ENTREVISTA | Claudecir Rocha 31/08/2023 - 09:28

Avesso à vaidade provinciana

Responsável por resgatar a epopeia paranaense A Guayrá (1891), de Rocha Pombo (1957-1933), o editor Claudecir Rocha comenta seu trabalho à frente da Anticítera e compartilha uma visão de mundo tão pessimista quanto a de Brás Cubas

 

João Lucas Dusi


Se vou entrevistar um editor brasileiro, a primeira ideia que vem à mente é óbvia: deve ser um sujeito preocupado com a demanda dos leitores nacionais. Não é exatamente o caso de Claudecir Rocha, que se autodenomina uma espécie de “pessimista incorrigível” à la Brás Cubas e está à frente da Anticítera desde 2015. Para ele, a resposta para meu floreio romântico seria algo como: “Quais leitores?”.

Apesar de não demonstrar muita animação em relação ao consumo de literatura no Brasil, o editor insiste em apostar na produção local mais ousada possível. Recentemente, resgatou a epopeia indianista A Guayrá (1891), de Rocha Pombo (1857-1933), a quem considera “o fundador da nossa literatura — o primeiro romancista, o intelectual orgânico que deixou um grande legado nas áreas da literatura e história”.

A ideia que faz Rocha continuar publicando literatura em um país no qual é difícil vender 100 livros, e no qual a troca de elogios vazios parece imperar entre ficcionistas e poetas, resvala quase na metafísica: imaginar que o futuro possível leitor possa, de alguma forma, fruir da obra que tem em mãos da mesma maneira que ele, enquanto editor, aproveitou. “A literatura, afinal, é o reflexo da nossa natureza”, avalia. “É a nossa marca no mundo. É nossa identidade.”

Nessa corda bamba entre uma esperança bruxuleante e um cortante pessimismo, o responsável por editar traduções de nomes como Byron, Keats e Baudelaire celebra a possibilidade de espalhar boa ficção e bons versos ao leitor nacional, mesmo afirmando que o brasileiro ainda troca “sua alma por espelhinhos tecnológicos para a contemplação das suas vaidades” e reforçando, insistentemente, o caráter provinciano do Paraná (e de Curitiba, especialmente). “Somos sabotadores da nossa própria cultura”, afirma.

A condição de doutor pela Universidade Federal do Paraná parece ter servido para que Rocha despertasse para a existência de boa literatura local — como a de Rodrigo Júnior, motivo de seu doutorado — e acabou, na contramão, reforçando a visão do editor a respeito de um desfavor perpetrado por uma parte do meio acadêmico preocupada em seguir modismos literários, os quais ele renega — já que, a partir desse modus operandi tendencioso, os estudiosos “condenam ou louvam autores que se adequam às convenções sociais da modernidade, mesmo que sejam os mais medíocres e falcatruas, bem como temos visto ultimamente”.

 

Você que é antenado, enquanto editor, na produção contemporânea: qual é o mérito literário d’A Guayrá e como compara essa epopeia em relação à produção poética de hoje?

A primeira coisa que evidencia o mérito d’A Guayrá (1891), de Rocha Pombo, é sua importância histórica, já que estamos falando de literatura paranaense do século 19. Naquela época, Paraná era um estado recém-emancipado de São Paulo, no qual tudo exigia uma urgência — criação da imprensa, estrutura governamental, urbanização etc. —, e Curitiba, sem as mínimas condições estruturais, passou de um vilarejo para a capital da província. Dentro desse contexto, A Guayrá é a primeira epopeia escrita no Paraná e considero seu autor o fundador da nossa literatura — o primeiro romancista, o intelectual orgânico que deixou um grande legado nas áreas da literatura e história.

Vale destacar, ainda, sua raridade como obra de arte: poucos exemplares sobreviveram ao tempo desde seu lançamento, em 1891, mesmo que a primeira edição tenha sido lançada em capa dura, recoberta de tecido e um papel especial tenha sido usado no miolo. Quando vi que os poucos exemplares sobreviventes estavam sendo vendidos por preços altos para colecionados, resolvi resgatar a edição. O mérito literário, por sua vez, está na obra em si: o empenho de Pombo ao construir uma epopeia em doze cantos com um tema importante não só para o Paraná, mas para compreender a história e a formação do Brasil. 

A comparação entre essa obra e a produção poética atual é bem complicada. São estilos, temáticas, estéticas totalmente diferentes. Além disso, não se pode dizer que A Guayrá teve influência na produção de hoje: é um texto desconhecido, pouco lido, como boa parte da literatura brasileira. Enquanto pesquisadores, no entanto, devemos saber que a literatura é sempre um construto social e, ao longo da história, vai se modificando. Todas essas mudanças, então, influenciaram — consciente ou inconscientemente — a formação da literatura contemporânea. De modo geral, existem — entre a literatura contemporânea e a produzida nos séculos anteriores — diferenças estéticas, de estilo, de temas; mudaram o poder de síntese, o rebuscamento da expressão e a retórica, que podia ser bastante ideológica e nacionalista, cheia de clichês. 

 

Por que alguém do século 21 deve conhecer obras como A Guayrá, de Rocha Pombo, e a produção completa de Emiliano Perneta, que a Anticítera está prestes a lançar? Elas ainda têm algo a dizer?

Para quem aprecia a literatura, sempre é tempo de conhecer obras e autores que fizeram parte da nossa formação literária e identidade. A literatura é um processo de descoberta e redescoberta constantes, e um escritor/leitor cismado consigo mesmo sempre encontra algo interessante em autores desconhecidos, principalmente quando se tem a cabeça aberta para compreender a literatura de cada época e se busca pensar a forma com que cada autor refletiu ou não seu contexto sociocultural. 

Fora isso, compreender a beleza de cada obra é compreender a si mesmo, repensar sua própria trajetória dentro da arte. Assim, buscar a beleza de uma obra como A Guayrá, de Rocha Pombo, e dos poemas e prosas da obra completa de Emiliano Perneta é tentar compreender parte dos seus processos de criação, todo o esforço desses poetas em transmitir suas mensagens, seus objetos de pesquisa, suas emoções, técnicas, escolhas de palavras, imagens e metáforas.

Além disso, os grandes autores modernos sempre estiveram em constante diálogo com a tradição. Apenas os medíocres acreditam que são completamente originais e inéditos. T. S. Eliot falou sobre isso em reflexões sobre poesia moderna e se trata de algo que muitos escritores do modernismo brasileiro, na ânsia de acompanharem o mundo, as tendências, não souberam lidar. Eles preferiram enterrar a pouca tradição que havia. É o que podemos chamar de provincianismo literário, que busca imitar estilos e tendências de países mais desenvolvidos. 

 

Na condição de doutor pela Universidade Federal do Paraná, acha que falta interesse das instituições públicas em preservar a memória literária da cidade? O que pode melhorar?

Muitas universidades federais acabaram globalizando seus objetos de estudo na área da literatura, no que surgiu uma preferência pelos autores estrangeiros mais frequentados ou mesmo por nomes desconhecidos. É uma espécie de vaidade provinciana, embora muitos pesquisadores, professores e estudantes ainda se dediquem ao estudo da literatura brasileira e local. Alguns, no entanto, são influenciados pelas correntes de certo modismo literário, que ora se afirma formalista, ora culturalista; ora o mais importante é a expressão verbal, ora o caráter subversivo da mensagem. A partir daí surgem tendências de buscar vinculações ideológicas de certas obras, sempre atrás da pluralidade de conceitos por meio de termos tão genéricos, emprestando aqui um brilhante raciocínio de Paulo Henriques Britto sobre a poesia de hoje. Assim, o discurso é quase sempre afetado por uma visão anacrônica devido à busca por respostas velhas para questões atuais, geralmente questões importadas, como é próprio de países subdesenvolvidos. E, com isso, condenam ou louvam autores que se adaptam às convenções sociais da modernidade, mesmo que sejam os mais medíocres e falcatruas, bem como temos visto ultimamente. Perde-se de vista o fato de que o caráter subversivo deixa de sê-lo quando se torna um padrão de análise e criação. 

As próprias cadeiras das universidades acabam sendo destinadas aos representantes de estudos culturais mais globais ou de cunho mais ideológico, porque ainda vivemos essa ânsia provinciana de sermos reconhecidos pelo mundo, o que é algo extremamente imaturo, já que ninguém lá fora está interessado se estamos traduzindo e estudando os maiores ícones da literatura universal. Além disso, existe uma barreira que nos isola: a língua portuguesa. Ninguém se importa, enfim. Não quero dizer que deveríamos acabar com os estudos da literatura universal. Não sou nacionalista, nem tão bairrista assim, apenas reforço a importância de se abrir mais espaço para literatura brasileira, afinal é o que somos. A literatura, afinal, é o reflexo da nossa natureza. É a nossa marca no mundo. É nossa identidade. E não acho que seja melhor nem pior do que já se produziu ou se produz em países de longa tradição literária. Não é à toa que poucos críticos se aventuraram a compreender nossa literatura e aqueles que o fizeram se tornaram referência — Antonio Candido, Alfredo Bosi, Wilson Martins, Massaud Moisés, José Guilherme Melquior, Silvio Romero e Lúcia Miguel Pereira, entre outros.

A mentalidade provinciana de Curitiba e do Paraná é ainda mais evidente: somos sabotadores da nossa própria cultura. Louvamos qualquer coisa que venha de fora. E isso não é de hoje. Eu mesmo desconhecia nossa produção literária local, sabia pouco sobre os autores do simbolismo e via quase toda nossa produção literária como medíocre, obsoleta e provinciana, salvando um ou outro — Dalton Trevisan, Paulo Leminski e alguns autores da minha geração. Quando me propus a estudar um autor desconhecido da literatura local no doutorado (Rodrigo Júnior), meu objetivo era esmiuçar e condenar essa mediocridade literária, mas o que descobri — no meio de muitos autores ruins e medíocres, como era previsto — foi um universo literário fantástico, autores interessantíssimos e que me impressionaram de tal maneira que os percebi injustiçados e apagados pela nossa autossabotagem provinciana. 

 

No “Canto Um” d’A Guayrá, lê-se: “(...) A terra toda/ É nossa pátria em frente do inimigo!”. Fazendo uma abstração desse trecho, provoco: falta união entre os escritores do Paraná? 

Se pensarmos que esse verso está num contexto de guerra, de sobrevivência, da formação da nossa nacionalidade e definição das fronteiras contra o domínio espanhol da região Sul do Brasil, podemos abstrair: continuamos na mesma condição, procurando nossa pátria. Mas não acredito que falte união entre os literatos, o que falta são leitores, pessoas interessadas na literatura, já que nossa literatura é um tanto autofágica, fica circunscrita em si. Escritores leem escritores. Claro que não é algo exclusivo do Paraná: atinge o país como um todo. Por isso, talvez, seria melhor afirmar que ainda estamos procurando nossa pátria, nossa identidade, como se fôssemos estrangeiros à deriva nessa ilha chamada Brasil, isolada por um mar de línguas.

 

rocha pombo
Rocha Pombo. Foto: Reprodução

 

Na época do lançamento d’A Guayrá, Estácio Correia — correspondente de jornais de São Paulo — atacou a obra e recebeu uma resposta debochada de Rocha Pombo. Falta essa troca de farpas no meio contemporâneo?

A troca de farpas críticas é muito importante na construção estética e identitária de um corpus literário e, consequentemente, o refinamento da literatura. A falta delas é consequência da falta de leitura, e isso preocupa. É, no mínimo, a constatação de que não se foi lido. Pena que há autores atuais muito sensíveis às críticas sinceras e que acabam levando para o lado pessoal quando se fala de sua produção literária; a partir daí, na falta de argumentos, demonstram imaturidade e toda sua mediocridade. São pessoas que se levam muito a sério, principalmente depois que recebem tantos elogios, prêmios, acabam se convencendo de que são melhores do que os outros, mas não passam de impostores. 

Já no caso da literatura made in Paraná, falta também certa reflexão crítica sobre nós mesmos. Ao longo da nossa história literária, praticou-se o elogio mútuo. Dos simbolistas aos escritores do século 20, praticou-se uma crítica que se retroalimenta de vaidades, e não de leituras mais profundas, na qual a personalidade do autor é mais cultuada do que sua obra. É algo que ainda vigora em torno de certas personalidades. Claro que nossa escassa produção literária também não propiciou a formação de espíritos críticos. Poucas vezes tivemos análises mais ousadas, mais imparciais, como as feitas por Wilson Martins, Temístocles Linhares, Newton Sampaio e o próprio Dalton Trevisan, com um famoso texto sobre Emiliano Perneta. 

 

Editar literatura contemporânea já é difícil. Agora, resgatar trabalhos de poetas e prosadores do século 19 parece quase loucura. O que te faz seguir em frente com a Anticítera? 

Na verdade, qualquer empreendimento editorial no Brasil é uma loucura. É um país com poucos leitores interessados na ficção e, na sua maioria, consumidores de autoajuda e best-sellers norte-americanos, principalmente os mais fúteis. Trabalhei muitos anos em livraria, conheci médias e grandes editoras, sei bem como funciona nosso mercado editorial. É algo bem complexo, ainda mais em um período no qual o livro disputa seus últimos suspiros com as novidades tecnológicas e internet. Agora, imagine se todos também tivessem o mesmo desejo por livros e não conseguissem ficar um dia sem ler, da mesma forma que não conseguem ficar sem acessar redes sociais. É tudo uma ilusão, assim como o é a ideia de que o mercado editorial está em expansão. Parece aquele slogan nacionalista (Brasil, o país do futuro), só que o futuro nunca chega.

Não sou utópico. Ao contrário, sou um pessimista incorrigível, assim como Brás Cubas sobre os possíveis leitores das suas memórias. Mas, talvez como todo editor independente que não está buscando apenas o lucro, acredito que minha obsessão de publicar está ligada ao desejo de que outros leitores vejam e sintam as mesmas coisas que sentimos nas obras que publicamos. Mesmo sabendo que o brasileiro médio é capaz de pagar muito caro por um celular e trocá-lo por um novo uma vez ao ano, mas reclama se um livro custa 50 reais. E, se compra, suspira como Macunaíma: “Ai, que preguiça de o ler”, e o livro acaba como um objeto empoeirado de decoração numa estante qualquer. Enfim, o brasileiro não deixou de ser um “tupi tangendo um alaúde”, trocando sua alma por espelhinhos tecnológicos para a contemplação das suas vaidades.

 

Byron, Keats e Baudelaire são alguns autores estrangeiros, festejados mundo afora, que você publicou. Comparados aos nomes nacionais lançados pela Anticítera, como B. Lopes ou o próprio Rocha Pombo, é possível afirmar que os primeiros citados são realmente melhores? Há algo essencial que os diferencia? 

A comparação é sempre algo pobre no mundo das artes. É a determinação de que algo é melhor ou pior do outro, como se existisse uma escala de valores absolutos. No entanto, é algo difícil de contornar: nosso juízo de valor sempre busca estabelecer essas relações; no mundo da literatura, acontece a mesma coisa. É óbvio que existe literatura ruim e boa, bem executada ou não, gênios e medíocres, e isso se estende por todas as áreas da arte. Para quem estuda literatura, sabe que uma obra que sobreviveu a inúmeras leituras e ainda desperta desejo de novas leituras é porque há algo que nos faz retornar a ela, como Italo Calvino diz: um clássico é uma obra literária que sempre tem algo a nos dizer. Então, Byron, Keats, Baudelaire, Heine, Goethe e tantos outros sempre têm algo a nos dizer, assim como os poetas brasileiros Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Manoel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e, por que não?, aqueles não sobreviveram às leituras ou que nem foram lidos, como B. Lopes, Rocha Pombo, Emiliano Perneta, Moacir de Almeida, Sousândrade, Maranhão Sobrinho, Wenceslau de Queiroz e tantos outros.

Pesquisar literatura é perceber que é necessário existir uma quantidade enorme de autores/poetas ruins, medíocres ou injustiçados produzindo para que surja um gênio no meio deles, pois são eles que propiciam o refinamento na construção estética de um grande nome. Essa questão foi brilhantemente comentada por Amadeu Amaral no seu elogio da mediocridade. É fato que, se não fosse uma gama de escritores produzindo literatura em determinado contexto, não teríamos um Machado de Assis, um Guimarães Rosa, um Lima Barreto, um Graciliano Ramos, um Dalton Trevisan. Todos são resultados de um longo processo de depuração, especialização do discurso e refinamento da linguagem. 

 

Há algum outro importante resgate literário em vista? Quais são os próximos passos da Anticítera?

O resgate mais importante é, sem dúvida, O Guesa, de Sousândrade. Um poeta injustiçado, mas que foi reconhecido pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, nos anos 1960, que viram nele um poeta que usava recursos de linguagem bastante modernos para sua época. Minha edição traz um estudo e atualização do poema pela pesquisadora Luiza Lobo.

Além desse, a obra completa do Emiliano Perneta, considerado o principal poeta paranaense, está sendo finalizada. A edição, de aproximadamente 700 páginas e financiada via lei de mecenato pela Fundação Cultural de Curitiba, reunirá toda a poesia e prosa que eu e Ivan Justen Santana conseguimos pesquisar até o momento. Há centenas de textos inéditos. 

Na mesma linha da literatura local, tenho outros projetos em análise: a reunião da poesia de Silveira Neto e Dario Veloso e o livro Os Passos de D. Pedro II em sua Visita a Curitiba, do autor Paulo Roberto Grani, deficiente físico que sonha publicar seus escritos. Além disso, tenho projetos prontos para publicar, como a obra poética de Tasso da Silveira, Rodrigo Júnior, Júlia da Costa, Laura Santos e Ada Macaggi, entre outros. Pretendo, também, fazer uma nova edição da obra completa de Emílio de Menezes a partir da edição da Cassiana Lacerda Carollo, uma edição do livro No hospício, de Rocha Pombo, e reunir a obra poética de Colombo de Sousa, José Cadilhe, Scharffenberg de Quadros e tantos paranaenses que tenho certo apreço. 


 

João Lucas Dusi é autor do romance O Diabo na Rua (2022) e dos contos de O Grito da Borboleta (2019). Vive em Curitiba (PR).