CONTO | Nícolas Wolaniuk 31/07/2023 - 15:45

A estranha morte de Madalena Xavier

 

O olho esquerdo de Madalena Xavier se fechou para sempre, o direito se arregalou até desprender da órbita, os livros que carregava caíram de seus braços e o corpo desmoronou como se os ossos tivessem se liquefeito de uma hora para outra. Tinha trinta e tantos anos e era a mulher mais bonita que já tínhamos visto.

Os legistas não conseguiram determinar a causa da morte. O que a princípio pareceria um infarto ou um aneurisma prematuro ganhou contornos misteriosos quando se constatou a desordem interna de seu organismo. Como peças ainda embaralhadas de um quebra-cabeça, cada um de seus órgãos ocupava o lugar de outro, em uma anatomia inédita e impossível. Seu coração estava no antebraço direito. Os intestinos esticavam-se em espirais ao redor do fêmur. O baço estava na testa, comprimido dentro do crânio ao lado do pulmão, por cima dos ovários. O cérebro estava encaixado dentro da bacia.

A coisa era de tal modo inverossímil que decidiu-se que não era real. O caso foi abafado e os médicos, julgando mais fácil duvidar da memória e dos sentidos que da própria concepção de realidade, atribuíram a necrópsia inaudita a um delírio coletivo. Foi enterrada antes que os boatos vazassem e, quando vazaram, ninguém lhes deu crédito.

Eu também não acreditava em magia até conseguir colocar os acontecimentos em ordem.

No dia da morte, não vi Giovani Belinati. Assim que as ambulâncias levaram o corpo inconsciente de Madalena para o hospital, julguei que tinha o dever de avisá-lo. Encontrei-o na ala de emergência, quando a morte já tinha sido confirmada. Giovani tinha os olhos inchados e o cabelo desgrenhado. Batia na parede falando consigo mesmo: Me desculpe, Madalena, eu não sabia.

Como não se conseguiu estabelecer qualquer possibilidade de homicídio, ninguém pode acusá-lo de nada. A verdade era que todos os fatos depunham a favor de sua inocência. Madalena, recém-chegada de uma longa estadia em Porto Alegre, não via Giovani há mais de um mês.

Eu teria aceitado esses eventos como parte da cota razoável de impossibilidades acontecíveis que a consciência comporta se, à lembrança do comportamento de Giovani no hospital, não tivesse se somado mais uma evidência de seu envolvimento sobrenatural no caso. No dia do enterro, o terceiro após a morte, segui Giovani pelas veredas do Cemitério Israelita até o altar das velas, onde o vi com um envelope na mão. Com ar grave, Giovani depositou o papel sobre as chamas e saiu apressado, com o gorro na cabeça e as mãos nos bolsos. Resgatei o texto apenas parcialmente chamuscado.

Tratava-se de uma espécie de feitiço verbal de curta extensão, proferido pela própria carta, em primeira pessoa, em que ela propunha se sacrificar em troca da expiação dos pecados de Giovani. Que a minha combustão apazigue a angústia daquele que não compreendia o que estava fazendo. Queimando, expurgarei Giovani Belinati da culpa pela morte de Madalena Xavier, porque isto que teve mana de matar, isto também terá mana de redimir.

Mantive distância — da história e de Giovani — até alguns meses após a morte de Madalena. Na última semana de inverno, quando já não conseguia suportar na consciência a mácula da covardia, abordei Giovani algumas quadras abaixo da universidade.

— Não há razão para esconder nada agora, respondeu, protegendo-se da chuva sob a marquise. A verdade é tão absurda que posso gritá-la em voz alta. Eu matei Madalena, tive a intenção de fazê-lo e sou culpado, embora minha grande falta tenha sido excesso de inocência.

— Como?

— Pergunte ao Émile. Como ele te dirá, foi uma demonstração totalmente inesperada do poder da linguagem.

Émile, quando lhe perguntei, contou que Giovani o procurara há mais ou menos um mês, curioso a respeito do vodu haitiano. Não pudera, contudo, ajudá-lo: filho de pais católicos e devotos, Émile crescera assombrado pelos ubíquos boatos a respeito dos zobop.

— Mas ele não entendeu, me disse Émile. Ele queria saber. Perguntou se eu sei fazer os bonecos, mas eu não vi, nunca, nenhum boneco.

— Giovani te contou por que ele estava interessado? Em vodu?

— Ele queria aprender magia. Magia de imitação. Eu não podia ajudar ele.

— Você orientou, de algum modo? Recomendou o contato de alguém? Talvez um livro?

O haitiano, que já falava português muito bem, fingiu que não tinha entendido e respondeu em crioulo para que eu não entendesse. Eu já tinha, de qualquer modo, pistas suficientes para elaborar uma hipótese que, se não era verossímil, ao menos era coesa. Giovani me recebeu em sua casa na semana seguinte, depois de eu ter insistido algumas vezes para encontrá-lo. Suas mãos tremiam enquanto servia o uísque.

— Giovani, disse a ele, sentado na cadeira oposta à sua, compreendi, ao menos em parte, o que aconteceu. Mas um detalhe ainda me escapa.

O copo aguardava, a meio caminho.

— Émile não acredita no vodu, terminei.

— Ele não professa, mas sei que acredita, porque tem medo. Ele me disse que conheceu no Haiti pessoas que, uma vez levadas a uma cerimônia de vodu, nunca mais voltaram a ser como eram.

— Ele não conhecia a prática dos bonecos.

Giovani confirmou com a cabeça.

— Apesar disso, Maria está morta, continuei. E você me disse que a matou. Você só pode tê-la matado de longe, sem tocá-la, sem intermédio de objetos. Isto é, por magia. Entendi bem até aí?

— Irrepreensivelmente.

— Então você aprendeu por outros meios a fazer os bonecos?

— Vou deixar que você veja com seus próprios olhos.

Giovani se levantou e saiu da sala. Quando voltou, tinha nas mãos páginas manuscritas.

— Está aí. Que os deuses que existirem, se existirem, julguem meus atos. Eu amava Madalena.

Eram quatro e cada um continha um texto diferente de extensão aparentemente idêntica. O primeiro deles começava com uma tentativa de descrição psicológica de Madalena Xavier. Era uma prosa truncada, repleta de frases de sagacidade duvidosa, ainda que plenas de convicção. Madalena tem em si o impulso moral enfraquecido por sua contenda psíquica contra a tendência narcisista, ainda que seja sempre bondosa com as pessoas pelas quais têm estima. A culpa funciona para ela como uma espécie de remissão tardia da sua impulsividade irrefletida, bem como um salvo-conduto para a expressão incontida de seus impulsos futuros. Depois de parágrafos assim, Giovani, em uma transição inábil, traçara a narrativa das indas e vindas da sua relação com Madalena. A aproximação tímida nos cafés do centro, a inventividade erótica das primeiras noites, a súbita distância de Madalena e o ressentimento solitário de Giovani; tudo estava lá nas linhas claudicantes da prosa de meu colega.

O segundo texto, por sua vez, era bastante semelhante ao primeiro. Tinha mais ou menos as mesmas palavras, em uma ordem aproximada, mas algumas inversões de ordem faziam as sentenças soarem estranhas, além do limiar da gramaticalidade. O terceiro era uma exacerbação deste procedimento. Os agrupamentos de palavras sequer formavam verdadeiramente sentenças e só pude projetar algum resquício de sentido textual naquilo porque reconhecia ali o fluxo lexical aproximado do primeiro e do segundo texto. Como seria de se esperar, o último dos textos levava essa estratégia de rearranjo ao paroxismo. Na verdade, se eu não tivesse lido os passos precedentes, o quarto manuscrito me pareceria um conjunto aleatório de letras, sinais gráficos e espaços. Só a progressão dos escritos me permitia intuir que o número total de cada um dos caracteres se mantinha rigorosamente o mesmo entre o primeiro e o terceiro texto.

— Ainda não entendo, confessei.

— Quando conversei com o Émile, estava interessado nos veículos de magia imitativa. Acredito que exista uma parte de nossa consciência que confunda semelhança com identidade, identidade com domínio. Por isso, em várias sociedades, práticas mágicas atribuem um poder aos objetos intimamente ligados a alguém. Os bonecos de vodu são um epifenômeno da magia imitativa. Cria-se um boneco análogo a uma pessoa e espera-se que a pessoa sofra analogamente ao boneco.

— Mas Émile disse que eles não são comuns de verdade no vodu. . .

“Parece que não, realmente. Mas os bonecos não são o único tipo de magia imitativa que existe. Quando conversei com Émile, ele me contou sobre um tipo de brincadeira infantil, em que se escrevia as coisas que não aconteceram, acreditando-se que, escritas, teriam mais chance de acontecer. Refletindo, percebi que isso é também um modo de magia imitativa. Apenas que neste caso a imitação é textual, a mímesis. Foi essa prática que me inspirou. Fiz um boneco de Madalena que não era de pano, mas de palavras. Meu boneco de vodu foi o texto.

Primeiro escrevi uma descrição da alma de Madalena, continuou Giovani, tão bem quanto pude. Depois escrevi nossa história juntos. Amparado pela memória, tentei recuperar seu rosto das lembranças. Fiz um grande esforço para descrever com justiça seus gestos e toda particularidade de sua linguagem.

Em uma tarde, estava feito meu boneco. Agora bastava destruí-lo.

Comecei invertendo sintagmas dentro das frases como quem desembaralha um quebra-cabeça. O resultado era apenas ligeiramente estranho e não houve magia. Em outra tentativa, inverti as palavras livremente até obscurecer completamente o sentido. Mais uma vez, sem efeito.

Claro que, enquanto fazia isso, motivado por um ressentimento rancoroso, não pensava que realmente tinha poder sobre Madalena. Tinha raiva dela. Em certo âmbito consciente e superficial da minha atividade psíquica, desejava-a morta, embora não ache que alguma vez fui capaz de desejá-lo verdadeiramente. Só fiz o que fiz porque não acreditava na magia, pensava que eram apenas artifícios para entreter a consciência, brincadeiras dos povos primitivos. Imitava um feiticeiro com determinação porque desacreditava da feitiçaria. Mas, assim que fiz a última operação, tornando o texto um emaranhado desconexo de símbolos, uma mancha negra turvou minha visão e um fedor sulfuroso tomou conta do meu quarto. Demorou dez minutos para que meu telefone tocasse com sua ligação.

De início não acreditei que tivesse assassinado Madalena. Em negação, fui até o hospital gargalhando nervosamente da coincidência entre o mal súbito dela e meus sortilégios de diletante. Só quando ouvi do seu pai o resultado absurdo da autópsia que tive que admitir para mim mesmo a realidade da magia — e da minha culpa. A desordem dos órgãos era o análogo biológico da desordem textual dos signos da escrita.

Em uma tentativa desesperada, acreditei mais uma vez no poder mágico da linguagem. Escrevi em um pequeno papel um contrato com o universo, esperando, como as crianças da memória de Émile, as minhas que as divinações criassem a realidade. Isto que teve mana de matar, isto terá mana de redimir, eu pensava. Mas não funcionou. Dizem que é mais difícil reverter as consequências dos feitiços que lançá-los. Queimei o papel no altar de velas do Cemitério Israelita, mas não me livrei da culpa.”

Giovani terminou de falar e virou em um só gole o que restava em seu copo. Não tornei a vê-lo desde então.

Por muitos meses, o assassinato de Madalena ocupou integralmente minha consciência. Não havia dia em que eu não lembrasse dela, não havia dia em que eu não amaldiçoasse Giovani. Como um tolo, diversas vezes olhei para este manuscrito inacabado, me perguntando se, ao desorganizar os seus caracteres, conseguiria matá-lo como ele pudera matá-la.

Há algumas semanas, escrevi este pequeno texto em uma folha de caderno: Eu, papel, me sujeito ao sacrifício para poupar meu autor da lembrança do amor que nutria por Madalena Xavier. Que a minha combustão apazigue a angústia daquele que não teve culpa nenhuma nos acontecimentos que lhe afligem. Isto que teve mana de matar, isto também terá mana de redimir. Queimei-o nas velas da Igreja Ucraniana, cuidando de acompanhar vigilante a combustão até o fim. Não posso dizer que a magia funcionou completamente, porque ainda não a esqueci. Também não posso dizer que não funcionou: já não lembro de sua morte todos os dias.

Enquanto via queimar meu sortilégio de papel, cogitei devolver às chamas o feitiço escrito por Giovani. Ainda não consegui, mesmo que às vezes, nas manhãs de sol, ele já me pareça um amigo, cúmplice da mesma dor.


 

Nícolas Wolaniuk é graduando em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Publicou o zine de poesia O Linho e a Lã e prepara o zine Onde Está Bouazizi?, que incluirá “A estranha morte de Madalena Xavier” — um dos contos ganhadores da 5ª edição do Concurso Literário Luci Collin, promovido durante a XXV Semana de Letras da UFPR.