Especial Capa: Um nocaute no conto

Com forte tradição na literatura brasileira, o conto tem sido preterido pelo romance neste início de século. Escritores, editores e críticos discutem por que o gênero que revelou autores fantásticos no país não seduz a nova geração

Luiz Rebinski Junior


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Dalton Trevisan e Rubem Fonseca acabam de lançar novos livros. E, mais uma vez, os reclusos escritores atacam no conto: Trevisan com o O anão e a ninfeta, Fonseca com Axilas e outras histórias indecorosas. Aos 86 anos, os dois autores continuam sendo as maiores referências do conto brasileiro contemporâneo. E isso não se deve apenas à qualidade do que escreveram, mas também à quantidade. Apesar de terem escrito romances, Fonseca (vários) e Trevisan (apenas um) fizeram carreira mesmo com suas histórias curtas, escrevendo livros que estão entre as melhores obras da literatura brasileira do século XX. Trevisan lançou 35 livros de histórias curtas — excetuando seus títulos renegados, Sonata ao luar (1945) e Sete anos de pastor (1948), além de seu único romance, A polaquinha (1985). Fonseca, autor de 27 livros, tem nas suas primeiras coletâneas de contos o suprassumo de sua obra. Carreiras feitas sob a égide do conto, algo que parece cada vez menos em voga na literatura brasileira. Desde a fantástica geração de autores surgida nos anos 1970, que revelou nomes como Sérgio Sant’Anna, João Atônio e Caio Fernando Abreu, poucos autores nacionais estabeleceram suas carreiras por meio do conto.

Em uma pesquisa pelos sites das duas principais editoras do país, Record e Companhia das Letras, é possível constatar que, apesar de terem surgidos bons livros de contos entre os anos 1990 e 2000, há poucos escritores dispostos a encarar uma carreira solo no conto, sem se desviar para o romance. Há muitos escritores que iniciam a carreira com um livro de histórias curtas, mas logo migram para o romance. É o que muitos chamam de “treino”, o que irrita os contistas de ofício. Nomes como Marcelino Freire, João Anzanello Carrascoza e Amilcar Bettega, puros-sangues do gênero, são exceções entre os muitos escritores brasileiros surgidos nos últimos 15 anos com o aquecimento de nosso mercado editorial. Se a amostra nas duas maiores editoras do país não pode ser tomada como uma verdade incondicional, pois os contistas podem estar espalhados pelos mais diferentes selos, ou mesmo na internet, ela pode pelo menos suscitar algum debate a respeito do que está acontecendo no conto nacional.

“Eu acho que, infelizmente, o conto é considerado um gênero menor no Brasil. Quem já escreveu romance e conto — meu caso — sabe que não há diferença de dificuldade entre um e outro. A concisão é tão sofisticada quanto o trabalho de maior fôlego. No Brasil, no entanto, o conto é considerado uma espécie de segunda divisão, onde o ficcionista treina para escrever o que interessa: romances”, diz João Gabriel de Lima, editor da Revista Bravo! e autor dos romances O burlador de Sevilla e Carnaval.

O escritor e crítico Luís Augusto Fischer recorre à geração de Sérgio Sant’Anna e João Antônio para explicar a presença do romance em escala superior à do conto hoje. Segundo Fischer a geração dos nos anos 1970, de certa forma preparou o terreno para que os escritores de hoje escrevam romances.

“Um importante efeito da produção desses contistas [dos anos 1970] talvez tenha sido, paradoxalmente, um adestramento da língua portuguesa moderna de tal forma eficiente que abriu caminho para o romance de hoje, todo ele escrito com uma liberdade de movimentos muito expressiva e com uma linguagem realmente forte, eloquente, coisa que a geração de 1970 ainda precisou lutar para estabelecer”, explica Fischer. “Escrever romance depende da existência de uma língua suficientemente maleável, dúctil, e isso foi em parte obtido pelo conto dos anos 1970.”

Para o jornalista e escritor Paulo Roberto Pires, que na última década trabalhou como editor nos grupos Planeta e Ediouro, “nem sempre se consegue determinar com precisão porque um gênero literário tem mais prestígio numa época do que em outra. Ser escritor nos anos 1970 era, quase sempre, ser contista — ou ser contista em momentos decisivos de sua carreira.”
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Mercado editorial
Em uma declaração recente, publicada na Revisa da Cultura, a editora da Record Luciana Villas-Boas disse considerar um erro um escritor iniciar a carreira com um livro de contos. Segundo ela, os livros de histórias curtas não vendem, o que pode deixar no autor iniciante a pecha de fracassado. A declaração gerou polêmica e evidenciou o pensamento de pelo menos parte do mercado editorial em relação ao gênero. Imposição que, caso verdadeira, pode explicar o “esvaziamento’’ das carreiras de contistas brasileiros neste início de século.

“Essa percepção começa pelo mercado. As editoras não querem publicar livros de contos. Eu mesmo já senti isso. Eu, que tenho dois romances publicados, já ofereci livros de contos para editoras, e ninguém quer publicar. Todo mundo pergunta: 'mas quando sai o próximo romance?' Claro que isso desestimula. Resumindo, acho que é por aí. Primeiro, uma questão cultural. Depois, uma questão de mercado que decorre desta questão cultural”, diz João Gabriel de Lima.

Ainda que concorde que há uma predominância de romancistas na cena literária atual, Paulo Roberto Pires cita Faroestes, coletânea de contos de Maçal Aquino, lançada em 2001, como um livro que pode rivalizar com grandes clássicos brasileiros do gênero.

“Quem dá maior ou menor importância ao mercado é a compreensão que o escritor tem de sua atividade. Acho difícil que um contista vocacional, ou seja, um escritor com mão boa para o conto, de verdade, abandone sua vocação sem mais nem porque para atender a qualquer exigência. Se ele diz que abandona para atender a alguma exigência, eu duvidaria de sua firmeza de propósitos. E, na boa, nem o mercado sabe o que quer. Ou melhor, tem manifestado querer epígonos de livros-sensação ou seriados voltados para um público adolescente. E isso não tem nada a ver com gênero literário, mas com uma tipologia comercial.”

O escritor e crítico literário José Castello segue na mesma toada e diz que acha isso “lamentável” e que são “tendências de mercado, resultados precários de balancetes, ou de pesquisas, aos quais a literatura é absolutamente indiferente”.

Influência da imprensa
Situação diversa vive o mercado de língua inglesa, onde os contos ainda fazem muito sucesso. Há diversos exemplos de coletâneas de histórias curtas que viraram best-seller nos Estados Unidos, como os contos de John Cheever reunidos em The stories of John Cheever, que em 1978 vendeu 125 mil exemplares na edição de capa dura e figurou por seis meses na lista de best-sellers do New York Times. No Brasil, talvez apenas O vampiro de Curitiba tenha feito sucesso semelhante entre os livros de contos. Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu, hoje considerado um clássico do gênero, fez bastante barulho à época de seu lançamento e se tornou um dos maiores sucessos editoriais dos anos 1980. No entanto, ao longo das décadas de 1990 e 2000, poucos livros de contos alcançaram o mesmo sucesso e relevância. “Não li todos os livros de contos que saíram recentemente, então estaria cometendo uma injustiça se dissesse que não há contistas à altura de nossa tradição. Mas é certo — reiterando — que ninguém consegue o mesmo destaque que Rubem ou Dalton conseguiram em suas épocas. De onde que se conclui que vivemos uma época, no Brasil, que viralatizou o conto”, diz João Gabriel.

Pode-se encontrar alguma explicação para essa diferença entre mercados no fato de que a própria imprensa americana ainda valoriza e dedica espaço às chamadas short stories. Enquanto no Brasil os suplementos literários e cadernos de cultura dos jornais encolhem, nos Estados Unidos as tradicionais magazines, que no passado revelaram nomes como Truman Capote, J.D.Salinger e Gore Vidal, ainda estão em plena atividade, dedicando espaço a novos contistas.

“A Bravo! publica contos há muito tempo, e a seção “Ficção Inédita” é uma das que mais prezo – como você já deve ter percebido, sou um entusiasta do gênero. Mas um fenômeno curioso é que nem sempre há contos disponíveis para a seção. Muitas vezes o que publicamos, na ausência de contos, são trechos de romances que estão para sair. Mais um indício da crise cultural do gênero. Sei que na The New Yorker, revista que em certo sentido inspira a Bravo!, há filas de contos para publicação. Não sei em relação ao mercado, mas isso mostra que a cultura americana tem o conto — com o perdão do trocadilho — em alta conta”, explica o editor da Bravo!.

“Até os anos 1980 o sujeito podia até ter ideia para romance, mas primeiro tentava o conto porque era mais fácil publicar, num suplemento aqui e noutro ali – eles eram em número bem superior aos de agora, na grande imprensa. Isso hoje se modificou, e o candidato a narrador pode tentar a sorte logo com o romance”, diz Luís Augusto Fischer.

José Castello sugere que a forte tradição na área do conto nos Estados Unidos possa ser explicada pela influência de Hollywood, mas também, certamente, pela imprensa local. “Uma hipótese — mas talvez muito frágil — é de que, nos Estados Unidos, os contos se desenvolveram com mais vigor pela influência do cinema e dos roteiristas. Outro aspecto importante é a existência de revistas especializadas na publicação de contos. O que é uma tradição lá e também na Argentina. No tempo da nossa Ficções, por exemplo, os contistas brasileiros eram muito mais conhecidos que hoje.”

Luís Augusto Fischer tem uma teoria interessante para explicar esse “esvaziamento” das carreiras de contistas brasileiros: diz ele que os prêmios literários, que se proliferaram na última década, só valorizam o romance. Caso houvesse uma categoria de contos em prêmios como o São Paulo, por exemplo, o gênero poderia aparecer mais. “Os prêmios literários mais polpudos de nosso tempo são para o romance, e não para qualquer outro gênero, o que por certo fortalece a presença do romance, ao contrário do que rolava antes, quando havia o prêmio do Paraná, que foi um farol para os novos escritores dos anos 1970 e 1980.”

“Acho que a hipótese é boa para esquentar a conversa”, opina Paulo Roberto Pires, que hoje edita a revista de ensaios Serrote. “Mas não acho que no final das contas o prêmio faça essa diferença toda. Os bons valores pagos por bons prêmios — acho eu — não despertaram novas vocações. Talvez, ao contrário, tenham até inflacionado o romance e a poesia com escritores medíocres em busca apenas do dinheiro e do brilhareco.”

Ilustração: Federido Delicado