ENTREVISTA | Zé Celso 31/07/2023 - 16:04

‘Rexistir’ é preciso

Entrevista publicada originalmente no Nicolau — suplemento bimestral editado pela Secretaria da Cultura (Seec) — outubro / novembro de 1990, ano IV, número 35
 

por Sábato Magaldi e Perla D. Melcherts
 

A primeira impressão é de estar vendo um personagem surgido de dentro de um livro. Afinal de contas não é normal uma pessoa que afirma ter feito um pacto subterrâneo com Cacilda Becker.

Ele não se contenta só em falar: gesticula e representa, como se o cor­po inteiro fosse incapaz de trans­mitir o mundo de ideias contido na cabeça. Quase como uma necessidade compulsória. Ansioso, um 'q' de neurótico. A “neurose” do teatro, de criar, encenar.

Na torre do terceiro andar do inacabado Teatro Oficina, anacrônico em meio a prédios, antenas de televisão, viadutos e outros símbolos da modernidade, o antropofágico José Celso Martinez Corrêa, 53, di­retor do polêmico Teatro Oficina, falou para o Nicolau numa entrevista exclusiva, e desde já, antológica.

Foram quatro horas de delírios e conversas.

 

Na década de sessenta, você sintetizou no palco do Oficina a experiência de quase um século, retrabalhando as conquistas de Stanislavski, Brecht, Grotowski e outros mestres, e criando em O Rei da Vela, o que se denominou tropicalismo. Qual a sua trajetória posterior?

A própria devoração des­ta experiência europeia toda, a partir do Rei da Vela, me abriu para outros círculos culturais, que estavam na mi­nha cara. Pelo Rei da Vela come­cei a ver um caminho totalmente des­provincianizado do teatro, para além do círculo mágico europeu. Logo em seguida, com Roda Viva, fiz um trabalho voltado para o lado cósmico do tea­tro, relacionando-o com outras cultu­ras. Ela marcou, num certo sentido, a interrupção de toda uma explosão cul­tural revolucionária brasileira ao ser atacada duas vezes. A peça tinha um coro, que era o dado mais importante do espetáculo. Líamos Grotowski de uma maneira completamente diferente da sua obra. Incorporávamos o teatro nos coros de possessão, o que no Brasil se via nos terreiros de macumba, candomblé e umbanda, em qualquer esqui­na. Esta incorporação do deus baixan­do no corpo do ator, em coros por meio do canto, da dança e do transe, entrava em choque com o teatro que era feito no palco, influenciado pela experiência europeia.

O Living Theater encaminhava este ri­tual na base do sadomasoquismo, da culpa, do grito e do desespero. Eles não tinham a riqueza que possuíamos no Brasil, como a cultura do candomblé dos negros, este ritual coletivo, de participação, quase orgiástico e, portanto, mais próximo do teatro grego.

Oswald de Andrade escancara, rompe, absorve. Ele faz este trabalho no campo da literatura, da poesia, do teatro escri­to e na própria vida. Ele incorpora as tendências da arte do século XX. Tudo explodiu em 1968, não só no teatro mas também na música, no cinema e na política. A terra estava em transe. A cultu­ra passou a ter um poder enorme de decisão. As pessoas resolviam a sua vi­da por meio de seus rituais. Era um mo­mento em que as pessoas se apaixonavam por si, permitindo que tudo que vinha com o modernismo e a antropo­fagia ganhasse o seu corpo no teatro, nas multidões. Foi o surgimento de uma cultura forte que ameaçava o próprio poder militar e a estabilidade política. Isto os obrigou a nos atacar e nos des­truir fisicamente, como foi no ataque de 60 ao Roda Viva.

A partir desta interrupção, e da impos­sibilidade de se trabalhar neste sentido, tivemos que voltar para o palco. Éra­mos proibidos de tocar e olhar as pes­soas. Diziam que tínhamos um poder de hipnose. A censura proibia nosso movimento, fomos recuados militar­mente até o palco. Resistimos até que fomos invadidos, presos e exilados.

Com a abertura, vim com a ilusão de construir neste espaço enorme do Ofi­cina um teatro de estádio, que desse passagem ao que havíamos começado. Foram anos de muita luta, de um movi­mento intenso contra a repressão, a destruição do teatro, o monopólio da TV e a ditadura. O teatro passou a ser uma coisa recolhida. Até sua arquite­tura foi transformada em auditório de colégio. O conceito deste espaço, desta pesquisa teve que atravessar uma déca­da difícil: a década de 80, do pós-mo­derno.


Qual o modus operandi que o intelectual tem hoje, para agir e existir? O que é para você resistir?

A cultura é o oposto da resistência. É imperialista, é força de produção, criação. O artista não pode resistir, não pode se segurar. Ele tem que existir, rexistir, continuar que vá para o subterrâneo, como a água. E isto não aconteceu. O artista, preocupado em resistir, se adaptou demais à linha de montagem dominante e trocou o poder real, mágico, pelo poder de sobrevivência. Houve uma adaptação, mas não do artista. Ele cria sempre. O que aconteceu nesta década foi um certo pacto com o poder. Não só com o poder de mercado mas também com o político, que acabou enfraquecendo demais o poder do artista.

Agora é necessário um outro pacto entre os artistas, para a retomada do seu poder específico: o poder de criação, de produção e não da capacidade de sacrifício, de resistência. Isto é impor­tante: o artista, hoje, tem que retomar a consciência física do seu poder.
 

De que forma a repressão dos anos 70 atuou no desenvolvimento do seu teatro?

Ela impossibilitou a existência franca do nosso teatro. Primeiro a pressão física no Roda Viva, quando bateram nas pessoas e destruíram o tea­tro. Às vezes você era mais herói ence­nando do que lutando numa guerrilha. Chegou um momento em que o grupo se dividiu. Uma corrente liderada por mim queria continuar pesquisando o que havíamos descoberto na década de 60. Uma outra tendência queria ser realista, resistir. Então foram fazer peças como Viagem de Volta. O próprio no­me significa um teatro possível. As­sim como há o socialismo real, que caiu, foi criado o teatro real, de compromisso, feito dentro da brecha. Houve um recuo e a decadência enorme do teatro, fazendo com que as grandes peças viras­sem insucessos.

Hoje, o teatro não tem poder algum. A limitação do espaço cênico ficou tão grande em virtude desses fatores que surgiu um teatro real ou de resistência. Este teatro não dá passagem ao poder do artista. Por isso eu investi em criar um espaço físico de criação artística on­de essa capacidade possa ser exercida. Eu tentei trabalhar na Oficina 3 Rios, mas o poder burocrático queria com­petir com o artista, queria moralizar, desanarquizar, fazer do artista sujeito submetido às normas. Isso não é possível! O artista só cria onde ele possa fazer as suas loucuras, os seus vícios, as suas manias. O Gerald Thomas disse uma frase muito bonita, quando tentou montar uma peça, mas não conseguiu encontrar os atores: "Eu não vou fazer porque vocês não têm condições de produzir o anarquismo do artista".

No Brasil falta um espaço onde o artista, principalmente de teatro, tenha liberdade de criar, de desencadear as suas forças de produção. O artista não cria no convento, na castidade, na obediência ou na disciplina. O ator tem que ser um centro de liberdade, de poder. Para isso ele tem que viver intensamente, ser um deus, um rei, o que aliás todo mundo é. Mas o ator é que trabalha para manifestar isso: que o ser humano é divino, é livre, pensa e age; pode estar acima ou abaixo do bem e do mal, da moral, da militância e da sabedoria. Enfim, que o ser humano é um mistério poderoso. O teatro é um espelho que mostra o ser humano em toda a sua grandeza e mesquinharia. Mas para que esta revelação seja possível, é preciso que a sociedade queira ver as coisas com a liberdade que elas podem ter. A censura e a militância não poderão mais existir.

 

Estamos em pleno centenário de Oswald de Andrade. Qual o significado desta figura para a cultura brasileira? Nós o valorizamos devidamente?

Se aconteceu uma pessoa no Brasil chamada Oswald de Andrade, é porque temos um potencial capaz de gerar este tipo de antena. Mas se ele não é reconhecido hoje, se o aparelho cultural não sabe valorizá-lo, é por ignorância, por uma incapacidade de dar valor.

Para entender Oswald de Andrade temos que ter a mesma fome de tudo, de quem não está no poder. Porque quando você se aproxima de algo ligado à cultura é por paixão. Você arrisca, joga com a vida.

Hoje Oswald de Andrade é comemorado em vão... Se gasta uma fortuna em mil coisas sobre ele. Eu não vi nenhuma encenação inteira das suas peças, só fragmentos. Estamos em 90, mas o Brasil ainda está em 80, um ano recessivo do palco, do teatro, do ator fantoche. Colocar Oswald de Andrade nessa linguagem dos anos 80 não funciona, é parnasianar. No pleno centenário de sua morte, ele vai ter uma série de comemorações, mas não vai ser consumido.

 

Como é que você vê esta dramática falta de novos talentos?

Como uma consequência deste pacto estabelecido pela abertura nos últimos dez anos. A junção da iniciativa privada e do Estado, criando a cultura, "deu certo". Uma cultura de compromisso, onde o que "deu certo" é repetido ao infinito e qualquer coisa mais perigosa, arriscada, não pode ser feita. Isso não é possível! Para trabalhar com cultura temos que nos arriscar, é grupo de risco.

A humanidade está cansada de saber que os artistas sempre foram escandalosos, difíceis, grupo de risco, e aí está a sua qualidade. Não podemos pedir ao artista que seja um militante, um burocrata, um empregado, um sujeito decente, digno, sábio. O artista é outra coisa.

 

zé celso
Foto: Gilson Camargo

 

 

Como é que você vê o teatro feito hoje no Brasil pelo Gerald Thomas, pelo Cacá Rosset? Existe uma vanguarda brasileira?

Existe uma série de esforços isolados, mas não um campo magnético de poder onde o teatro seja possível. Existem experiências interessantes, mas que não possuem a mesma força de antes. Não é uma questão de voltar atrás, um saudosismo. É preciso fazer de outra maneira, recuperar a força do teatro. O Cacá, por exemplo, possui dois elementos fundamentais para o teatro: comunicação com o público e humor. Acho que o público gosta e sente o trabalho dele.

O Gerald, assim como o Ziembinski, jogou uma nova luz no teatro. Mas eu não suporto a direção de atores que ele faz. Acho que ele restabeleceu uma impostação da escola de arte dramática, o teatro cantado e declamado. Mesmo que seja para parodiar este teatro, essa declamação "culta" de salão de tia não tem uma musicalidade real. A retórica, o jeito dos atores falarem, não toca as pessoas fisicamente. É cerebral, de cultura de enfeite. Quando eu vi Carmen tive uma decepção muito grande. Nesse espetáculo eu preferia ter visto o Gerald de cabelo crespo com uma flor e um charuto na boca, fazendo a Carmen, ele teria feito muito melhor; a Beth Coelho ficou de pau mandado, assim como todas as mulheres. Elas leram um texto extremamente machista, que o Gerald escreveu, falando de buceta. Elas falavam aquele texto porque o diretor mandou, então parecia que elas não tinham buceta, elas não existiam.

Acho que o que falta para o Gerald é quebrar a cara. Para fazer teatro você tem que se quebrar, se pôr na ação e se desmascarar.

 

E o teatro do Antunes Filho?

Antunes hoje é uma entidade. Trabalhar com ele significa não só ter um diretor, mas um guru que diz o que você come, com quem você anda, namora. Não digo que seja assim, mas é essa a impressão que eu tenho.

Ele passou a ser o mito do pai, do mestre, do guru. Nos espetáculos que eu assisti dele, tive a impressão de que todos os atores atuavam em duas dimensões, não era tridimensional. Não senti o ator dono de si mesmo, do seu corpo, do seu desejo. Senti uma coisa cultural não no sentido de enfeite, mas no sentido acadêmico. Um pouco de Pina Bausch, de teatro pós-moderno.

O Antunes merece muito mais que isso. Eu adorava quando ele fazia peças comerciais, com atores bons. Eram emocionantes, empolgantes. Hoje ele faz coisas que dependem da complacência cultural, por isso não sinto influência do seu teatro.

 

Há muitos anos você não se entrega a um lançamento regular de espetáculos. Por quê?

Eu tentei, mas não consegui me enquadrar dentro do teatro real e criar alianças para atuação. Consegui fazer maquetes de espetáculos, eventos, não temporadas regulares. Isto porque a própria estrutura de linha de montagem do teatro tal qual ele existiu foi muito hostil ao tipo de teatro que eu propunha. No início eu era extremamente radical. Só queria fazer dentro da minha linha. Depois tentei ter um pouco de jogo de cintura, mas já era tarde: esta linha estava fechada para mim. Fui chamado de Decano do Ócio. Assumi esse título por não ter participado do teatro real, do socialismo real. Mas o tempo todo me exercitei. Desenvolvi meu lado musical, falei demais e acabei falando bem.

Nesse começo de ano tentei quebrar o tabu fazendo uma temporada, num espetáculo dirigido por Nando Ramos. Mas dois dias antes da estreia levei um tombo e continuei ensaiando. No dia da estreia levantei com a perna enorme e fiquei desesperado quando fui experimentar o sapato e ele não entrou. Eu estava num mal-estar muito grande. Mas antes de entrar em cena tomei um suco, vomitei, me senti melhor e fiz o espetáculo com o sapato na mão. No final fiquei imobilizado no camarim e não pude agradecer. Fiquei dois meses hospitalizado. Nestes dezoito anos, de 1972 até 1990, fiz muitos trabalhos interessantes, a maioria deles gravada em vídeo. Montei uma maquete dos Mistérios Gozosos, e de O Homem e o Cavalo 85. Terminei os filmes O Rei da Vela, Moçambique 25, O Parto, gravados em vídeo para fazer uma espécie de crônica desses anos todos.

Tanto que muitos estranharam que eu estivesse mais em forma que muita gente que continuou fazendo teatro. Eu sempre estive ligado, me exercitei, não deixei de fazer teatro um minuto. Mas o meu teatro não tinha acolhida nesta linha de montagem. A maior parte dos atores teve medo de trabalhar comigo. Durante este tempo as pessoas achavam que quando trabalhavam comigo ficavam loucas. Isso correspondeu a uma fase histórica, quando o ator ficou com medo de se trabalhar interiormente. E isso vemos hoje, no teatro casto, sem penetração. Até eu conseguir uma forma fiquei atribuído de um tabu mui­to grande. Mas acho que fiz teatro o tempo todo. Não saí de cartaz nestes dezoito anos.

 

Qual a posição e a função do crítico hoje?

Com o decorrer do tempo, o crítico foi perdendo poder. O espaço dele no jornal foi diminuindo, acompanhando a decadência do teatro, com isso eles praticamente se desinteressa­ram de fazer crítica, por serem obriga­dos a ir toda noite no teatro e verem espetáculos ruins. Eles não eram esti­mulados, provocados, para escrever coisas interessantes. Foram aos poucos saindo da crítica, o que fez com que o teatro ficasse mais pobre. A saída deles é equivalente ao meu decanato do ócio e à morte da Cacilda Becker. Essa série de fatores significa a perda do poder do teatro. Por isso hoje eles se dedicam muito mais a atividades co­mo fazer livros e cursos. Não há mais a militância do dia a dia, tão importan­te para o teatro. É imprescindível que eles voltem, assim como é importante que eu volte a atuar, dirigir e respirar o teatro. Isto é necessário para fazer surgir junto com este teatro poderoso uma crítica que o acompanhe cotidianamente. Para que o teatro venha as pessoas devem fazer um pacto de agricul­tura; plantar para colher.

Precisa-se do crítico com a visão com­prometida com o teatro que se quer construir. O crítico neste momento tem a função de valorizador. Ele tem que ter coragem para desmantelar o que tem que ser desmantelado. O crítico ficou, durante um tempo, complacente, mas agora ele possui elementos para ser mais rigoroso, Criar de novo o cam­po magnético. O teatro como comu­nhão, penetração, que possibilite que o poder humano exista.


Você tem uma autocrítica a fazer?

Eu não gosto dessa palavra. Ela está muito ligada ao stalinismo e ao jesuitismo, à confissão e à culpa. Meu trabalho é um processo de crítica permanente. Eu substituiria crítica por antropofagia, devoração. Cada peça do Oficina nega a anterior, há uma devoração permanente. Fazemos um realis­mo e em seguida o teatro épico.

Uma peça é a negação da outra.

Acho que a crítica se faz mudando de estratégia a todo momento. Não adianta fazer uma autocrítica na busca de uma verdade e se pautar por ela. Existe uma mudança permanente, você está se transformando e se criticando. Num determinado momento talvez eu tenha sido radical demais. Hoje acho que devo trabalhar com todas as correntes e tendências: atores velhos, novos tradicionais, realistas, de vanguarda e cômicos. O teatro tem que jogar com tudo. É o teatro-tudo.

Em certa época talvez eu tenha tomado uma posição de negação muito grande do teatro instituído. E até mesmo feito injustiças. Mas é difícil procurar com essa palavra algo de que me arrependa muito.

Mesmo porque por meio dessas posições radicais pude estabelecer ideias que avançaram de um lado para outro.

 

Em que pé se encontram as obras do Oficina?

As obras estão paradas, as estruturas das arquibancadas no chão. Quem deve construir o teatro é a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, que no momento está sem dinheiro. Conseguimos a liberação de toda a verba para a finalização. Falta pouco: o teto móvel, os vidros, levantar as arquibancadas e o equipamento de vídeo, iluminação e som. É um terreiro eletrônico, onde haverá água, terra, fo­go, jardim e céu. Monitores de vídeo e tudo sonorizado. Será quase uma microestação. Poderão ser feitas transmis­sões diretas.

O Oficinas é baseado numa contracenação de contrários: tecnologia e natu­reza; carro alegórico e lugar físico; ator, protagonista e coro. Enfim, ele precisa de uma série de desequilíbrios para trazer a sua mensagem.

 

A política de cultura do Governo Federal (ou a ausência dela) tem repercussão em seus projetos?

Tem uma repercussão positiva. O governo vem encenando o es­petáculo da fase terminal da cultura da ditadura. Tanto que o próprio homem que está na liderança, o Ipojuca, tem uma pele de réptil, uma crosta de tarta­ruga, que significa boa resistência ao processo de transformação final. Acho que a cultura teatralmente tem o seu antagonista na imagem do impasse da sua morte. É um momento de renovação de um novo pacto. O Ministério da Cultura, que devia ser o mais importante do país, tinha uma verba mínima. Foi bom que ele tenha sido destruído para que se possa lhe dar o devido va­lor. É pela cultura que se faz a transformação deste modelo econômi­co vigente. Isso quem faz é o processo cultural. Espero que esta década, este fim de milênio, o fracasso desse governo na área cultural, tragam consciência de que os próprios artistas têm que criar poder entre eles e criar um corpo coletivo forte.

 

Quais os fundamentos dos seus projetos atuais?

Meu projeto atual tem como fundamento As Bacantes. Dionísios, o segundo nascimento do teatro. Dionísio, aquele que nasce duas vezes, duas portas. Fui buscar num mito de 3000 anos a força para o trópico, para o novo nascimento do teatro. Eu quero encenar esta ópera de carnaval eletrocandomblaica, este ritual de Dionísio, em 25 cantos. Já fizemos uma recriação do texto, o primeiro esboço musical pa­ra encenar aqui neste espaço. Mas como estou procurando financiamento no exterior, e como talvez o teatro fique pronto antes, eu me apoio em outro fundamento: Cacilda Becker.

Durante o período em que estive hospi­talizado, ganhei um concurso de argumentos para escrever uma peça sobre o tema que quisesse. Como coincidiu de eu ter saído de cena como Cacilda Becker, eu achava que ia morrer. Como foi com Cacilda, levada para o hospital ao sair do primeiro para o segundo ato da peça Esperando Godot. Acho que ela queria pelo menos terminar o segundo ato da peça.

Então fiquei muito ligado a isso e fiz um pacto subterrâneo, dos infernos, com ela. Eu me propus a trabalhar o mito de Cacilda, que é o mito da noiva de Dionísio, da Ariadne. O mito da mulher que tem vontade de poder no teatro. Quero tentar, através do trabalho de Cacilda, provocar os atores. Para eles quererem essa intensidade e fissura que ela teve no teatro; ela foi pratica­mente capaz de morrer em cena. Estou estudando a vida de Cacilda. É o caso de uma devoção absoluta ao teatro e de uma vontade de poder enorme. Ela foi o totem da minha geração. E coin­cide com a morte dela, depois de qua­renta dias de coma, esta coma do teatro e da cultura nesses anos todos.

Eu quis trabalhar o mito ao lado deste segundo nascimento. Vou precisar de bacantes-praticantes com a força dela, quer dizer, atrizes não só capazes de morrer e de viver em cena, mas que entrem com vontade de poder. Quero fazer um inxorcismo. Trazer os demônios dela e do teatro para os corpos presentes.

Este teatro pronto vai dar uma base física e de segurança ao trabalho que é necessário fazer. Não descobri como organizar esta companhia. É um misté­rio. É uma procura muito sutil encon­trar parceria artística. Quero deixar aqui, nesta entrevista para Nicolau, este chamado IOOO. IOOO. O oposto do oi, o chamado das bacantes, para as pessoas que sentirem desejo de construir a utopia materializada que é o tea­tro.

É um programa aberto para as pessoas devorarem, consumirem e nascerem de novo. Fazerem como fiz com Oswald de Andrade, como ele deve ter feito com outro. Este processo de devoração permanente. Estou aqui para ser co­mido.


 

Sábato Magaldi é professor de Crítica e de Teatro Brasileiro na ECA/USP. Autor, entre outros, de Panorama do Teatro Brasileiro (Inacen, 1979), Iniciação ao Teatro (Ática, 1985), Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações (Editora Perspectiva, 1987) e O Teatro no Teatro (Editora Perspectiva, 1989).

 

Perla D. Melcherts é jornalista.