ENTREVISTA | Itamar Assumpção 31/08/2023 - 09:06

Príncipe negro da música

 

Depois que um tal de Benedito João dos Santos Silva Beleléu  — Vulgo Nego Dito  — tomou de assalto a cena musical paulistana com o disco Beleléu, as coisas nunca mais foram as mesmas na MPB. Com quatro LPs gravados (Beleléu, Às Próprias Custas, Sampa Midnight e Intercontinental), Itamar Assumpção decolou com sua carreira na Alemanha, sendo convidado para fazer shows e gravar discos. Desenvolvendo um trabalho personalíssimo, é a antena mais atenta e sensível da música brasileira hoje. O novo também não chora mais Itamar, que continua, a cada disco, trabalho, a suingar e singrar por itamares nunca dantes navegados com palavras, emoção e poesia. 

Numa tarde de garoa, no feérico São Bernardo do Campo, e tendo como interlocutores os poetas Ademir Assunção e Alice Ruiz, Itamar falou a Neuza Pinheiro e a Rodrigo Garcia Lopes, da redação de Nicolau, sobre seu começo de carreira em Londrina, mulheres, o tempo dos festivais, os rumos da MPB e de sua parceria com o poeta Paulo Leminski.

Milton Michida clicou. Iara Rossini ajudou na edição. 

Simples, sereno e humilde, em gesto e síntese, a inteligência de Itamar voa sempre para referenciais imprevisíveis. Atrás do seu jeito negro gato de ser se esconde uma fera, que está sempre pronta a arreganhar os dentes e a afinar o coro dos descontentes.

E você, também já portou luvas no porta-luvas?

 

Dizem que seu pai, o Januário, era um cara muito louco e que exerceu uma influência muito grande em sua vida, inclusive musicalmente. O que você poderia falar de sua figura?

Foi ele quem me apresentou o lado não-ingênuo da vida. Eu era um cara que até os 14 anos teve toda uma educação católica, essa coisa de responder missa em latim, ser coroinha. Morava em Tietê (SP) com meus avós. Quando minha avó morreu me mudei pro Paraná, onde meu pai era fiscal do IBC. Primeiro fomos morar em Paranavaí, depois em Arapongas. Aí comecei a ver o lado externo de casa, o outro lado das coisas. Meu pai tinha saído de casa muito novo, para trabalhar em Santos como estivador. Era pai-de-santo, já tinha feito a cabeça. Onde ele chegava abria um terreiro, essa era a sua missão. Então, a espiritualidade era muito ligada a ele, esse lance de alma  —  já que a gente não é só corpo, matéria finita que acaba, mas esse algo mais que posso chamar de pensamento, ou qualquer coisa do tipo. No caso dele era a espiritualidade.

 

Você faz até uma música sobre seu pai: “Zé Pelintra”, que está no último disco. Como foi isso?

Essa música estava há dois anos na mão do Wally Salomão. Um dia lhe contei a história do Zé Pelintra, um santo que baixava no meu pai e, de todos, era o que ele mais gostava de receber. Então Wally resolveu fazer a letra. Meu pai era sempre chamado a fazer trabalhos nas zonas do meretrício, para desempenhar o negócio das mulheres. Ele levou meu irmão Narciso e eu, com 14 anos, praquele mundo. Aí chegavam os bandidões reclamando daqueles moleques ali e meu pai dizia que a gente tinha que andar com ele. Sentia uma responsabilidade muito grande para com os seus. Agora que sou pai, sinto a força que ele me passou nesse sentido. Tenho duas filhas que estão sempre comigo, como eu com ele. Minha mãe estava sempre em casa, mas foi ele quem me ligou com o mundo exterior de uma forma muito ampla. Me falou sobre sexo, drogas. Não fui aprender essas coisas na rua. Por isso não sou revoltado, tive uma infância legal. Lá em Tietê caçava passarinho, com sete anos nadava no rio, era muito divertido.

 

E essa história de ter tentado carreira de jogador de futebol antes de ser músico?

Aos 20 anos eu andava com a ideia de ser jogador de futebol. Havia feito dois anos de contabilidade e larguei tudo para fazer madureza científica, porque queria estudar psicologia. Aí pintou aquele incidente da prisão.


Prisão?

É, eu estava ensaiando para um festival de música lá em Londrina, no qual ia mostrar uma música minha. Não sabia nada de música (achava que meu lance era mesmo ser jogador de futebol), mas sentia que tinha uma queda pra coisa. Acabei participando do festival. Estava na rodoviária de Londrina esperando ônibus pra Arapongas (tomando leite — porque nem beber eu bebia, era atleta) quando os caras chegaram, abriram minha bolsa e tiraram um gravador, que eu tinha emprestado de um amigo. Eu, ingenuamente, acompanhei os policiais sem ter avisado nada pra ninguém. Claro que não tinha roubado gravador nenhum. Cheguei lá e vi o que era a cadeia, mas essa história todo mundo sabe mais ou menos como é. Com 20 anos eu era meio ingênuo, meio protegido. A prisão me mostrou que, na verdade, você não tem proteção alguma. Foi nesse incidente que resolvi assumir a música em minha vida. Quando saí da cadeia tinha acabado de cantar para um preso. Ele tinha um livro de modinhas e falou: “Já que você é músico, por que não canta umas músicas caipiras?” Como eu sempre cantava, cantei pro cara e ele chorou, emocionado. Me perguntou se eu sabia mesmo fazer aquilo. Disse que sim, já que achava que todo mundo podia cantar. Só fui entender bem o que ele estava tentando me dizer, hoje. 

 

Daí você partiu com tudo pra música?

Não. Um tempo antes desse episódio fui fazer um teste na Portuguesa de Desportos, lá no Canindé, em São Paulo. Fiquei um mês lá e isso determinou meu caminho para a música. Na época, já estava compondo umas coisinhas, e tocava atabaque no terreiro. Nessa época conheci a Nitis Jacon (diretora do grupo Proteu), que me convidou pra fazer teatro. Meus dois irmãos — o Narciso e a Denise — já eram atores. A Denise só tinha 12 anos, o Narciso foi fazer Arena conta Zumbi, e eu ainda estava no futebol. Argh!!.. esse negócio não era pra mim. Fiquei um mês no alojamento da Portuguesa, andando de um lado pro outro, chovia muito, bateu um tédio desgraçado. Foi aí que resolvi ir na tesouraria pedir uma grana pra voltar pra Arapongas. Quando voltei estava me sentindo completamente perdido, não sabia o que ia fazer. (Só sei que frustrei todo mundo que achava que eu ia ser um ídolo de futebol da cidade, todo mundo gostava muito da ideia. Também fazia meus gols, não era um aventureiro, mas é que na época tinha Pelé, Rivelino, Gérson, Tostão… Pra todo lado que eu olhava eram aquelas feras da Copa de 70 a pleno vapor.) Aí pensei: Não dá! E resolvi fazer teatro. Mas logo decidi mesmo que meu negócio era a música e voltei para São Paulo. A maré na qual cheguei em São Paulo, em 73, foi essa, não tinha mais volta.

 

Como é que você se sentiu com a mudança, a diferença, o lance da cidade grande?

Fui morar numa república, onde ficava no meu cantinho com o violão, procurando a forma das coisas, ouvindo muita música. Ouvi de tudo: rock, jazz, música concreta, mpb, todo o tropicalismo. Li O Balanço da Bossa, do Augusto de Campos. Tudo isso me mostrou 3 necessidade do profissionalismo, porque cantar a gente cantava. Cantávamos de tudo, Tim Maia, Caetano, Gil, Jorge Ben, juntávamos o violão e o atabaque e íamos animar as festas. Antes de resolver cantar pra valer parei de fumar durante um ano. Isso foi antes de gravar o Beleléu. Quando cheguei em Sampa eu já sabia de uma certa maneira o que queria fazer: me desenvolver como compositor, como cantor, como arranjador. 

 

No início, seu trabalho de compositor aproximava-se muito de suas raízes culturais. Depois, ele assumiu uma amplitude muito grande. O germe de seu trabalho apareceu em São Paulo? 

A clareza da linguagem eu fui adquirir em Sampa. Vi que precisava trabalhar cada coisa separadamente. Não sabia tocar contrabaixo — então fui aprender. Ouvi todos os baixistas e comecei a situar o baixo na música, e a tocar um pouco de todos os instrumentos, para ter uma noção particular e global do que estava acontecendo. Antes só compunha no violão.Quando pediam pra cantar uma música minha eu cantava, mas no começo achava que não estava com nada, não tinha uma linguagem própria. Era só mais um e, se fosse para ser “mais um”, eu não queria. Daí, em 75, eu participei de um festival em Campinas com uma orquestra sinfônica e um conjunto de baile, onde você podia fazer o arranjo que quisesse. “Luzia” já existia nessa época, também “Prezadíssimos Ouvintes”, com letra do Domingos Pellegrini, vulgo Dinho. Então, eu e o Paulinho Bamabé fizemos o arranjo para a orquestra (uma orquestra legal pra caramba) com o maestro Benito Juarez. Quer dizer: antes de gravar o Beleléu pude me exercitar. Essa preocupação com o arranjo vem dessa época. Mas foi em 79, com os festivais da Tupi e da Cultura (quando toquei contrabaixo e fiz os arranjos de base para “Diversões Eletrônicas” e “Sabor de Veneno” do Arrigo) que eu saquei que essa era a minha linguagem. Mas aquelas ainda não eram minhas músicas. Era essa a minha linguagem na música do Arrigo. Minhas próprias composições ainda andavam quietas, era um outro trabalho, ali eu estava só como músico. Foi trabalhando com o Jorge Mautner, me exercitando como músico e organizando as coisas sonoramente, tocando violão de base, guitarra, contrabaixo, percussão, que resolvi procurar minha linguagem. Chegou o momento em que o Beleléu já estava pronto. Vieram as meninas do vocal, a banda, até chegar no Lira Paulistana, reduto dessa moçada que estava fazendo música em São Paulo. Aí o Gordo, amigo meu e dono do Lira, arrumou a gravação do show ao vivo. Depois fomos pro estúdio. Eu já estava com o disco pronto: eram 120 horas de som que já vinha trabalhando há um ano. Quer dizer, desde o começo a coisa ficou marcada como independente mesmo. Isso de manter meu trabalho independente é próprio da sua natureza. Não podia ser de outra forma, não podia ser de um jeito onde eu encontrasse restrições. Quando pintou a Blitz, o pessoal falou que eles estavam me copiando, mas a música era diferente, as meninas cantavam diferente, era tudo diferente.

 

A gente tem a impressão de que São Paulo, nessa época, era meio inexplorada, espécie de território livre para experimentações musicais. Quem estava chegando no começo dos anos 70 parecia vir de um vazio pós-tropicalista. Rolava algo de novo na música? Não é irônico também que a então chamada “vanguarda paulistana” fosse composta basicamente por gente de Londrina, como o Arrigo e o Paulinho Bamabé, o Robinson Borba, a Neuzza Pinheiro, o Sidney Giovenazzi, a Denise? Parece que antes disso não estava rolando nada.

Mas não estava rolando nada mesmo. Quem veio pra fazer a coisa rolar fomos eu e o Arrigo. Começamos a fazer as coisas acontecerem. A presença de “Diversões Eletrônicas” no Festival da Cultura foi algo muito importante. O Arrigo só ganhou por ser um festival universitário, já que sua música era muito estranha aos ouvidos bem comportados. Arrigo estudava na Escola de Comunicação e Artes da USP e me convidou para trabalharmos a música. Morávamos juntos, tínhamos um trabalho conjunto, mas cada um com sua linguagem. Chegou uma hora em que os trabalhos ficaram diferentes. Mas a primeira oportunidade de mostrar o trabalho foi em 79, neste Festival Universitário da Cultura, com a música do Arrigo. Depois veio o festival da Tupi, quando fiz os arranjos de base para “Sabor de Veneno”.

 

E qual foi o estranhamento que essas músicas provocaram? 

Nenhum, foram muito bem recebidas. O público era composto de universitários, gente que sentia falta do novo, e eles captaram isso: algo diferente estava acontecendo. Tinha grupos como o “Premeditando o Breque”, mas o que quebrou a estrutura mesmo foi “Sabor de Veneno”. Quando comecei a cantar “sabor de que?” e o público a gritar “DE MERDA! ” (com cinzeiro voando e tudo), falei: legal, chegamos, viva a vaia! Foi ali que comecei a ter noção do que estávamos fazendo, porque até então ninguém sabia o que era aquilo, nem os próprios concorrentes. 

 

Vocês tinham feito ressurgir o clima de rebeldia do tempo dos festivais. 

É isso mesmo. Foi naquele momento que os músicos do Rio e poetas como Augusto de Campos e Décio Pignatari — além do maestro Rogério Duprat — perceberam a gente. As pessoas que sempre viram o novo estavam vendo o novo de novo. 

 

Como é que as pessoas podem se alimentar de sua musicalidade se vocês não aparecem na TV? 

Desde que comecei a fazer shows, em 80, vejo que tem uma geração, um público que já mudou, uma moçada que só agora está descobrindo o Arrigo. Sinto muito isso nos meus shows, em relação a minha música. Gente que antes não sabia da nossa existência. Um número inesgotável de pessoas não têm acesso a essa informação musical porque não temos divulgação maciça. Nosso trabalho demora pra chegar no ouvido das pessoas. 

 

Você está numa posição semelhante a muitos artistas que passam a ter um reconhecimento internacional, mas que no Brasil encontram enorme dificuldade de trabalhar com as gravadoras. 

Acho que isso não é nada novo, não é? O Jobim tem aquela frase famosa, de que a saída do músico brasileiro é o aeroporto. Quando cheguei a Cumbica, antes de embarcar pra Alemanha, eu me lembrei disso. Não é só o músico brasileiro que tem esse tipo de dificuldade, e sim qualquer trabalho criativo que saia do convencional, tudo que tenha algo diferente a dizer, tudo que tenha uma linguagem. Fiquei dez anos no Brasil transando essa linguagem, e quando cheguei na Alemanha para uma tournée eles perceberam imediatamente a novidade. Não era samba, música pra tocar em boate. Esse som de casa noturna não é a minha transa. Cheguei lá e fiz o meu som. Foi a minha linguagem musical que conquistou os alemães. Por isso, pra trabalhos com linguagem própria — como o do Amigo e da Teté Espindola — não vejo outra saída, pelo menos em termos de divulgação maciça no Brasil. Na Europa viviam me perguntando qual era a diferença que eu via, entre lá e aqui, neste sentido. Falei que não sabia se eles aguentariam fazer música no Brasil como eu faço, mas que tinha certeza de como eles fazem eu aguentaria, e muito bem. Questão de estrutura. 
 

itamar assumpção
Itamar Assumpção em Show Vozes do Brasil, anos 2000. Foto: Mila Maluhy

 

A música parece ser, pelo menos a nível de massa, a antena mais alta. Quando pintou a Tropicália, com o Caetano cantando "Alegria Alegria” as coisas pareciam estar mais abertas. Dez anos depois surgem você e o Arrigo dando toques de que a barra estava pesando, como em “Baby Não se Assuste’”. O que você diz disso? 

Eu vejo que o mundo está mudando, só isso. Quando fui pra Alemanha, uma das potências mundiais, vi que musicalmente a gente estava numa situação privilegiada. De repente, estamos dando um rolé, o que será de nós? Não posso ficar me preocupando com isso, na medida em que tenho todo um trabalho a desenvolver também fora do Brasil meus discos vendem bem mais lá do que aqui. O último, Intercontinental, quem diria era só o que faltava, está até gravado em compact disc. Não sei o que será da música brasileira, meu negócio não é esse. Estou mais preocupado em não gastar energia inutilmente. Não é a escolha de um presidente que vai nos salvar do caos, isso pra mim está muito claro. Não é pessimismo. É o fato de você olhar pra onde vai o bonde do mundo e olhar pra onde nosso bonde vai. O terror seria mais ou menos esse: o de você ser otimista mas não encontrar nem aquela luzinha no fim do túnel. Tem muito túnel pra pouca luz. Hoje vejo o Gil voltado pra política. Oras, não dá pra cobrar do Gil um disco com novidades, não dá mesmo! O Gil entrou na política com o pé direito e o esquerdo. Eu não, estou com os dois pés na música. Pra ser político, teria que entrar com os dois pés na política e deixar a música. A novidade já não está mais com ele, e penso que seu posicionamento deixa isso claro. Acho que a novidade continua comigo, com o Arrigo, com a Neuzza, não vejo outra. Já tem outro novo? Cadê? Cadê? Não tem, essa novidade ainda está obscura, ninguém ainda sabe direito o que é. Tudo bem, relancei meus três primeiros discos agora, mas isso não quer dizer nada. Tenho um público grande, mas o Brasil também é grande. 

 

Como você vê toda essa diluição da música nos anos 80, esse sub-rock que estamos produzindo hoje, com as novidades pintando muito mais em decorrência de uma boa estratégia de marketing do que de talento? Hoje, por exemplo, cria-se um andróide que dança e canta e ele vende milhões. Como é que é isso? 

Continuo não vendo novidade. Vejo uns grupinhos de rock que vêm pro Brasil, dos quais nunca ouvi falar A — HA, Duran Duran, sei lá! A — HA vem e lota um estádio, mas isso também não quer dizer nada. Hoje há uma simultaneidade de coisas acontecendo. Na década de 60 tinha o rock, que era a linguagem da década. Tinha os Beatles, o Led Zeppelin, os Rolling Stones, o Jimi Hendrix… Hoje tudo acontece ao mesmo tempo. 

 

O que você tem ouvido? 

A mesma coisa que ouvia, muito Miles Davis. 

 

Você poderia falar da influência do músico negro norte-americano, como Hendrix e Miles, na sua música? 

Acho o seguinte: quando comecei a ouvir música quis conhecer da música européia à africana. Essa música feita pelos negros nos Estados Unidos e o jazz são o som mais rico até agora. Dentro dessa linguagem há trabalhos que eu continuo ouvindo. Sempre ouvi Ray Charles, Steve Wonder, Tina Turner, Michael Jackson, Prince, e os mais antigos: blues, como os do B.B. King. Hoje tem isso, tem aquilo e tem mais outra coisa que é a tecnologia. O problema é que na música brasileira existe um João Bosco, um Hermeto Pascoal, e outros. Tenho muita coisa pra ouvir. Não ouço só Miles Davis, também ouço esses caras. O que me alimenta musicalmente são eles. O novo não me alimenta mais porque não é dele que tiro minhas conclusões. É aquela história: “o novo não me choca mais/nada de novo sob o solo que existe é o mesmo ovo de sempre/chocando o mesmo novo”. Cruzei com o Hermeto num programa e ele falou que curtia muito minhas músicas. Improvisamos e conversamos sobre a capacidade incrível do músico brasileiro de improvisar, genuinamente brasileira. A MPB é rica demais: quando o Caetano, o João Bosco, o João Gilberto saem em turnée pelo exterior, sei o que está saindo daqui e indo pra lá. Não é qualquer coisa. Agora vejo o Caetano saíndo. Antes não via isso. Antes no exterior, eram sempre o Tom Jobim, o João Gilberto, o Taiguara. Agora o Djavan está fazendo carreira nos EUA, e todo mundo gosta dele na Europa, ele tem uma linguagem própria. Pra mim isso é MPB, e não só rock. A moçada que começou com rock e hoje faz MPB sabe que na história da música popular não adianta fazer rock. Rock pra mim é Rita Lee, Raul Seixas, que nunca fez outra coisa.

 

Há uma preocupação em seu trabalho em relação ao universo feminino, algo que tem muito fogo. Ao mesmo tempo você é muito sossegado, tem uma mulher, duas filhas. Como é sua relação com esse universo? 

Bem... Agora vou ter que apelar pro meu lado feminino pra responder essa pergunta — e vou respondê-la matreiramente. É engraçado o relacionamento homem-mulher. Até os vinte anos não me preocupava em namorar. A prioridade era jogar futebol. Em termos afetivos eu não tinha nada definido, era tudo muito confuso. Quando vim pra Sampa comecei a namorar uma menina aqui, outra ali, mas não entendia muito bem pra quê. Daí conheci a Zena, que é com quem eu vivo até hoje. Conheci-a durante uma peça, Arena Conta Tiradentes. Quando a peça terminou ele foi ao camarim e me deu a maior força. De qualquer forma, acho que com mulher ou sem mulher meu caminho teria sido esse mesmo, pois percebi, com o apoio da Zena, que era a música o que eu tinha que fazer na vida. Me sentia bem com ela, que é totalmente diferente de mim: na cor, visão de mundo, em tudo. A Zena trabalhava nos Correios, segurava a onda. Eu ficava cuidando da casa, cuidando dos filhos, compondo, fazendo trabalhos temporários. Aí começou uma pressão por parte dos parentes pelo fato dela ter que trabalhar fora, pegar metrô na Penha e ir ao centro às 4 horas da manhã. Eles não estavam entendendo nada. 

 

Como é que você vê essa questão homem-mulher? 

O que importa é a identidade com um tipo de sensibilidade que alguns homens têm, mas as mulheres muito mais. Foram sempre elas que me ajudaram. Nenhum dos homens que encontrei entendeu de cara qual era a minha. Certa vez, quando a minha sogra estava morando com a gente, chegaram quatro viaturas e levei uma geral na frente de casa. Eu sempre falava que aquilo existia mas elas não acreditavam, achavam que era paranóia minha. Quando viram aquilo, a Zena saiu correndo pra me defender, enquanto o guarda mandava ela calar a boca. Tive que acalmá-la, porque já sabia o que estava acontecendo: homens, entendeu? 

 

Como suas filhas encaram o Itamar artista? 

Vi mais claro depois que a Anelise e a Serena começaram a crescer. Quando foi num show meu pela primeira vez, a Serena levou aquele choque, ficou meio assustada, deu um nó na cabeça. Hoje elas vão ao show não porque são minhas filhas ou minha mulher, mas porque gostam da música. É uma música que faço bem perto delas, são minha primeira audiência. Na vida profissional, por exemplo, eu queria homens e mulheres para cantar, só que não tinha homem pra isso. Os homens tocavam mas não cantavam. Depois, quando eu já estava de malas prontas para ir embora pintou a Vera, minha advogada, que é quem cuida de tudo. Vai aos meus shows, vende os discos, é empresária, produtora. Tem a Alice Ruiz também, ainda mais agora que a gente está desenvolvendo um trabalho juntos. Do sexo masculino, desenvolvi alguma coisa mais plena com o Paulo (Leminski), meu pai e meu irmão Narciso. Acho que, em matéria de mulheres, sou um privilegiado. Se não fosse essa força eu não teria resistido. 

 

A Josely, nossa editora-assistente, acabou de ligar de Curitiba. Ela encontrou, dentro de um livro, um manuscrito de Leminski com perguntas prontas pra você. Posso fazer? 

Hã?

 

Leminski: “Como é seu processo de criação? Como é que Itamar Assumpção cria? Cria de noite ou cria de dia? Cria louco ou cria são?” 

Cria de noite/cria de dia./Itamar Assumpção cria louco/cria são. 

 

Leminski: “Como é que você se sente ou você é inocente depois de ter sido independente arranhando os discos e os bons modos da boa e velha MPB?” 

Me sinto muito bem, porque tenho tido uma resposta muito rica em termos de público. Valeu a pena fazer três discos independentes e mais um por gravadora. É como diz o Dinho em “Prezadíssimos Ouvintes”: “sorte não haver o que segure som', porque senão nada aconteceria, fui como compositor independente para fora do Brasil, meu próprio trabalho me levou a isso, não houve divulgação nem armação. É um trabalho que segue sozinho seu próprio caminho. Por isso, é independente, no sentido de ser uma linguagem que se define de modo diferente: da montagem do show, do estilo da banda à capa do disco. Me sinto bem com essa independência. Não estou preocupado com os rumos da MPB, e sim com os de minha música, já que é a única coisa que posso fazer. Neste momento estou preocupado em dar vida a um trabalho que estou elaborando com a poeta Alice Ruiz. Fica difícil me ocupar com um trabalho desse porte e ainda me preocupar com a MPB. Me recuso a assobiar e chupar cana. Se minhas músicas tocam no rádio ou na TV não estou nem aí, não é problema meu. Estou reservando minhas energias. Agora quero gravar um disco na Alemanha, e é isso que vou fazer. 

 

Seu método de composição é atípico, pois a estrutura de suas músicas é bem diferente do tradicional tema-estribilho-tema. Muitas têm estrutura circular (como “Girando”), além de uma singular harmonia. Como isso acontece?

É engraçado porque quando o Leminski me passou “Vamos Nessa” por telefone (incluída no disco Sampa Midnight) fiquei com aquilo na cabeça, era uma letra muito louca, não sabia o que fazer com ela. De repente, peguei o violão e comecei a cantar e a tocar, fazer umas harmonias diferentes, foi fluindo. Tinha uma harmonia que não costumo usar. Os acordes, diminutos, de quarta, misturados com um acorde natural, resultaram uma estrutura melódica “diferente”. Resolvi contar o tempo e vi que era cinco: um tempo ímpar com o qual nunca tinha trabalhado. Por aí você vê que cada música é um universo diferente. Nos discos tenho que fazer uma música com dois minutos, mas nos shows desenvolvo muito mais. “Clara Crocodilo", por exemplo, é toda quebrada, esquisita: seu tempo é de 7/8. Pra poder cantar “Clara” é preciso muita técnica, ser fera. Na nossa música não dá pra enganar, não tem como. 


Ultimamente a poesia tem aparecido cada vez mais no seu trabalho. Nos dois últimos discos você musicou poemas da Alice Ruiz, Paulo Leminski, Guará, Ademir Assunção, Régis Bonvicino. Como se deu essa aproximação com os poetas e a poesia? 

Nunca me julguei poeta. Tenho uma visão musical de poesia, porque na antiguidade a poesia vinha com a música, era uma coisa só. Esse contato com os poetas começou quando fui pela primeira vez cantar em Curitiba e fiquei três dias na casa do Leminski e da Alice. Já os conhecia de antes, quando Arrigo fez um show em Curitiba. Leminski me deu o Catatau, comecei a ler e não entendi nada! Foi quando ele me passou o fio da meada para eu sacar a história: que não havia mistério a ser desvendado. Era muito pra minha cabeça. Depois alguém me deu Cruz e Souza. Li e pensei: “Nossa, quem é esse louco? Ah, é o mesmo cara que escreveu Catatau. Mas o que é que esse cara tem?” Então comecei a me ligar na poesia dele e da Alice, fui lendo seus livros no ônibus pra São Paulo. Quando cheguei em casa tinha musicado alguns poemas. Assim, espontaneamente. 

 

Você vive dizendo que não é poeta. O que é que você quer dizer com isso? 

Prefiro o que os poetas escrevem do que o que escrevo. Música veio antes da poesia. Penso musicalmente. Se leio um poema já penso com ritmo, com melodia, com música. Minha relação com a poesia é essa: quando escrevo uma letra sei que ela vai virar música. Posso até escrever uma coisa aqui, outra ali, mas geralmente faço uma letra para que ela vire música. Daí a dificuldade de fazer poema, digamos, verbal. O que me toca, em matéria de poesia, é tudo aquilo que eu gostaria de ter escrito. Já me disseram que o que eu faço é poesia, mas não acho. Agora é que tenho tido mais necessidade de escrever poesia. Quando leio algo como “Bem que você podia/pintar na sala/da minha tarde vazia” (um poema do Ademir Assunção), acho genial. E acrescento: “como na poesia”. Isso não tinha no original. Com isso estou reafirmando a força da poesia ao dizer algo que não se explica. Quando surgem coisas assim eu vibro. Já existe muito poeta fazendo poesia, mas não muito músico legal musicando poesia. 

 

Itamar Assumpção e Leminski, 1988. Foto Lailson Santos
Itamar Assumpção e Paulo Leminski, 1988. Foto: Lailson Santos

 

Como foi musicar Navalhanaliga? Hai-kais podem virar música? 

A Alice escreve com ritmo, por isso a musicalidade está implícita. Peguei o violão e a música foi saindo naturalmente. Se eu fosse escrever poesia escreveria como a Alice e o Leminski. Mas não escrevo nada. Minha linguagem é a música. O que posso fazer é compor e cantar bem, dentro das exigências do meu trabalho. 

 

Mesmo assim, você ficou mais rigoroso em relação às suas próprias letras, não? A letra de “Sutil”, por exemplo, é um primor de poesia e montagem. Tem até um hai-kai ou vários hai-kais embutidos, inclusive um que diz: “a lua cheia/reduz nós dois/a pedacinhos”. Esse já é um hai-kai embebido da sua linguagem, do seu “itamarés”. Como você pode dizer que não faz poesia? 

Vejo isso desde o primeiro disco. “Nega Música” tem uma proximidade muito grande com a poesia, que chega “quando você menos espera”...

 

Qual foi a importância da convivência com o Leminski para seu processo criativo? Quando vocês se trombaram? 

Como disse, o Arrigo estava fazendo um show em Curitiba, e eu já lera o Cruz e Souza. Quando nos encontramos, o Leminski perguntou o que eu tinha lido de poesia. Falei que só João Cabral e Manuel Bandeira. Então, com a convivência passei a ler a poesia dele também. O Leminski foi alguém que cruzei naturalmente, a gente ia acabar se encontrando. Éramos como irmãos gémeos, sabe, não dá pra explicar. Foi uma pessoa artística e humanamente muito ligada a mim. Tenho uma música inédita com ele chamada “Dor Elegante”. Queria encerrar essa entrevista com essa letra porque é a cara dele. O cara sofreu pra poder ser minha última obra. É mais ou menos assim: 

 

“Um homem com uma dor é muito mais elegante 

Anda assim de lado 

como se chegando atrasado 

chegasse mais adiante 

Carrega o peso da dor 

como se portasse medalhas 

Uma coroa, um milhão de dólares 

ou coisa que os valha. 

Ópios, Édens, analgésicos 

Não me toquem nessa dor 

Ela é tudo que me sobra 

Sofrer vai ser minha última obra.” 

 

Então, ele levou fundo a ligação poesia com a arte, até as últimas consequências. Mas brincando, numa boa, com a ironia que era típica dele. Como ser humano acho ele incrível. A gente levava nosso relacionamento num sentido muito profundo, de vida mesmo, que incluía primeiro a criatividade e depois a questão de se levar uma linguagem até as últimas consequências, independente das dificuldades que possam aparecer. Acho que vivi com ele o que tinha de viver e vice- versa. Ele nos deixou tanta coisa pra fazer, as músicas inéditas que tenho com ele e que agora estou interessado em trabalhar com carinho. Na minha próxima ida à Europa queria levá-lo comigo, ele conhecia línguas e culturas tão bem. Antes não tinha sido possível. O Leminski era uma pessoa com uma estrutura muito forte para segurar toda essa onda. É muito louco você ter que viver de publicidade, jornalismo, fazer poesia e ser compositor. 

 

Uma última pergunta: qual é sua orquídea preferida?
Todas.

 

 

Neuza Pinheiro é poeta, cantora e compositora. É autora de  Pele&Osso, ganhador do Prêmio Nacional de Literatura Lúcio Lins(FUNJOPEJoão Pessoa-PB-2008). Integrou a banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção.

 

Rodrigo Garcia Lopes é poeta, compositor, romancista e tradutor. Publicou seis livros de poemas: Solarium (1994), visibilia (1996), Polivox (2001), Nômada (2004), Estúdio Realidade (2013) e Experiências Extraordinárias (2015).