Brennand em algumas notas sobre cinema, vacas e um urso 11/06/2019 - 09:00

Uma visita ao mundo particular do “inintrevistável” artista plástico pernambucano de 91 anos

Schneider Carpeggiani

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   Fotos: Andréa Rêgo Barros

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“Simular pequenas incertezas, pois, se a realidade é precisa, a memória não o é” — Jorge Luis Borges (1899-1986).

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Equipe de TV japonesa passa a perseguir Federico Fellini (1954-1992) para que ele faça um balanço da sua longa carreira. A tentativa de entrevistá-lo, no entanto, desemboca num jogo kafkiano (ou felliniano, a depender do seu mestre do absurdo favorito). Fellini aparece em todos os lugares, mas não na frente dos repórteres. Sempre escapa nos últimos segundos, é quase possível sentir seu rastro ainda fresco. Ao escapar, acaba se fazendo mais e mais presente. O invisível tem uma tendência zombeteira a se apresentar como visível. Foi assim, descrevendo o filme A entrevista (1987), do italiano, que Francisco Brennand recebeu a mim e a fotógrafa Andréa Rêgo Barros em meados de fevereiro passado.

“Eu não acredito que seja um homem ‘entrevistável’. Dizem que fujo dos assuntos das perguntas que me fazem. Fico indo de um lugar para outro”, avisou o artista já em meio ao trâmite (a entrevista) que julgava impossível.

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Se entrevistá-lo fosse “possível” em seus termos, essa teria sido a minha segunda entrevista com o artista de 91 anos, um homem alto de longa barba branca, bigode raspado na altura do nariz e que usa bengala talvez apenas para disfarçar o vaivém intacto da sua agilidade felina. Sua Oficina Brennand é verdadeiro enclave no bairro recifense da Várzea. Um dos maiores centros culturais da capital pernambucana na forma de um planeta de cor castanha e de mitologia própria sobre os ciclos da natureza e do sexo. Como todo país, soberano em suas próprias regras. A primeira delas está logo na entrada que dá acesso ao hall principal de esculturas. Trata-se do aviso em latim de que tudo ali é “imóvel mas não inerte”. Uma frase a ser lida tanto como observação quanto como ameaça.

A inscrição “imóvel mas não inerte” certa vez soou como ameaça para uma visitante inesperada da Oficina, um caso que Brennand lembra como “a visita da velha senhora”, em referência ao texto clássico de Friedrich Dürrenmatt. A velha senhora estava como acompanhante de uma moça que parou ali para comprar uma memorabilia “rapidinho” e seguir estrada. Sem paciência para exposições ou criações artísticas, decidiu aguardar no carro. Esperou, esperou e nada da amiga. Irritada, foi descobrir a razão da demora. Ao passar distraída pelo aviso do hall, deu de cara com as fileiras e mais fileiras das esculturas de Brennand, cercando-a por todos os lados. Ela olhava tudo aquilo, mas não se via. Os habitantes do enclave da Várzea e sua polimorfia sexual, ao menos para a velha senhora, pareciam uma verdadeira “carnificina”. Indignada, retornou ao carro. Parece que nunca mais voltou. Brennand classifica a história como uma das grandes críticas feitas ao seu trabalho. “São essas as críticas que me interessam, porque dizem algo diferente sobre o trabalho de um artista. A velha senhora viu criações que evocavam um horror ‘conradiano’, viu o horror do parto”, lembrou, revelando assim o sintoma central do seu enclave na Várzea: tudo aqui é feito para parecer vivo, para decalcar a vida, com seus espantos e fluxos.

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As críticas e classificações ao seu trabalho aparecem quando o artista menos espera. Enquanto nos levava para o seu escritório a fim de dar início à não-entrevista, um visitante olhou para ele meio boquiaberto, perguntou se ele era ele. Brennand assentiu com um sorriso e apontou para a camisa do turista com as palavras “modernismo, Niemeyer & Lúcio Costa” e disse como aceno de boas vindas: “Com essas palavras na sua camisa, você está em casa aqui”.

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Da vez anterior que nos encontramos, há oito anos, Brennand estava em meio à preparação dos textos definitivos dos seus diários, que acabaram lançados apenas em 2016, organizados por sua sobrinha-neta, a cineasta Mariana Brennand Fortes. Trata-se de uma caixa dividida em quatro volumes reunindo escritos produzidos entre 1949 a 2013. O gênero diário aqui soa como mera convenção para uma obra de difícil classificação, armada em meio a anotações, peças de ficção ou da memória como ficção. Diário é o que chamamos de diário, romance o que chamamos de romance... Dos gêneros literários, os dois são aqueles que mais oferecem liberdade de criação. Talvez seja melhor pensar o box de Brennand como a performance de um artista que afirma gostar de construir as coisas apenas para batizá-las. O nome como sopro de vida. É que somos sempre guiados pelos nomes que nos deram, para além daquele que temos ou poderíamos ter.

O diário começa com sua viagem para Paris, ao lado da primeira mulher, a escritora Deborah Brennand (1927-2015), discorre sobre a Europa do pós-Guerra, suas influências, fala das musas, de política, do seu retorno ao Recife e de quando transformou as ruínas da antiga olaria da família em novo planeta. Na epígrafe do primeiro tomo, o escritor argentino Ricardo Piglia (1941-2017) abre o horizonte do imenso mosaico que o leitor terá pela frente nos quatro volumes: “Quanto a mim, diz Tardewski, o senhor talvez tenha notado, sou um homem inteiramente feito de citações”. Planetas são feitos de cacos, de anotações que não descansam. A última entrada, datada de 9 de abril de 2013, é uma ordem para que as cortinas do palco se fechem. “Agora, apaguem-se todas as luzes e fechem todas as portas e eu mesmo proclamo em voz alta: EXTRA OMNES (todos fora).” “Desde o início escrevi sabendo que era literatura, não o escrevi inocentemente”, explicou.

Ainda sobre nosso encontro de oito anos atrás: lembro bem que ele quis basicamente discorrer sobre literatura. Andava fascinado pelo escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). Mas agora quis pontuar suas falas, sobretudo, a respeito de cinema (“O cinema ocupa grande parte do meu diário. Uma amiga, curadora editorial em São Paulo, chegou a dizer que poder-se-ia extrair trechos inteiros sobre cinema que dariam um volume”). Quis falar sobre os filmes que repetidamente assiste na TV — “Os canais parecem esquecer que já vi esses filmes antes. Mas os assisto de novo”.

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Nos dias seguintes ao nosso segundo encontro, iniciei uma conversa por e-mail com Brennand. Voltamos a discorrer sobre seu fascínio pelo cinema, espécie de “revolta” do artista contra a imobilidade (“imóvel mas não inerte”) de suas esculturas. “Comecei a escrever sobre cinema aos 22 anos (1949), na cidade de Paris, isto é, apenas registrei no meu incipiente diário que havia assistido a uma versão cinematográfica de Crime e castigo (1935), de Dostoiévski, tendo como diretor Joseph Von Sternberg. A sala de projeção era pequeníssima e a sessão já havia começado. No diário está anotado que o admirável Peter Lorre interpretou Raskólnikov. Edward Arnold é Porfírio Petrovitch, aquele que por sua enorme sagacidade e superior inteligência acabaria por vencer o pobre e desgraçado estudante assassino. A atriz Marian March representa a prostituta Sônia. E isso foi tudo o que anotei, embora não desconfiasse o quanto o cinema — por razões oblíquas — influenciaria minha vida de artista”, revelou num dos e-mails.

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Naquele primeiro encontro que tivemos, Brennand havia acabado de ler Noturno do Chile, novela de Bolaño em formato de um intenso monólogo de apenas dois parágrafos (ou um diário com apenas duas entradas) em que o narrador relembra sua vida em meio ao golpe de Pinochet. O parágrafo / entrada final avisa: “E agora começa a tempestade de merda”. Brennand trabalha agora num outro volume do seu diário, que recomeça justamente onde o anterior parava: estamos na segunda metade de 2013, quando as passeatas daquele ano acabaram se confundindo com os peregrinos a acompanhar a visita do papa Francisco. Posteriormente, o Brasil entraria numa crise política que, para alguns, implicaria no fim da Nova República, iniciada com a Constituição de 1988. Começaria então uma nova tempestade de merda, desta vez à brasileira. “Ainda não entendemos o que foi 2013”, acredita Brennand.

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“Para mim não há nada que se compare ao mundo secreto dos ursos” — Werner Herzog.

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“Werner Herzog teve uma influência decisiva na existência do meu diário de 2013, Jornal do Urso, com o subtítulo de Mestre Amaro e o urso Ariel (Fábula). Acontece que Herzog fez um documentário a respeito da tragédia do ambientalista norte-americano Timothy Treadwell (O homem-urso), que pretendia conviver com ursos no Parque Reserva de Katmai, no Alasca. E cujo desejo era se transformar num urso. No meu caso, é um urso que se transforma num homem: o urso Ariel.”

Após se apaixonar por uma corista, o urso Ariel, num misto entre o fascínio e a melancolia, fica obcecado por aquelas pessoas que tomam as ruas do Brasil em 2013. Quer entender a visita do papa em meio ao caos dos que se diziam sem partido, do protesto das novas feministas e do ativismo das redes sociais. Tudo isso sob o olhar do Mestre Amaro. O Mestre Amargo. Espécie de alter ego de Brennand.

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“Você não pode enquadrar a vida impunemente, ela sempre lhe escapará. O cinema conseguiu esse prodígio além de criar sua lógica narrativa, sua mecânica, seus códigos e, eu diria até, sua metafísica. Acontece que esses imperativos mais que buliçosos estabeleceram suas raízes tão profundas que fizeram crescer uma árvore genealógica sem qualquer impedimento. Gerações e gerações se acotovelam num impulso da mais perfeita submissão num retrato que pretende ser mais parecido do que o original. De resto, oferecido no atacado e no varejo para todos os gostos. Pouco importa. Não há o que retocar. Seja no cinema realizado pelos diretores e roteiristas de gênio, seja no cinema simplesmente de diversão. Há sempre a possibilidade da hipnose encantatória. Todos oferecem o paraíso ou o inferno escatológico”, enfatizou num dos e-mails que trocamos.

Brennand falou ainda sobre seu fascínio pelo filme À procura de Mary, do cineasta inglês Stephen Poliakoff, que teria o elemento que mais o fascina numa obra de arte: “É um filme ‘luciferino’. É sobre capturar a alma’”.

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Após quase duas horas de conversa, peguei o telefone para desligar o gravador e vi uma notificação sobre o jornalista Ricardo Boechat (1952-2019), que havia morrido num acidente uns dois dias antes. Comento algo sobre isso e, se não me falha a memória, Brennand disse que “o que rege a vida é a fatalidade”.  Passamos então a conversar sobre as manchetes das últimas semanas: Brumadinho, escândalos políticos e a ascensão da (extrema) direita em todo o mundo. Percebo que, talvez como seu urso Ariel, o artista é fascinado por acompanhar o noticiário. E prefere o jornal impresso a outras formas de informação. “Mas leio o jornal daqui mesmo do Recife. Leio tudo, do começo ao fim”, disse, fazendo círculos no ar com as mãos para enfatizar essa sua relação de leitor. O caderno enorme onde anota seus escritos carrega várias notícias coladas às páginas.

Na hora da despedida, Brennand mostrou o hall de esculturas à nossa frente e comentou: “Imagine como era tudo isso aqui, quando era apenas ruína, e eu brincava no escuro, imaginando tudo em meio ao breu. Você pode criar tudo, imaginar tudo, a partir das ruínas...”. Mas nossa despedida formal foi interrompida pela chegada de um grupo de turistas. Eles o cercaram, pediram fotos, boquiabertos, queriam explicações sobre o planeta onde estavam. Acabaram levando-o embora para o meio dos habitantes imóveis do enclave.

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“Não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio” — Antonin Artaud (1896-1948), epígrafe presente no primeiro tomo dos diários.

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Ao entrarmos no carro, o caminho que nos levaria para fora do enclave da Várzea estava obstruído por quase uma dezena de vacas. Chovia muito lá fora e, indiferentes à tempestade, elas prostraram-se ao redor do veículo. Ficaram por todos os lados, indo e vindo, sem qualquer pressa. Parecia uma cena de cinema, mas nós é que estávamos sendo observados. Quando me lembro agora do vaivém das vacas, vem também à lembrança um trecho de outro e-mail de Brennand, em que ele falava do impacto que o filme Henrique V, de Lawrence Olivier (1907-1989), teve sobre sua imaginação: “Passei a ver coisas. Coisas que os outros não viam. Vi como um danado”. Ficamos ali, imobilizados e sendo assistidos pelas vacas, pela eternidade de mais uns cinco minutos. De súbito, elas perderam o interesse em nós e abriram caminho. Saímos, enfim, de Brennand.

 

Schneider Carpeggiani é jornalista e editor do suplemento literário Pernambuco.

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