Perfil do Leitor | Caco Galhardo

Tudo é narrativa

Literatura, dramaturgia e artes gráficas estão intimamente ligadas na trajetória do cartunista Caco Galhardo


Omar Godoy

Foto: Kraw Penas

A literatura e os quadrinhos sempre fizeram parte da vida do cartunista Caco Galhardo, mas ele faz questão de separar as duas coisas. “São experiências diferentes. O quadrinho tem uma linguagem própria, uma dinâmica particular. É claro que a literatura está ali enfiada, tudo é narrativa. O cinema, por exemplo, também influencia as HQs e vice-versa. O mundo é um belo de um minestrone”, afirma.

Criador da tira Os pescoçudos (substituída em 2010 pela série Daiquiri), Galhardo reveza seu ofício diário na Folha de S. Paulo com a produção de roteiros para a televisão, peças teatrais e ilustrações para livros e veículos todo o país (incluindo este Cândido e a revista de cultura Helena, publicados pela Biblioteca Pública do Paraná). Ou seja: texto e imagem estão intimamente ligados em sua atividade. Às vezes, o artista trabalha em dobro, como no caso da adaptação do clássico Dom Quixote, que terá um segundo volume publicado até o final deste ano. “Ilustrar é fácil, você lê o texto e as imagens veem à cabeça, é só colocar no papel. Difícil é adaptar e escrever”, diz Galhardo, um ex-fanzineiro que se formou em Comunicação na Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP). Há, ainda, o que ele chama de “processo invertido”, como aconteceu no livro O banquete — As gostosas de Caco Galhardo, assinado em parceria com o escritor Marcelo Mirisola. “Esse projeto é o meu xodó. Eu tinha não sei quantos mil desenhos eróticos de mulheres e mandei tudo para o Mirisola. Ele deu nomes e escreveu pequenas histórias para cerca de 30 delas. Em vez do ilustrador ilustrar o texto, o escritor é que ‘ilustrou’ os desenhos”, explica.

Essa aproximação com a literatura surgiu ainda na infância, quando Galhardo se dividia entre os gibis da Turma da Mônica e livros juvenis como Os meninos da rua Paulo (Ferenc Molnár). Pouco tempo depois, vieram as primeiras leituras mais “adultas”: best-sellers americanos (Sidney Sheldon, Harold Hobbins, Morris West) e cronistas brasileiros (Fernando Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos). “Meu pai era aficionado por crônica. Uma vez, ele me deu um livro do Stanislaw Ponte Preta e, aí sim, foi uma grande descoberta para mim. Talvez a coisa toda tenha começado aí, com o Sérgio Porto. Um cartunista de tiras diárias é uma espécie de cronista”, afirma o artista, que num momento seguinte se envolveu com o que chama de “coisas meio estranhas”, completamente desconhecidas dos seus colegas de escola.

Esta lista da juventude inclui autores como John Fante (“Sonhos de Bunker Hill tinha uma liberdade e uma poesia que me pegaram pela goela”), Bertolt Brecht (“Era apaixonado por Na selva das cidades e Mahagonny, li a coleção inteira”), Albert Camus, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Rubem Fonseca e, claro, muitos quadrinhos — Angeli, Laerte, Glauco, Crumb, Steinberg, cartunistas do Pasquim, etc. “O Raduan Nassar [autor, entre outros, de Lavoura arcaica] disse em alguma entrevista que a boa literatura deve ter corrente sanguínea. Vou atrás disso, dos meus ‘irmãos’ dos quadrinhos e dos livros. Minha formação veio toda daí. Bem, o frango com polenta da minha vó Helena também foi decisivo...”, debocha.

Quanto à literatura contemporânea, o cartunista cita três de seus autores preferidos: Reinaldo Moraes, Fausto Fawcett e o austríaco Thomas Bernhard (morto em 1989). “Há alguns anos, é o cara que mais gosto de ler. Ele escreve uns livros de 400 páginas em um único parágrafo, ultra cabeçudo, minha mulher acha um porre. Mas ele tem o senso de humor mais refinado que já encontrei, e não brinca em serviço. Extinção é um dos melhores livros que li na vida.”

Mesmo com toda essa bagagem, que inclui a autoria de duas peças de teatro, Galhardo ainda não pretende se arriscar na ficção. “Estou desenhando uma graphic novel longa para a Companhia das Letras, escrevendo roteiros para uma série do canal GNT e preparando uma exposição para uma galeria aqui de São Paulo. Por enquanto, estou mais preocupado em entregar tudo isso a tempo”, diz.