Entrevista | Rubens Figueiredo

Sinfonia Russa

Depois de verter para o português os principais romances de Tolstói, Rubens Figueiredo acaba de traduzir Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski. Ele fala sobre as particularidades desse clássico que ainda nos “faz olhar para nós mesmos”

JOÃO LUCAS DUSI

“Não acho absurdo pensar na tradução de um livro como a execução de uma partitura musical: cada concerto é um evento único”, reflete o carioca Rubens Figueiredo, que acaba de verter para o português o romance Crime e castigo (1866), do russo Fiódor Dostoiévski. A obra, que será lançada em abril pela editora Todavia, traz uma apresentação do tradutor e um mapa que mostra diversas localidade de São Petersburgo do século XIX, onde se passa a história do estudante Rodion Románovitch Raskólnikov.

O protagonista do clássico de Dostoiévski se vê tomado por um impulso homicida, movido por uma questão que lhe parece crucial — se os grandes homens do mundo foram assassinos, por que não ele fazer o mesmo? “Será que sou capaz disso?”, questiona-se o personagem, logo no início. Para Figueiredo, o raciocínio de Raskólnikov reflete “uma ideia implícita nos argumentos que respaldavam a ascensão da burguesia e a expansão do colonialismo europeu” à época, num Império Russo que via ascender o capitalismo e passava por grandes transformações sociais.

Ao fazer essa “exaltada denúncia da arrogância do mundo moderno”, como o tradutor enxerga a força motriz da obra, Dostoiévski produziu um romance que, “como é praxe na literatura russa, nos faz olhar para nós mesmos de uma perspectiva de largo alcance histórico”. É assim que, 150 anos depois de sua publicação, Crime e castigo ganha mais uma versão diretamente do russo e talvez possa mostrar ao leitor do século XXI que “as raízes de muitos problemas são mais fundas e mais espalhadas no tempo do que costumamos supor”.

           Kraw Penas
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O tradutor carioca Rubens Figueiredo, que acaba de verter para o português o clássico Crime e castigo, de Dostoiévski

Já há no Brasil uma tradução de Crime e castigo feita direto do russo. Em que sua versão será diferente?

É verdade, temos a excelente tradução de Paulo Bezerra, aliás, grande pioneiro nesse terreno e inspirador de nosso trabalho. Mas não acho absurdo pensar na tradução de um livro como a execução de uma partitura musical: cada concerto é um evento único e, sem isso, a rigor, a obra nem existiria para nós. A não ser apenas como partitura, em silêncio, no papel.

As reflexões e debates morais suscitados por Crime e castigo, romance publicado há mais de 150 anos, ainda são pertinentes hoje? O que esse livro tem a “ensinar” para o leitor do século XXI?

O livro, como é praxe na literatura russa, nos faz olhar para nós mesmos de uma perspectiva de largo alcance histórico. Preocupações e interesses que podem nos parecer uma exclusividade de nossa época ressurgem, talvez, com outras feições, mas perfeitamente reconhecíveis. O importante é que, dessa perspectiva, é possível perceber que as raízes de muitos problemas são mais fundas e mais espalhadas no tempo do que costumamos supor. Só isso já seria um ensinamento importante, para responder a sua pergunta. Mas, no geral, podemos dizer que o romance exprime o trauma de uma profunda transformação social. Trata-se da expansão do capitalismo numa parte do mundo onde esse sistema não era originário. E por isso não podia contar com uma identificação cultural imediata na população. Na verdade, os debates que envolvem o romance são muito menos morais do que históricos e sociais. Aliás, a crítica literária dos Estados Unidos, sobretudo, tenta impor o conceito de “moral” sempre que convém se esquivar, justamente, de questões sociais e históricas concretas. Às quais, de resto, a moral está sempre subordinada.

Alguns dos principais livros de Dostoiévski foram inspirados pelas doutrinas ideológicas da época em que foram escritos. De que maneira Crime e castigo reflete a Rússia do século XIX?

O romance reflete o impacto, na Rússia, das ideias diretamente associadas à ordem burguesa em ascensão na Europa. O individualismo; o utilitarismo (Jeremy Bentham, filósofo iluminista inglês, viveu um tempo na Rússia); o racionalismo; a riqueza pessoal como um valor supremo; os argumentos burgueses em defesa da desigualdade; as teorias do socialismo utópico que se contrapõem à ordem burguesa e, desse ângulo, dela se originam e dela dependem; a redução do espaço institucional e oficial da igreja e da fé; o enfraquecimento da ordem monárquica e aristocrática que regia a vida social, etc. Culturalmente, não se pode subestimar o peso da Igreja Ortodoxa no Império Russo, como fonte de doutrina teológica e como instituição, estreitamente ligada ao poder tsarista. Sua presença era dominante em toda a vida social. Nesse aspecto, porém, vale a pena sublinhar que, no âmbito dessa tradição teológica, o elemento coletivo desempenha um papel superior ao individual. Isso criou uma nova linha de conflito com a ordem emergente, vista até como estrangeira. Esse é um conflito que chega a ser estrutural em Crime e castigo: o nome do herói (Raskólnikov) remete ao Raskol, ou seja, o grande cisma histórico da Igreja Russa.

O romance foi escrito depois de Dostoiévski ter passado dez anos exilado na Sibéria por conta de seu envolvimento com grupos revolucionários, como o Círculo de Petrachévski. Você traduziu a novela Noites brancas, por exemplo, publicada antes do exílio e dos quatro anos de trabalhos forçados aos quais o autor foi submetido. Houve uma mudança significativa em sua obra entre esses períodos?

A meu ver, a matriz do folhetim e do melodrama teatral estão presentes em quase toda a obra narrativa de Dostoiévski, e desde o início. Outra coisa que se pode dizer com certa segurança é que a adesão do autor à Igreja Ortodoxa se tornou mais forte e mais profunda ao longo da vida. Mas sempre existiu, em alguma medida. Por isso tenho dificuldade em traçar uma fronteira tão marcada entre os dois momentos que você mencionou. Mas pode haver aí, também, alguma limitação minha.

Raskólnikov, o protagonista do livro, formula uma teoria a respeito dos grandes heróis da humanidade: segundo ele, os homens mais importantes do mundo foram também assassinos. Isso, na sua opinião, foi um argumento apenas “narrativo” que Dostoiévski utilizou para construir a “ética” de seu personagem, ou era um pensamento defendido pelo autor e até mesmo por setores da sociedade russa?

Digamos que era uma ideia implícita nos argumentos que respaldavam a ascensão da burguesia e a expansão do colonialismo europeu. O grande símbolo que sintetizava isso, na época, era a figura de Napoleão, muito citada no romance. Trata-se de um indivíduo que ascendeu ao poder máximo não por conta de sua origem social ou familiar, mas sim por talento e ousadia pessoais. Isso está em choque frontal com os valores religiosos e monárquicos vigentes no Império Russo. Não foi à toa que Napoleão, na cerimônia de sua coroação, tomou a coroa das mãos do Papa e pôs sobre a própria cabeça. A cena, aliás, está presente de forma alusiva nas palavras que Raskólnikov repete, sobre “abaixar-se e tomar o poder nas próprias mãos”. Aliás, eu não creio que Raskólnikov chegue a formular alguma ética. Nem Dostoiévski o faz, na verdade. Prefiro dizer que o livro apresenta um problema, uma polêmica, e de vários ângulos e em várias situações. Um conjunto de questionamentos ligados dinamicamente à experiência concreta das pessoas e do país.

Dentre as muitas qualidades do romance — a polifonia de vozes narrativas, as teorias políticas e sociais que lança, etc —, qual delas você destacaria?

Eu destacaria a força dos sentimentos que ligam a mãe de Raskólnikov a seu filho e sua filha. A força da solidariedade de Razumíkhin com o herói. E também a descrição da cidade de S. Petersburgo, como a imagem traumática do processo de urbanização — um dos componentes mais chocantes e aflitivos da expansão capitalista.

Você traduziu grande parte da obra de Tolstói e agora teve contato aprofundado com um dos principais romances de Dostoiévski. Na sua opinião, qual a diferença, em termos literários (estilísticos) e políticos, entre esses dois autores? Quem é mais complexo e importante para a história cultural russa? Pelo que pesquisei, a obra de Tolstói o seduz mais, não?

Pessoalmente, Tolstói tem a minha predileção em relação a qualquer escritor que eu conheça. Mas isso é pouco relevante. Digamos que os dois autores escolheram ângulos diferentes para exercitar seus questionamentos. Dostoiévski se concentrou, de preferência, no meio urbano, e na população que vivia diretamente sob o impacto da urbanização. Crime e castigo compreende uma exaltada denúncia da arrogância do mundo moderno, a partir de seus efeitos nas camadas mais frágeis da população.

Na tradução de Anna Kariênina, de Tolstói, você optou por manter as frases longas e repetições encontradas no original — e precisou insistir com a editora para preservar essas marcas. Quanto à tradução de Crime e castigo e demais livros do Dostoiévski, manteve alguma característica do autor que normalmente seria sublimada em nome de um estilo “mais limpo”?

Sem dúvida, a escrita de Dostoiévski é muito enfática e até, às vezes, redundante. Ele parece ter prazer em desenvolver um estilo tortuoso, turbulento e convulsivo (para usar uma palavra do gosto do autor), numa espécie de crítica linguística ao racionalismo e ao “bem pensar” burguês. De fato, tentei manter as repetições de formas adverbiais, por exemplo, que, à primeira vista, pareciam apenas pleonásticas. No conjunto, há no texto original uma aproximação com a linguagem falada e também uma espécie de teatralidade na composição e encadeamento das frases.

               Higor Oratz
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É necessária muita pesquisa histórica para verter um autor russo do século XIX para o português? As dificuldades, na tradução, recaem sobre a linguagem em si ou em estar a par do contexto da época?

A tradição filológica russa é muito rica. As edições são muito bem preparadas, amparadas em comentários, informações e análises impressionantes, que suprem toda a necessidade que você, com razão, menciona. 

Segundo o biógrafo de Dostoiévski, Joseph Frank, o sonho do autor era unir a cultura russa com seus livros. Qual foi o impacto causado por romances como Crime e castigo na Rússia daquele século?

Todos os escritores russos escreveram “para os russos”, como disse Tchékhov numa carta de 1897 (mais ou menos) a um editor francês que queria publicar seus contos na França. Nesse aspecto, a tese de Frank me parece completamente inócua. No Império Russo, os romances, contos, poemas e peças se integravam instantaneamente a uma polêmica incessante, que envolvia toda a sociedade e não se limitava absolutamente à literatura. Essa organicidade das obras, seu vínculo indissociável com a vida social e nacional, é uma das fontes principais do vigor e da durabilidade histórica de toda essa tradição literária.