Em busca de Curitiba | Victor H. Turezo

joaquim, a mãe e eu

1.

moro com a mãe num apartamento pequeno no primeiro andar de um edifício no centro de curitiba, na rua voluntários da pátria. dois quartos com dez metros quadrados cada um. um banheiro, sala e cozinha conjugadas e uma sacada – a qual usamos para pendurar o varal móvel que utilizamos para secar as roupas. não dispomos de muita coisa. sofro de dermatite crônica. a mãe sofre com a minha dermatite crônica e também de esquizofrenia. só dela. há cinco dias que não troca a camisola de gatinhos pretos. temos quadros incompreensíveis embutidos em molduras de papelão e espalhados pelos cômodos. meu irmão os pintou quando tinha dez anos, durante suas primeiras aulas de pintura. uma pincelada amarela desvencilha-se de um jato de tinha azul; um traço vermelho junta-se com um marrom. eram as coisas mais surrealistas que havia visto, considerando, claro, meu vasto repertório em artes plásticas. mas eles simplesmente não me comovem. não passam de rabiscos feitos por uma criança. para a mãe, eles corroem o espírito, a ponto de deixá-la imóvel por algumas horas. às vezes ela pega uma cadeira e a coloca exatamente a trinta centímetros de um dos quadros e permanece ali até que o telefone toque ou até algum de nossos vizinhos bater infinitamente na porta. ou até oferecer-lhe algo para comer. desenvolveu uma fixação doentia pelas pinturas, agravada pelas grandes quantidades de pílulas que toma todos os dias. uma obrigação invisível. certa vez ela me disse que não via apenas rabiscos, traços desconexos, linhas involuntárias. percebia nos quadros verdadeira devoção desencadeada pelas pequenas mãos de meu irmão. enxergava sentido numa linha completamente só. talvez visse uma ponte que a ligasse até o outro lado, que a tirasse daquele estado insólito, desestruturado. me culpo pelo estado da mãe. sinto como se deixasse de fazer coisas que estão ao meu alcance, deixando-a irremediavelmente se desmanchar, empurrando- a de um precipício pouco visível aos meus olhos, mas nítido e profundo aos dela.
Ilustração Bianca Franco
a

joaquim está morto. enterrado sob quilos de terra. a mãe chama por ele de tempos em tempos. as minhas bolhas expelem pus e sangue. o pus misturado ao sangue dá um aspecto aguado e deixa-o menos rubro. um par de tênis, uma calça jeans e camiseta preta. era o que joaquim vestia quando o colocaram no caixão. pedi para a mãe que ele fosse cremado, mas ela preferiu seguir os padrões cristãos instituídos e colocá- lo numa caixa de madeira para que apodrecesse lentamente e, assim, pudesse visitá-lo toda semana. ela tinha medo de perdê-lo duas vezes. dizia que uma já lhe arrancara as esperanças, a outra lhe arrancaria a vida. as mãos de joaquim estavam levemente sujas; as unhas compridas. no dedo indicador, um fiapo de terra. num estado de brancura completo. o corpo imerso em flores, a cabeça um pouco desalinhada tendendo à direita. percebo um traço de luz transpor a janela cor de cobre. toca-o na altura da comissura dos lábios. confere-lhe um sorriso tímido, quase imperceptível, que logo se esvai, a medida que uma nuvem avança e enterra a luz e o sorriso de meu irmão.

minha relação com ele era restrita, como se só nos falássemos em instantes obrigatórios. o sentimento que joaquim proporcionava às pessoas que o visitavam em nossa casa ou quando íamos visitá-las causava-me tremores, que me perseguiam por todos os lados. as pessoas o acolhiam de uma maneira que ele, a qualquer momento, poderia destruí-las ou lhes ocupar infinitamente. seus âmagos ficavam expostos. suas carnes ficavam expostas. e se me pedissem para buscar algumas xícaras de chá e trazê- las até a sala, eu simplesmente trazia.

2.

joaquim era estruturado sob pequenas pernas. braços longos; a cabeça achatada. me perguntava como. como ser de tão pouca estrutura pode me arrefecer, me demolir sem se mover. e a mãe, desapercebida, continuar a me subjugar, igual como subjugam as ovelhas num pasto. por dentro, as coisas revelavam-se insuportáveis. por fora, mantinha-me alinhado. não demonstrava nenhuma atitude que atingisse a mãe ou joaquim. mantinha-me distante. e da distância se fazia a vida.

os dias para nós não
as
eram muito cheios. a começar pelo café da manhã. pão seco e café. e se reclamássemos, a mãe desandava a gritar. dizia que éramos ingratos por desdenhar do pouco que tínhamos. o que ela não entendia é que o pouco logo se transformaria em nada. quando andávamos até a mercearia para comprar o que comeríamos no almoço, a mãe vinha ao nosso lado, cuidando para que nada nos acometesse. à frente joaquim, sempre a raspar a mão sobre os muros e cuidando para não pisar nas linhas que dividiam um bloco de calçada de outro, e eu, atrás, tentando acompanhar com o olhar cada objeto que atravessava por nós. neste eterno caminho, aceitávamos que nos era imposto. a condição que nos era estabelecida. não tínhamos obsessões, só assombros e coisas pequenas.

3.

de quando em quando meu irmão morava dentro de mim. as coisas impossíveis mostravam-se um pouco menos desestruturadas. como se joaquim pudesse transportá-las em cápsulas dentro de nós. pois quando ele morava dentro de mim, éramos nós.

antigamente íamos até o final da rua jogar bola. fazíamos dos chinelos as traves; do meio-fio os flancos desajeitados. a mãe nos chamava: uma, duas, três, quatro vezes. se merecêssemos a quinta, nos buscava trazendo consigo um pedaço de cabo de vassoura, amontoando xingamentos. mas procurávamos não aborrecê-la. ela já tinha problemas demais.

4.

a mãe nos desfez em dois. se fôssemos só um, não aguentaríamos a decomposição do mundo, dizia. mas éramos. joaquim e eu éramos só um. éramos.

Victor H. Turezo nasceu em 1993. Integrou as coletâneas Livro dos novos 2 e Novos autores curitibanos. Também teve textos publicados no jornal RelevO e nas revistas Jandique e Flaubert. Vive em Curitiba (PR).