Conto | Julia Dantas

A felicidade é um papel amarelado

As pessoas envelheciam mais felizes antes dessas maquininhas, diz o meu avô enquanto eu limpo as lentes da máquina fotográfica, sentado aos seus pés. O equipamento espalhado pelo tapete da sala, e ele afundando na poltrona devagar, como se travasse uma silenciosa queda de braço com o estofamento. É um dos seus dias bons, então me animo a perguntar o que ele quer dizer com isso.

“As pessoas não se viam envelhecer. Ficavam velhas e pronto. Não tinham fotos antigas pra se comparar. Agora a gente já não tem direito a esquecer as coisas.”

Eu tento rir baixinho para não acordar Lucas que finalmente dormiu no sofá, encastelado por almofadas e travesseiros. O vô fecha a cara, toda a pele se enrugando em torno do nariz. Suas sobrancelhas ainda são vastas e negras, esqueceram-se de embranquecer junto dos poucos cabelos. Muito sério, ele fala que não está brincando: “Eu não brinco com a memória”, repete, e eu só posso acreditar, porque quem oscila entre a lucidez da velhice e o nevoeiro da senilidade fala a sério quando fala da memória. Coloco as lentes no estojo para chegar mais perto dele.

“Não me olha assim, seu Elias. Então o senhor não gosta de ter as fotos da vó pra lembrar dela?”

Eu pensava na imagem que está há talvez vinte anos na cômoda do quarto. Minha avó no seu aniversário de sessenta anos, com um vestido estampado de flores imensas cujas pétalas vão se alastrando em manchas impressionistas. Ela parece estar no meio de uma gargalhada e tem uma taça de espumante na mão esquerda. Com a direita, faz um gesto em direção ao fotógrafo, como se pedisse que ele não registrasse a imagem agora, tão sem pose, ou pedindo que deixasse a câmera e a acompanhasse num passo de dança que começaria naquela mão aberta, a palma curvada em meio a um movimento misterioso. Depois que ela morreu, pedi férias pra me afastar da cidade e vim fazer companhia ao vô por algumas semanas. Dormi na sala quase todas as noites, mas quando ouvia o choro baixinho e entrecortado, eu entrava no quarto sem dizer nada e me deitava ao lado dele. Foi dali, no lugar onde minha avó dormira por décadas, que um dia eu olhei para aquela fotografia e me vi no plano de fundo. Um pouco desfocado, vários metros atrás da aniversariante, apareço de pé em frente a uma torre de blocos de madeira, mas tenho o rosto virado para a câmera, com aquele olhar indiferente das crianças que ainda não sentem vergonha de serem fotografadas. Eu tinha seis anos de idade e um dedo enfiado fundo no nariz.

Não consigo lembrar se essa rejeição do vô às fotos é coisa antiga ou alguma novidade da velhice. É surpreendente que a velhice venha com tantas novidades. Olho para Lucas adormecido no sofá, cinco meses de vida e um cérebro onde tudo é novo. O vô ainda não me respondeu, faz tantos anos que tem um cérebro que talvez certas respostas estejam lá dentro um pouco empoeiradas. Não quero apressá-lo, tudo nessa casa sempre teve o tempo exato. Me aproximo o suficiente para deitar a cabeça em seus joelhos, e ele nem me afasta nem me afaga. As coisas são como são.

“Eu não preciso de foto pra lembrar dela. Eu não preciso nem fechar os olhos para lembrar dela. Nem sequer me concentrar. Aquela foto não é pra que eu veja a tua avó, mas pra que ela possa me ver”.

“Ela ficou tão bonita naquela foto. Parece alguém da nobreza, numa embaixada ou algo assim.”

O vô explode num riso faceiro, suas pernas sacodem tanto que eu preciso dar espaço para que se mexam. Ele me olha da forma mais cúmplice que já me olhou alguma vez.

“Ela tava bêbada. A tua avó tava bêbada como um gambá naquele dia. Pouco depois da foto, ela tropeçou no tapete e se estatelou numa poça de champanhe. Teu pai morreu de vergonha. Tu não lembra de nada?”

Não consigo encaixar essas novas peças no velho quebra-cabeça. 

“A vó bebia?” 

Ele abre os braços num gesto de incompreensão.

“E quem não bebe? Ela tava se sentindo velha, disse que precisava beber pra esquecer. E esqueceu mesmo. No dia seguinte, mal lembrava da festa. É uma pena, porque nos divertimos a valer depois que vocês foram embora. Teu pai dizendo que aquele não era um ambiente pra criança, eu nunca vou entender como a gente criou o teu pai. Mas é por isso que tu só aparece naquela foto. Ao todo não deve ter ficado nem meia hora aqui.”

“Espera. Vocês sempre souberam que eu aparecia no fundo?” 

“Ora, é claro, tua avó morria de rir daquele dedo enfiado no nariz. Ela tava sempre brigando com teu pai pra te deixar em paz.” 

Nada. Eu não lembro de nada. Minha avó bêbada, meu pai envergonhado, o aniversário, a torre de blocos de madeira, nada. Eu poderia muito bem não ter estado lá, não fosse pela prova da fotografia.

Onde estava a minha mãe?, eu pergunto, e ele não precisa de um segundo pra dizer:

“Do meu lado. Ela tinha acabado de me ensinar a usar a câmera. Mas foi a única foto que eu tirei”.

Minha mãe não se metia naquele lado da família. Era meu pai que decidia as viagens para o interior, que fazia os telefonemas e que definia os natais e os feriados. Minha mãe flutuava em torno daquele núcleo sem nunca entrar numa briga nem interferir nas decisões sobre médicos, cirurgias, internações. Mas posso imaginá-la com uma câmera pendurada no pescoço. É a uma origem das caixas de sapato recheadas de fotografias da minha infância.

No sofá, Lucas levanta um bracinho e eu sei que a isso vai se seguir o choro. Tomo-o no colo e convido o vô para caminhar no pátio, na esperança de manter Lucas distraído até a hora de mamar. Ele se levanta e, antes de sair da sala, agarra a máquina fotográfica. Mais uma surpresa no dia.

“É só apertar esse botão?”

“Sim”, eu digo enquanto coloco no automático.

Saímos em meio ao calor da tarde, o sol castigando as hortaliças que ele mantém meio desordenadas pelo terreno. Quem administrava a horta era a vó, guiando os pés de couve e os moranguinhos entre trilhas de tijolos, aramados que impediam o ataque de roedores e desníveis calculados para a época das chuvas. Nos últimos anos, as plantas foram se espalhando por vontade própria, aprendendo que a liberdade total com frequência leva a resultados um pouco disformes. Lucas se interessa por um canto apinhado de babosas, e eu fico por ali enquanto o vô mexe na câmera, apontando a lente ora para nós, ora para a casa, ora para o que parece ser lugar nenhum.

“A gente só devia guardar as fotografias que tiramos até os doze ou quinze anos, antes de virar adulto”, ele diz enquanto tenta fazer foco. “E depois tirar talvez uma por ano, destruindo a anterior, só para os parentes terem o que guardar depois que a gente se vai. Mas sem comparações com o passado. Sem envelhecimento. Só um ponto fixado no tempo. Um ponto em que a gente estava vivo e definitivo. Antes de parar de envelhecer e ficar pra sempre morto”.

Faço Lucas sobrevoar as babosas como um mini super-herói.

Digo que “antigamente as famílias tiravam fotos dos seus mortos”.

“Antigamente os mortos eram mais da família”, ele responde.

Ele vai até o degrau da varanda e deixa que a gravidade lhe ajude a sentar. Me pergunto se ele vai conseguir se levantar sozinho depois. Está olhando para o visor, onde deve estar aparecendo a última fotografia que tirou. De repente seu rosto volta a se franzir inteiro, as sobrancelhas firmes tão fora de lugar naquele rosto de dúvida. Seus olhos encontram os meus.

“Tu vai revelar essas imagens depois, não é?” 

“Bom, não se chama mais revelar, vô”, eu tento explicar, “mas posso imprimir algumas se tu quiser ter aqui”. 

“Não é isso”, ele hesita. 

“É pra que elas… Não sei. Pra que elas ocupem um espaço.” 

Ficamos ali sem muito mais conversa. Eu sento ao lado do vô e, enquanto preparo a mamadeira do Lucas, vamos vendo o céu mudar de cor. O carro já está pronto para a nossa viagem de volta. A janta dele já está no forno para depois que sairmos. “Daqui a duas semanas a gente volta”, eu digo sem necessidade, porque tem sido assim desde que o Lucas completou dois meses. Procuro as primeiras estrelas da noite que chega e, sem que eu tenha percebido, o vô já se levantou e agora me estende uma das mãos. Eu aceito, e ele me leva para dentro de casa.

Nos despedimos na cozinha. Abraço o vô com força. “Até logo mais, seu Elias”, eu digo já com um pouco de saudade. Ele sorri em silêncio e me leva até o carro com tapinhas nas costas. É um dos seus dias bons. Talvez um dos nossos melhores. Dirijo pelas três horas seguintes com a imagem daquele sorriso, a imagem da minha avó aos sessenta anos e a imagem de mim mesmo sem interesse por blocos de madeira

É tarde quando chegamos em casa. Demoro a fazer Lucas dormir. Faço carinho em seus cabelos com uma mão, enquanto a outra segura a câmera e vai passando as fotos que o vô tirou no pátio. Uma imagem desfocada das minhas pernas. Lucas no meu colo. O pé de laranjeira. A cabeça de Lucas perto das babosas. Os pés do vô sobre a grama. Lucas com a cabeça encostada no meu peito. Os olhos de Lucas — a indiferença das crianças — fixos no fotógrafo. E então a última imagem do dia. Quando ele pode ter tirado essa? De frente pra câmera, o rosto muito perto da lente, a cabeça preenchendo quase todo o quadro, com um sorriso imenso e debochado, o vô tirou uma foto de si mesmo.

Sei o que ele quer. Imprimo a imagem e a deixo na estante da sala, para que ele exista na sua casa ensolarada e também exista no meu apartamento de cidade. Aqui, ele lança um olhar do passado sobre o bisneto que cresce. Lá, ele lança um olhar vivo sobre a esposa embriagada de riso que, para sempre, caminha na sua direção. Depois, cumprindo uma promessa que não fiz, apago todas as fotografias anteriores que tinha guardado dele. Talvez haja uma próxima visita para substituir essa. Talvez ela seja sua última. Mas, por ora, ele não envelhece.


JULIA DANTAS é escritora, editora e doutoranda em Escrita Criativa na PUCRS. É autora de Ruína y leveza (2015), romance que foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, Livro do Ano da AGEs e Açorianos de Criação Literária. Atualmente, mantém uma coluna quinzenal no jornal Zero Hora e finaliza seu segundo romance.