CONTO | Tiago Feijó 31/08/2023 - 08:16

Nossos Mortos

 

Mesa simples num canto da cozinha. O perfume do tempero materno do almoço de domingo satura o cômodo inteiro. Uma panela de pressão chichia no fogo a todo vapor. A portinhola do forno range ao ser aberta e a mãe dá uma garfada na carne assada para constatar a maciez das fibras, enquanto o bafo quente e cheiroso de gordura lhe enche a boca de um aguado apetite.

— No ponto! — e a sentença vem acompanhada de um abundante cheiro do alecrim.

A filha faz que não escuta e nada responde, atenta que está em recolher da mesa os esquecidos farelos de pão do café da manhã. Depois, toda lépida, a jovem entra a abrir armários e gavetas, pondo a mesa como se dançasse uma valsa. 

E talheres triscam pratos, copos se brindam por acaso a caminho da mesa, a jarra com tulipas postiças é retirada do centro para dar lugar aos descansos de panela. E a cozinha cresce em sons e ruídos que vão espicaçando a fome grande na boca da filha. Agora é a mãe que vem com a travessa do assado, um bolo de carne suculento rodeado de molho borbulhante. E vem a cumbuca de feijão gordo, fumegante, os pedacinhos de alho boiando no caldo grosso; e vem a panela de arroz, branco de gostoso, a escumadeira dentro dela; e vem o quibebe, salpicado de cheiro verde, pintando a mesa de cor; vem a travessa de salada: rúcula, tomate, cenoura, cebola; numa xícara, o mesmo temperinho de sempre: mostarda, limão e sal. Por fim, a filha traz da geladeira a jarra de suco de manga, os cubos de gelo repicando contra o vidro. 

Mesa posta, mesa farta. Há comida suficiente para muitas bocas, mas somente as duas sentam-se à mesa, como há algum tempo o fazem, almoçando diariamente juntas, mãe e filha. Quem visse a cena estranharia o exagero, mas a mãe ainda não se acostumou a cozinhar apenas para elas. Retirou dois dos quatro pratos que havia na mesa, mas esqueceu de retirar a água do feijão. Esqueceu também de retirar o pano de prato do ombro e sentou-se à mesa com ele. Mas, a um olhar da filha, a mãe se dá conta do desleixo e vai estendê-lo na pia. 

A jovem sorri da desatenção da mãe. Desde sempre ela foi assim, pensa a filha feliz e faminta. E as duas começam a se servir em silêncio. E comem em silêncio também, um silêncio completamente diferente da azáfama que há pouco espocava por todo canto da cozinha. De repente, sem nenhuma motivação senão a mera existência de uma lembrança, a filha dispara:

— Lembra do que o pai gostava de fazer?

Levanta ágil da mesa, e logo está de volta com a cuia de farinha de mandioca, e põe uma conchada de feijão no canto do prato.

— Ele amassava bem amassadinho o feijão — com o garfo a filha desfaz grão por grão —, colocava uma colher de farinha — salpica cuidadosa a farinha sobre o feijão —, depois em cima da farinha ele punha o caldinho da carne — com uma colher ela colhe da travessa do assado um caldo cor de ferrugem —, e fazia uma maçaroca de tudo. Comia com gosto. Lembra, mãe?

A mãe está paralisada, estática, segura o garfo no ar e olha fixo para a filha.

— Ele gostava da comida da senhora — continua a jovem —, e gostava dessa comida: arroz, feijão, abóbora. Comia com gosto. Lembra que um dia a gente fez lasanha pra ele, já no finzinho, antes dele morrer? Ele disse que comia, mas que não gostava daquilo. Gostava era de arroz e feijão, lembra?

A filha sorri novamente, achando graça da lembrança. O garfo na mão da moça vai compondo a maçaroca ensinada pelo pai, a mesma que o garfo do pai compunha guloso. E ela vai comendo tal qual o pai, com gosto, aquela saudade relembrada na ponta do talher. Não há uma nota de tristeza nos gestos da filha, nem nas palavras dela. Apesar da recordação saudosa, da exumação de um morto em pleno almoço de domingo, a conversa entre mãe e filha nasce limpa, espontânea, sem a remota possibilidade de reabrir antigas feridas.

— Ele gostava também, no finzinho do almoço, de pôr no prato um último punhadinho de arroz — e a moça deita no próprio prato meia escumadeira — e depois jogava por cima o molhinho do bife e o restinho da cebola — e colhe novamente uma colher do caldo do assado para manchar de ferrugem o arroz branquinho —. Lembra, mãe?

Mesmo a mãe, apesar de estática, os olhos fixos cravados na filha, mesmo a mãe não demonstra sofrimento algum, não há dor alguma no seu olhar. O seu deslumbramento vem do espanto, da surpreendente novidade posta à mesa num almoço que pretendia ser o mesmo de sempre: cotidiano e trivial. E mais: há também, na mãe, além da surpresa, uma espécie de alegria leve, quase felicidade, porque a filha, assim repentina e genuína, como que inventou um jeito de trazer de volta à mesa o pai morto. 

É como se a moça recolocasse na cabeceira o prato que fora retirado outrora e dissesse: senta aí. Agora, diante da filha que arremeda com tamanha naturalidade os trejeitos do pai, o que a mãe vivencia é o breve retorno do falecido marido, dos seus modos, dos seus gestos tão bem fixados pela filha, que então, neste maravilhoso almoço de domingo, mastiga como o pai mastigava, empunha a faca como a empunhava o pai, e pede à mãe, tal qual fazia o marido, que passe a ela a travessa de salada.

— Lembro sim, filha! Claro que lembro! — diz a mãe, saindo devagar do seu torpor e passando a travessa de salada à filha — Sua vó ralhava com ele quando ele colocava mais sal na comida, escondido da gente. Era engraçado. Dois velhos brigando por causa de sal na comida. Seu pai parecia uma criança. 

— A vó gostava de comer de colher — e a filha se solta num sorriso sonso, devolvendo a salada à mãe — Comia bem devagarinho.

E as duas, mãe e filha, transportando a mesa inteira para antigos domingos, põem mais um prato retirado há tempos do seu lugar costumeiro. A mesa agora está completa: pai, mãe, filha e aquela vó, falecida meses antes do genro.

— Sua vó também gostava de ver seu pai comendo, dizia que ele comia com vontade, que dava gosto cozinhar pra ele. Ele gostava do doce de abóbora com coco que ela fazia, e ela fazia só pra ele porque ninguém mais comia.

Brota um silenciozinho na rabeira desta última palavra. E o silêncio cresce moroso, frágil, quase quebradiço. As duas mastigam vagarosas aquela comida que atravessa os tempos, comida posta numa mesa do passado, o gosto de saudade se esparramando na língua delas. Mas não há dor, não há sofrimento; pelo contrário, a mesa está completa, comem os quatro a sagrada refeição da família. A filha, cuidando não macular o silêncio, enche de suco o copo da mãe e em seguida enche o seu próprio copo. 

— Seu pai gostava mesmo de comer, era o que mais gostava — diz a mãe, abarcando com os olhos a fartura da mesa —. Depois da doença ele entristou muito, não podia comer mais nada, tudo tinha que ser sem sal. Tudo medido, contado, somado. Um tiquinho de sal por dia, a comida ficava sonsa. Até eu perdi o gosto de comer.

A mãe se interrompe porque a filha inicia novamente a tarefa de compor a maçaroca inventada pelo pai: amassa os grãos de feijão, salpica farinha, deita uma colherada do caldo do assado. E é tamanha a destreza da filha que a mãe vê ali a antiga destreza do marido, daquele seu marido de antes, de antes da rigorosa dieta imposta a ele.

— O coitado não podia comer mais nada — continua a mãe —. Até água tinha que ser regulada, lembra? Lembro do seu pai aflito, acordando de madrugada, dizendo que estava com sede, um trabalhão medonho para convencer ele a não tomar um copo d’água cheio. Eu tinha que acordar a sua vó, só ela conseguia pôr ele na linha. Ela vinha uma fera do quarto, mostrava o pé dela cortado no meio, um toco de pé, e dizia firme pra ele que ela também, com setenta e tantos anos, que ela também tinha que se controlar para que a diabetes não a levasse. Daí seu pai punha dois dedos d’água no copo e voltava fulo pro quarto. Ele sempre respeitou a sua vó como um filho.

A mãe enfia uma garfada de comida na boca e volta a mastigar a viva lembrança de outros tempos, lembrança essa desabrochada pela fértil primavera da filha e lançada como uma flor sobre a mesa de domingo. 

— Dia desses encontrei no armário aqueles saquinhos de sal que a senhora comprou, lembra? — agora é pela mão da filha que se desfia o tecido da lembrança — Tinham a medida certinha pra um dia. A gente punha um pouquinho no almoço e guardava o resto pra janta. Quando ele não punha sal na comida escondido da gente, né? Lembro que nas tardes quentes, pra ele se refrescar e matar a sede, a vó dava uma pedra de gelo. Uma pedra de gelo por dia, era a alegria dele, parecia um menino chupando um sorvete delicioso. Uma pedra de gelo. Coitado do pai, nunca vi doença mais cruel.

A filha cruza os talheres sobre o prato, sinal que capitula o fim do seu almoço. A mãe tem os olhos boiando na mesa ainda cheia de comida, um punhado de rúculas crivadas no garfo suspenso no ar, o pensamento distante quase empanturrado de memórias.

— Teve um dia, aqui mesmo nessa mesa, não esqueço, como se fosse ontem, seu pai estava muito doente, já no fim, ele me disse: “De que adianta essa luta toda? Pra que todo esse sacrifício? Não vale a pena viver dessa maneira, não. A gente com privação de tudo. Não se pode nem comer com decência. De que adianta viver assim?”. Acho que foi ali que ele se entregou de vez.

Não há tristeza, tampouco sofrimento nesta mesa de domingo. Apesar do silêncio grosso que agora desaba pesado sobre elas, apesar da saciedade efetiva na boca das duas, apesar da maneira baixa e calma com que a mãe rezou aquelas últimas palavras do seu antigo drama, apesar de tudo isso, não há tristeza, tampouco sofrimento. Não. Não há. A aceitação já se consumou há muito tempo no espírito de ambas. E, afinal, a mesa está completa. 

A mãe se levanta, satisfeita. Na boca, ela prova ainda um restinho de saudade como quem aproveita o gosto final da última colherada de sobremesa. 

É hora de retirar os pratos.

 


Tiago Feijó é professor e escritor. É autor dos livros Insolitudes (7letras, 2015), Diário da Casa Arruinada (Penalux, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e Doze Dias (Penalux,2022). Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura.