As vozes da voz 11/06/2019 - 07:50

Em tempos de discussão sobre o “lugar de fala”, como um autor de ficção pode se abrir para representar um discurso que não é seu?

Cezar Tridapalli

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   Ilustrações: Fábio Abreu

O termo “lugar de fala” tornou-se fundamental para discutir a posição de minorias afônicas e sem representação, cujos discursos vêm embalados em clichês pasteurizados por grupos hegemônicos. Em literatura, costuma-se usar o conceito de polifonia, vindo do filósofo e linguista russo Mikhail Bakhtin. Fazendo um desmembramento simples da palavra, poli-fonia significa muitos sons ligados à voz, às muitas vozes e seus timbres. “Timbre”, no dicionário, relaciona-se a características físicas da fala. Não me parece forçado, no entanto, estender essa relação e associar as muitas vozes e timbres da polifonia às muitas visões de mundo a ela atreladas. É disso que fala a polifonia na literatura. Vale lembrar ainda que timbre é carimbo, é marca, palavra importante para o propósito deste ensaio, afinal do que somos feitos além das células que nos constituem? Das nossas marcas, ou seja, somos feitos de encontros marcantes, que podem tanto ter expandido o nosso universo afetivo como tê-lo fechado, seja na forma de traumas pontuais ou ao longo do tempo, no estilo água mole em pedra dura, no esburacamento paulatino da sensibilidade. Portanto, além de genes, somos constituídos por memes (expressão que conheci lendo o biólogo Richard Dawkins), que seriam “genes culturais”. Estas células do contexto em que vivemos e que igualmente nos formam e são transmitidas entre gerações deixam suas marcas em nós. Muitas destas marcas nos atingiram na forma de linguagem verbal. Em uma narrativa literária, como na vida, estamos sujeitos — e só por isso nos constituímos como sujeitos — à polifonia que, em conflito, nos gera estranhamento ou identificação. Ou estranhamento e identificação, já que não raras são as vezes em que estranhamos nos identificar com situações, atitudes e pensamentos de personagens nos livros, de pessoas na vida. Talvez, se quisermos nos aproximar de um viés psicanalítico, possamos afirmar que temos dentro de nós um estranho que se identifica com desejos e pulsões de que nosso “eu” mal desconfia.

O fato é que vozes são faladas, mas também ouvidas — parece evidente, só que não, em tempos de gritaria nas redes sociais da vida digital e física.

É mais do que urgente pensar sobre lugar de fala e polifonia, pois ambas as expressões têm muito a contribuir com debates contemporâneos. Em termos rápidos e simplificadores: 1) lugar de fala é o respeito e o acolhimento da voz de grupos sociais que tiveram ao longo da História sua linguagem silenciada ou deformada pela linguagem dominante. Ou, mais que acolhimento, trata-se da busca pela incorporação dessas vozes à dinâmica da heterogeneidade, (que deveria ser) regulada politicamente; 2) polifonia é a multiplicidade de vozes em conflito que falam em uma narrativa ficcional, com personagens marcados fatalmente pelo modo de ver e ler o mundo.

É possível dizer que estas duas expressões têm sentidos intercambiáveis.

Então os personagens ocupam um lugar de fala? E quem cria os personagens, onde está? Se um dos elementos essenciais da narrativa é o conflito, o autor criará personagens que apenas espelhem os dissensos internos dele, autor?

O espaço da alteridade, a riqueza da ficção que permite viver o que Ferreira Gullar afirmou — “a arte existe porque a vida não basta” —, a experimentação de, sendo um, ser outro, caracteriza de forma contundente a narrativa literária. E os embates se espalham desde o personagem em conflito consigo mesmo (com o Outro que habita nele e em quem ele habita) até o outro do lado de fora, seja na forma de outro indivíduo, sociedade, natureza etc. e tal. É trabalho da literatura reivindicar o direito de tomar a voz do outro, não para reproduzi-la de maneira superficial e preconceituosa, e sim para colocá-la em sua complexidade na dinâmica das relações humanas.

Se o autor não está — e não tem como estar — no lugar do outro, como pode querer usar a voz alheia para tecer conflitos? Com que propriedade, com que direito? Só um morador de rua pode falar da condição de um morador de rua? Só um morador de rua homem pode falar da condição de um morador de rua homem? Só um morador de rua homem idoso pode falar da condição de um morador de rua homem idoso? Só um morador de rua homem idoso negro pode falar da condição de um morador de rua homem idoso negro? No limite, o indivíduo ele-mesmo só pode falar sobre... ele-mesmo? Esse morador de rua homem idoso negro tem muitos conflitos com a figura do outro, seja a polícia, uma moradora de rua, uma madame de cuja casa ele passa sempre em frente, o playboy que ameaça atear-lhe fogo. Teria ele propriedade para falar do outro provocador de conflito se não está na posição desse outro, se na vida real não ocupa seu lugar?

 

IMPOSSIBILIDADES
É certo, criei uma situação paroxística, exagerada, mas que segue certa lógica de raciocínio. Como resolver então a impossibilidade física e psicológica de um autor estar em vários lugares ao mesmo tempo, ocupando-os a ponto de não reproduzir nem as blandícies nem os preconceitos típicos dos clichês a respeito de alteridades?

Resposta que julgo boa: antes de se colocar em lugar de fala, ou antes de criar sua rede polifônica — emaranhamento de vozes dissonantes —, é fundamental para o autor deslocar-se para um atento lugar de escuta e habitá-lo, permanecendo ali, mesmo quando começar a falar pelos seus outros — aí, nesse deslocamento para a escuta, está outra aproximação com o trabalho psicanalítico. Assim como o psicanalista não é comadre conselheira que despeja seu ponto de vista na cabeça do analisando, nem compadre julgador que avalia o comportamento alheio conforme o tamanho da própria cabeça, também o escritor não cria ficção para, usando expressão consagrada do senso comum, “expressar seus mais puros sentimentos”, nem dar sermão, nem aula sobre como o mundo e as pessoas deveriam funcionar. Por isso não há escritor que se possa prezar que não seja leitor dos mais argutos, em quantidade e qualidade de leitura. É alguém que se dedica, se empenha em saber escutar os discursos do entorno. Não por ser privilegiado nato, mas por escolher se dedicar a isso, como o matemático que tem mais agilidade para cálculos e abstrações numéricas porque, depois da “vocação”, se debruçou sobre esse trabalho e tem contato com ele o tempo todo, incorporando-o a seu modo de ser e ver. O escritor precisa estar atento à fala do outro para engendrar conflitos humanos em profundidade capazes de mobilizar o leitor e instituir nele fissuras nos símbolos consagrados, arejando suas fronteiras (às vezes fazendo-as desmoronar). Sim, o autor fala, mas essa fala é uma voz, e uma foz, onde desembocam muitas vozes escutadas — esquizofrenia muito particular. A rigor, todos somos assim, coleção de discursos vindos do outro desde o nascimento, esteja a palavra envolta em semblantes de serenidade, preocupação, agressividade, amor. Tudo isso, em última instância, é afeto. E, como afeto, nos afeta.

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De que modo então o autor, marcado em sua história por condições específicas, pode se abrir para representar — artisticamente — vozes que não são suas?

Outra resposta possível, contígua à anterior, está na abertura para a experiência. Experiência, bastante debatida por Walter Benjamin e cujos desdobramentos seguiram por outros autores, é a seleção (consciente ou inconsciente) de afetos que marcaram nossa vida e fizeram dela o que ela é no presente. Daí que, tanto no processo de escrita quanto de leitura, autor e leitor tecem sentidos de modo menos ou mais complexo conforme a experiência do já-vivido e — atenção! — conforme o grau de disposição para se abrir a experiências futuras que a leitura e a vida podem dar, já que ambas são espaços de susto. Passado e futuro constituem o presente da experiência. O leitor é sujeito que não apenas retira sentidos do texto, mas também coloca sentidos nele. A conversa entre os sentidos propostos pelo autor, pela obra e pelo leitor, nos lugares simultâneos de fala e de escuta que ocupam, é que compõe o jogo literário. De um livro e a um livro, nós temos o que ouvir e o que dizer.

O velho ditado lembra: temos duas orelhas e uma boca. Na literatura, como realizar a polifonia se o autor não se colocar em lugar de escuta atenta das vozes do mundo? O romance, como já dissemos com outras palavras, não é a defesa de uma tese com ponto de vista único de seu autor. Isso se chama ensaio, ou pregação, ou qualquer coisa que, se quiser se passar por literatura, estará fadada à chatice e ao esquecimento.

Foi a psicanalista Vera Iaconelli, em artigo para a Folha de S.Paulo em 3/4/2018, intitulado “Lugar de escuta, lugar de fala”, quem disse: “supor que analista deva ser mulher para atender mulheres é confundir lugar de escuta com o de fala”. Não precisa ser mulher para atender mulher, não precisa ser homem para atender homem, não precisa ser gay para atender gay. Não precisa ter o mesmo lugar de fala. Na literatura, precisa?

O que foi discutido até aqui — essa é minha esperança — pode explicar por que “o grande escritor é sempre grande leitor”. Porque, para falar, tem de ser atravessado pelos discursos do outro, tem de escutar. Mesmo assim, recorro à Leyla Perrone-Moisés em Inútil poesia e outros ensaios breves para me ajudar:

Sem Homero, não haveria Virgílio. Sem Virgílio não haveria Dante, sem Dante... etc. Apesar dessa evidência, persiste um certo senso comum de origem romântica pretendendo conectar a palavra à coisa, e a literatura à vida, sem mediações; e que é “coisa”? E “vida”? “Words, words, words” diria aquele inglês, também grande leitor, como sua personagem Hamlet, que andava com um livro na mão. Ou aquele espanhol que pretendeu ter lido num livro a história do triste fidalgo que lera ele mesmo demasiadas novelas de cavalaria.

A leitura de grandes narrativas, arrisco dizer, nos deixa mais espertos para a leitura do mundo; se estamos mais espertos — e abertos — para ler o mundo, arrisco dizer de novo, leremos melhor os livros. É escuta o tempo todo. Desde a escuta de si mesmo até a do outro, e bota outro nisso, que potencialmente é tudo o que nos circunda. Nesse caminho constante entre o dentro e o fora, entre sujeitos ou entre sujeito e objeto, há sempre um trajeto que, como tal, é transitivo.

 

FATORES MEMÉTICOS
Desdobraremos agora a ideia apenas antes sugerida de uma experiência que aponta para o passado e outra para o futuro, sendo importante para isso lembrar que a partir daqui o significante “leitor” passa a significar tanto os leitores que não escrevem literatura quanto os que escrevem. Ou seja, quando falarmos de leitor, precisamos pensar no escritor, mantendo a escuta sempre no pano de fundo, costurando tudo.

Por que não é raro encontrarmos leitores que odiaram Machado de Assis ou Guimarães Rosa ou Clarice Lispector aos 15 anos e que, depois, aos 30, 40, conseguem apreciá-los? A obra permanece a mesma, emanando suas possibilidades, o texto está lá, tecido, mas em um primeiro momento não nos é significativo (também o contrário é comum, quando um texto nos diz muito na adolescência e perde seu poder de fogo quando somos mais velhos). Drummond, em “Procura da poesia”, convida e indaga:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave? 

Somos o que somos um bom tanto por fatores genéticos, e outro bom tanto é devido aos encontros que nos afetaram na cultura — os tais fatores meméticos. Podemos, como vimos, chamar isso de experiência

Assim, onde mora o sentido? É tanta coisa que se passa no mundo, basta abrir um portal de variedades ou a timeline das redes sociais e ver atentados e massacres, resultados da última rodada do campeonato, o novo modelo de carro, a nova namorada do galã, a entrevista da cientista social, a propaganda do político, entre muitos outros et ceteras. Livros de História contam fatos que, aproveitando a força do chavão, marcaram a humanidade. Sim, muita coisa se passa no mundo. Experiência, no entanto, é aquilo que se passa em nós e afeta o nosso mundo a ponto de nos modificar (etimologicamente, veja só, experiência flerta com perigo, travessia, pirata, estranho, passagem mais além). Para ficarmos em apenas um exemplo da literatura, Michel Laub, em Diário da queda, conta a vida de um menino judeu que carrega o peso do holocausto na história familiar, mas o que marca para valer sua consciência é a cena cruel de bullying, que ele não só viu como participou, contra um colega não judeu e pobre. Podemos nos comover com tragédias e centenas de mortos do outro lado do planeta, no entanto sofremos mais se nosso amigo querido sofreu um acidente, está no hospital, e passa bem. Vou repetir, no estilo copia e cola: sim, muita coisa se passa no mundo. Experiência, no entanto, é aquilo que se passa em nós e afeta o nosso mundo a ponto de nos modificar.

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Desde que nascemos, quanto não nos transformamos? Por que somos menos ou mais inseguros, menos ou mais extrovertidos, menos ou mais generosos? Quantos ganhos, quantas perdas, quantas experiências nos atravessaram e nos fizeram ser o que somos? O tempo está sempre forjando a chave de que falava Drummond, e nos torna capazes de abrir um poema e nos abrir para o turbilhão de sentidos em que estamos enredados. Então, e de novo, onde mora o sentido quando falamos de um texto literário? No texto somente? Todos retiramos dele a mesma significação? Não, pelo menos não em camadas mais profundas de leitura. Quanto maior a experiência e a escuta do leitor (autor incluído, lembra?), mais esse texto tem a dizer. Embora não seja regra, talvez isso explique por que obras clássicas sejam consideradas difíceis — logo, chatas — quando temos 15 anos e depois, mais velhos, tornam-se admiráveis. Podemos dar razão a Mario Quintana: “um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele”. Mais repertório e experiência nos abrem o texto e o tornam mais capaz de nos dar também mais repertório e experiência para ver e ouvir, num processo de alimentação mútua que torna os sentidos mais ricos. Sob esse aspecto, envelhecer é bom, sofrer é bom — cabe resgatar a proximidade etimológica entre as palavras “sofrimento” e “paixão”, ligadas a sofrer uma ação, deixar-se impactar por ela, deixar-se afetar, o que em última instância é se colocar em lugar de escuta, em posição de relativa passividade, de passion, passione. “Eu recomendo aos jovens: envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais depressa possível, isto é um azar, uma infelicidade”, teria dito Nelson Rodrigues.

Mas se a experiência pode nos tornar mais receptivos às obras porque temos mais chaves para abrir as palavras e trançar com elas significações complexas, curiosamente pode acontecer o contrário, quando ficamos, à medida que os anos passam, mais casmurros, ranzinzas, mais fechados à experiência futura e com menos escuta para a voz da diferença. Não à toa, muitos poetas buscam resgatar o olhar infantil e, podemos dizer, todos os artistas buscam não o tema novo, e sim modos diferentes de falar sobre o real que se manifesta todo o tempo em nós:

Arnaldo Antunes
O escuro é a metade da zebra

Guimarães Rosa
O nada é uma faca sem cabo da qual se tirou a lâmina

José Paulo Paes
Caveira: a cara da gente quando a gente não for mais gente
Excelente: lente muito boa
Forro: o lado de fora do lado de dentro
Isca: Cavalo de Troia para peixe
Rei: cara que ganhou coroa
Zebra: bicho que tomou sol atrás das grades

As definições acima, que brincam de dicionário, pulam o muro das convenções para romper visões de mundo áridas e unívocas. Se a literatura é um modo de simbolizar o real, isto é, de tentar vestir o susto com palavras, de transformar o aspecto inefável do real em linguagem, ela também pode ressimbolizar o já simbolizado, que no entanto se cristalizou como verdade — eis aqui mais uma aproximação da literatura com a psicanálise

Se primeiro valorizei o universo “adulto”, com as feridas e os grandes encontros do passado transformados em experiência, valorizei em suma a dor e a delícia do que nos fez ser o que somos, agora é a vez de recuperar a outra ponta, o olhar infantil, ainda desautomatizado, com um quê de inaugural. E a literatura passa a ser um modo muito potente de nos dar novos olhos para enxergarmos o tantas vezes visto — ou novos ouvidos para ouvir o tantas vezes ouvido, pois interessa-nos desde o início o “lugar de fala e de escuta” no autor. Quem aceita o jogo lúdico pode manter ou restaurar a porosidade no jeito de ver e ser, deixando entrar e sair outra respiração. Trata-se de uma ingenuidade informada, que acolhe a novidade e a invenção, pondo para dançarem padrões enrijecidos com os frescores da reproposição. Quem não aceita a dança, fecha o livro e se fecha. Para o mundo, para a linguagem, para si mesmo. Quantos, ao lerem o “dicionário” acima, não afirmariam: “quanta bobagem”?

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DISPOSIÇÃO PARA O MOVIMENTO
Existem formas e contextos de linguagem que querem nos conduzir: “o álcool faz mal à saúde”, por exemplo, nos conduz a um entendimento mais unívoco. O manual de instrução ou a bula de remédio também busca nos conduzir a um sentido — ainda bem. Porém:

A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos
(...)
Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo

É um excerto do “Poema de sete faces”, de Drummond, que, aliás, fala de álcool, só que nele a condução abre espaço para a sedução, e sedução é desvio, é propor outros caminhos que não o da condução. Sem buscar entendimento único, deixa o leitor navegando por veredas inusuais e construindo os próprios portos de sentido.

O escritor português José Saramago, em entrevista para o documentário Janela da alma, conta que sempre ia ao Teatro de Lisboa e se sentava na mesma poltrona, de onde admirava a beleza do palco. Certa vez, convidado a ir até o camarim, viu o mesmo palco de outra perspectiva e descobriu poeira e teias de aranha atrás da boca de cena. E conclui: “para se conhecer as coisas, é preciso dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda”.

A disposição para o movimento (dar a volta nas coisas e mover-se com elas, isto é, comover-se) é criadora de sentidos insuspeitados. A Estética, como disciplina da Filosofia que trata da beleza na arte, vem daí: da capacidade que algumas obras têm de nos despertar os sentidos, a estesia: que vai gerar estética. A ausência de estesia, ou seja, o desmaio dos sentidos, transforma-se em anestesia, em amortecimento.

Se esse “Mas essa lua / Mas esse conhaque / Botam a gente comovido como o diabo” já tem potencial sedutor, mesmo usando linguagem mais direta (talvez quem já tenha olhado a lua com um copo de qualquer coisa alcoólica na mão consiga montar um cenário bem seu), há obras que propositalmente buscam imagens novas para avivar os sentidos. Veja a diferença entre “Ela era tagarela e chata” para “As conversas que ela começava pareciam madeira verde, soltavam fumaça mas não pegavam fogo” (Truman Capote, em Bonequinha de luxo).

“Ela estava plenamente satisfeita com o dia que teve” terá muito mais força se escrito assim: “Eu, por mim, poderia partir deste mundo com o dia de hoje nos olhos” (Truman Capote, em “Memória de um Natal”).

O texto sedutor espera sempre pela intervenção criativa do leitor, para que se desvie junto com ele. O texto literário — e isso é elogio, não crítica — é a “máquina preguiçosa” (termo de Umberto Eco nos Seis passeios pelos bosques da ficção), que precisa do trabalho do leitor (lembremo-nos outra vez: o escritor está aqui também). Por isso há diálogo: porque existe texto provocador, que não encerra significação única.

[Uma inserção bem particular: lembro-me do fascínio que senti ao ler Sábado, de Ian McEwan, quando o protagonista Henry Perowne, neurocirurgião renomado, passava de sala de cirurgia em sala de cirurgia realizando seus intrincados procedimentos neurológicos, que me convenceram admiravelmente, mesmo sabendo (ou talvez por isso mesmo) que o autor não entendia tanto do assunto quanto o personagem. Pode ser um pensamento de lógica frágil, mas estou propenso a afirmar que muitas vezes o personagem sabe bem mais do que o autor, como foi o caso do neurocirurgião de McEwan. Nada de mistificação aqui, apenas manuseio de linguagem.]

É por tudo isso que leitura e literatura são jogos de sedução que não se realizam se não forem tecidos por falas inundadas de escuta. Convocam-nos para a simbolização do real ou para deslocamentos e fissuras no universo simbólico já instaurado. Ou ainda, nas palavras de Jacques Rancière, a arte (e, claro, também a literatura) consegue “modificar as balizas do que é visível e enunciável e fazer ver o que não era visto (...) com o objetivo de produzir rupturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afetos”.

 

Cezar Tridapalli é tradutor e escritor. Publicou os romances Pequena biografia de desejos e O beijo de Schiller

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