prender obras literárias em “caixas” é uma atitude, no mínimo, preconceituosa.

 

 

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Vanessa Passos é autora de A Filha Primitiva (2021), vencedor do Prêmio Kindle de Literatura, do Prêmio Jacarandá (2022) e do Prêmio Mozart Pereira Soares de Literatura (2023). Foto: Divulgação.

 

 

 

Mas a originalidade, quando marcada pela característica da inovação, ainda é possível dentro da literatura contemporânea, vista o exemplo de Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, que está próximo dos 900 mil livros vendidos. O sucesso foi tão grande que, em 2023, o cantor Rubel, que tem 2,5 milhões de ouvintes mensais no Spotify, fez uma releitura da obra com o mesmo nome. “O livro tem uma abordagem não convencional, em nossos dias, da questão fundiária, moldada pela perspectiva tríplice das narradoras e por uma ambientação exótica aos padrões da literatura urbana, ora onipresentes. Poderia ser só um romance original e sucesso de crítica, mas ganhou o grande público ", diz Bressane. 

O jornalista ainda acrescenta o tempo de lançamento como um fator importante para o sucesso de algumas obras, quando coincide com a qualidade literária. Mas seria possível alcançar a originalidade sem se moldar a escrita de autores já estabelecidos? Para Passos, não: “É impossível uma originalidade completa sem nenhuma referência. A grande questão é: ‘Como fazer a seleção e diluição das suas leituras e vivências na literatura?’”. Para responder, ela cita as concepções de Mário de Andrade, poeta e um dos principais nomes da primeira geração modernista, sobre a antropofagia cultural, que consiste em apropriar-se do legado anterior de forma que as influências se dissolvam na própria criação. “Mas é impossível dizer que algo é completamente novo, porque às vezes, o próprio processo de referência vem do inconsciente”, esclarece a escritora.