ENTREVISTA | Mar Becker 30/06/2023 - 11:09

A poeta imersa

Mar Becker discorre sobre seus processos de escrita, a relação com autores contemporâneos e outras experiências artísticas

 

por Samantha Abreu
 

A poeta passo-fundense Mar Becker tem feito um percurso ascendente na literatura brasileira contemporânea. Seu livro de estreia, A Mulher Submersa (Urutau, 2020), recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo Estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Sal (2022) é seu segundo livro, e em 2023 saiu em Portugal, também pela Assírio & Alvim, Canção Derruída, consolidando seu trabalho poético.

No segundo semestre deste ano, Mar será uma das participantes da série-documentário Música e Poesia, que estreia no Canal Arte 1, com Alice Sant'Anna, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Mel Duarte e Ryane Leão. São seis episódios, um para cada escritora, com curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda. Na série, a gaúcha fala sobre o processo de escrita, a relação com os leitores e o projeto estético sobre o qual se desenrola sua obra.

Em entrevista para o Cândido, Mar Becker volta-se aos detalhes do universo temático de Sal e Canção Derruída.

 


O também escritor e poeta José Francisco Botelho escreveu no posfácio de Sal a respeito da sua capacidade de criar mundos, num traço que, nas palavras dele, diz respeito a uma abordagem “evânica” da linguagem. É como se em sua poesia houvesse uma Eva encarregada de olhar as coisas e os seres pela primeira vez, atribuindo a cada criatura seu verdadeiro nome. Você entende essa poética fundadora de uma linguagem na sua poesia? Acha que ela está mais nítida em algum dos seus livros?

Nesse posfácio, Botelho aproxima o que desenvolvo como dicção poética da fabulação, da criação de um mundo. Acho que há realmente essa marca, sinto que se pode compreender de minha escrita algo de fidelidade para com certa fantasmagoria, erigida sobre imagens muito próprias, um cinema. Essas imagens estão em todo meu trabalho e surgem sobretudo do ambiente doméstico, pela figuração do que gosto de compreender como uma espécie de erótica da casa em si, afeita à descoberta de um tremor de véspera nos objetos, ao tateamento de ângulos em que incidem golpes outros de luz e sombra… São paisagens de intimidade, e nelas a apreensão de um sentido que a mim parece às vezes rarefeito demais para a língua, de modo que o corpo só pode acessá-las eviscerando-se, em um regime de deslabiação.

A casa como um todo me chama, me interessa. Não necessariamente esta ou aquela casa, mas algo da dramaturgia do morar, do fazer morada, do habitar um espaço com certos móveis e objetos, alguns de usar no corpo (peças de roupa, escova de cabelo, presilhas). Quem vem e vai pela casa na minha poesia são mulheres, sempre estranhas, de uma doçura vacilante — são insidiosas, trabalham ao fio de uma animalidade obscura. Não deixa de ser um movimento de invenção de mundo, sim.

 

Na leitura do livro Sal, percebendo nele os poemas que fazem referências à família e à infância vivida em Passo Fundo, me vinha à cabeça o que escreveu Octavio Paz em Signos em Rotação: “o poeta faz mais do que dizer a verdade; cria realidades que possuem uma verdade: a de sua própria existência”. Como você estabelece as relações entre o ímpeto criador e os fatos poéticos que em Sal se ligam a experiências cotidianas?

Vejo uma relação entre esta pergunta e a anterior. Mesmo quando parte do vivido, escrever é ficcionalizar. Sinto que a infância que aparece em minha escrita é isso, é fantasmagoria, ficção. Sinto também que a ficção opera no sentido de dizer uma verdade desesperadamente viva, com urgência por isso mesmo de permitir-se ingressando no delírio, no sonho. Seus caminhos dão para um tempo de legência à verdade do corpo, conduzem as mãos à febre.

Por exemplo, um dos textos que escrevi para Sal, um material longo, leva o nome do bairro Annes, de Passo Fundo. As pessoas às vezes perguntam se vivi aquilo, se as janelas eram enormes, se a mãe fazia sopa, se havia uma edícula com as manequins… Bom, não exatamente, aqui e ali sim, mas também pouco importa. Importa o que no campo daquela língua se pode descobrir como tessitura de um pavor delicadíssimo, porque afinal é disso que se trata. O amor quando encruzilha-se com um frêmito de medo, ali onde tudo é ainda nascença.

Essa atmosfera de Annes aparece direta ou indiretamente em todo o livro. A umidade difícil, as meninas vagueando. Os gestos sempre à beira da petrificação e do recuo, a beleza petrifica, gala os olhos ao insuportável. Há menção a lugares como a “praça da cuia”, em Passo Fundo, Lagoa Vermelha, Villa Epecuén, o deserto, o mar, entre outros. A mim esses lugares interessam pelo que carregam de pleura, de modo de respirar. A essa chave se vão perfilando em mim as imagens: os dois amantes que, na seção de abertura de Sal, se olham e se estatuam, os cabelos das meninas as poses e os perfis de mulheres, a maneira como parecem dizê-las inabordáveis, inoticiáveis. No fundo, o que está em jogo: a casa, a ruína, o corpo. O amor.

 

Conte um pouco sobre a organização do livro Canção Derruída, que reúne e revisita textos de suas duas obras — A Mulher Submersa e Sal —, abrindo as portas de Portugal para sua poesia. Como tem sido as leituras de sua produção por lá?

Canção Derruída é um díptico, inclui Sal na íntegra e uma seção do que chamo de “ecos e variações” de A Mulher Submersa. Nesse caso não só rearranjos de poemas escritos, mas uma porção de inéditos, desdobrados desse caminho.

Gosto de pensar em meu trabalho num arco de tempo largo, como feitura de um “poema contínuo”. Publicá-los em conjunto faz muito sentido nesse caso. São projetos irmãos, Sal retoma traços de um imaginário poético que já se desenvolvia em A Mulher Submersa. Poder revisitar aqueles poemas, rearranjá-los num recorte novo e até mesmo expandir aquelas séries poéticas, com a inclusão de vários inéditos no Canção Derruída, foi maravilhoso.

De Portugal tem vindo leituras muito sensíveis. Algumas me conduzem a encontros com poéticas contemporâneas de lá que eu, até então, não conhecia. O poeta Artur Barosa, que publicou há pouco Os Dias Depois [Elefante, 2023], escreveu sobre o Canção, e ao lê-lo percebi essa fronteira irmã entre as escritas — no que ele escreve também a poesia se desfia tênue, em cenas de uma beleza escoriada, torcida por um pano de sombra. Ainda por meio do Canção conheci José Oliveira Fernandes, que tenho acompanhado no Facebook, um primor. O mar vai se estreitando um tanto.

A Assírio & Alvim preparou uma edição linda para este livro. Fiquei muito feliz em tê-lo em mãos, sentir; já seguia o catálogo deles aqui no Brasil, importava alguns títulos. Comecei a ler poesia portuguesa por meio deles, então há toda uma história.

 

O torpor e a imobilidade são muito recorrentes nas imagens que você constrói nos poemas. A devastação sempre fez parte do universo da sua poesia, outros projetos também incorporam essa sensibilidade?

Talvez a aura de quase incomunicabilidade dessas mulheres diga respeito ao fato de não se noticiarem senão sendo devoradas pela casa, que aqui é todo um universo: como nas fotografias de Francesca Woodman e de Viki Kollerová, elas surgem misturadas aos cômodos, desfeitas em tecidos e cabelos, entregues a uma sangria lentíssima, que é a do tempo da casa, do tempo dos corpos da casa, dos quartos. “O quarto é inviolável”, diz Raduan Nassar, no começo de Lavoura Arcaica. Acho que as mulheres de que falo costeiam essa inviolabilidade, ocupam o espaço como figuras bachelardianas mesmo, erigindo-se desde aquela primeira fronteira entre a víscera e o invisível.

Também sinto que esse sentido de devastação surge na minha escrita como influxo de infância. O ambiente de trabalho da minha mãe sempre esteve presente na minha escrita, e o trabalho era a casa, primeiro um sobrado, um minimercado-açougue embaixo e nós morando em cima. Cheguei a escrever a respeito, embora o mais presente seja o quarto de costura, com que ela trabalhou depois.

Havia as máquinas de costura, claro, e também as manequins, que são um motivo recorrente em minha escrita toda. Essas manequins, dava para desmontá-las, e não raramente a ideia de entrar no local tinha para mim uma sombra de estranheza — ver braços e pernas largados de um lado, busto e cabeça de outro; perucas, mãos soltas.

Às vezes me pergunto se isso não teve lá seu papel no que em mim foi composição de um imaginário. Essa vida íntima que escapa, em estado de derruição, aparece na minha letra. De qualquer forma, não acho que seja só. Deve haver concomitantemente uma urgência de dizer, e é isso o que persiste, sinto — incompreensível, injustificável.
 

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Mar Becker. Foto: Marcelo Alexandre Becker

 

 

Em um dos seus poemas mais famosos, Adélia Prado, que também era filósofa, coloca nos versos que “A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, / Foi inventada para ser calada”. Em muitos poemas de Sal você destaca a mudez e ausência das palavras como estado poético. Como o silêncio se faz poesia na sua produção?


Se há uma ocasião da língua em que o silêncio tem lugar privilegiado, esse lugar é o poema. Às vezes penso que o poema é só um campo de guarida do silêncio vasto — silêncio do mundo, do amor —, ele mesmo intocado, constitutivo.

Na poesia que faço, o silêncio me devolve em premência de perigo: sei da fragilidade dessa matéria, sei que posso feri-la ao menor movimento. Mesmo um sopro machucaria o pássaro eviscerado que habita algumas paixões, quebraria a película de gelo. Essa ameaça — que parece colocar-se como um memento da própria crueldade que é estar vivo —, ela em mim educa a boca, o corpo. Educa o dizer. É toda uma escola, o silêncio.

 

Que leituras e experiências artísticas você busca quando quer ser tocada pela poesia? O que te influencia e te serve de gatilho para produção?

Há muito do que vejo no cinema e se desdobra em escrita, seja com alguma digressão ou pelo traçado de uma cicatriz específica, nascida, digamos, com o encontro de certa cena. Tua mulher translúcida, Samantha, é, por exemplo, uma figura que me acompanha há muito. A poesia de Nydia Bonetti tem seguido comigo nestas últimas semanas, para mim uma de nossas maiores poetas. Tenho lido mais Nydia, Contador Borges, Ezra Pereira, Lucíola Macêdo — e sua língua exuberante, de invenção e exploração, uma alegria escrever com ela — e Léo Tavares, que é monstruoso no domínio da narrativa. Devo ainda dizer que Maria Gabriela Llansol tem sido companhia sempre, com ela recordo que o texto é um ser.


Conte um pouco sobre sua participação na série-documentário Música e Poesia, que tem estreia prevista no Canal Arte 1 para o segundo semestre. Como foi estar em uma seleção feita por Heloísa Buarque de Hollanda?

Achei incrível! Já conhecia o trabalho das demais autoras, para mim é uma baita honra participar, e penso que a curadoria da Heloísa valorizou o que temos de mais plural. A palavra pode tanto, a palavra-em-poema, então… Cada episódio dura cerca de 50 minutos, o que demandou dias de gravação. Ainda não vi o material editado, tenho curiosidade. A mim alegra principalmente que a poesia, a poesia brasileira contemporânea, avance e ocupe espaços, ouse tornar-se série, performance, debate, encontro, sabe? Também que chegue a escolas e outros espaços públicos, chegue às pessoas.

Meu processo de escrita sempre foi e provavelmente continuará sendo monástico: fecho-me num quarto e ali vou tomando notas no computador, do que pode nascer um poema, uma narrativa, um aforismo. Mas a recepção trilhar tantos caminhos, é tão variada. Saber de meu trabalho nessa plataforma improvável para mim, a tela, tem sido algo.

 

A série estabelece diálogos entre poesia e música. Como é a sua relação com a música na escrita?

Acho que há música no que escrevo, mas é música outra, é canção esfarelando-se, resto, rumor, rouquidão. Dissonância. Eu, que escuto muito os violões da fronteira do Rio Grande do Sul, as zambas e milongas, eu por vezes os encontro torcidos — é essa a imagem —, erguendo-se à legislação de um amanhecer de geada negra. Esse é um dos meus delírios musicais.

 

 

 

Samantha Abreu (1980) nasceu e vive em Londrina (PR). É professora, produtora cultural e mestre em estudos literários pela UEL. Lançou Fantasias para Quando Vier a Chuva (2011), Mulheres Sob Descontrole (2015), A Pequena Mão da Criança Morta (2018), Debaixo das Unhas (2020) e O Coração e o Voo (2021). Participou de diversas antologias com autores de todo o país, entre elas 29 de Abril: O Verso da Violência (2015), Sob a Pele da Língua (2018) e As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2021). Faz parte do Coletivo Versa, que pesquisa e divulga a literatura produzida por mulheres. Em 2020, recebeu o Prêmio Outras Palavras, da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.