O dilema de Bárbara | Maria Valéria Rezende 18/10/2017 - 13:10

Ilustras_Moara Brasil
   Ilustrações: Moara Brasil

 

Bárbara torce no bocal a lâmpada de 25 watts pendente do fio, no meio do quarto. O quarto parece ficar um pouco mais escuro quando a luz elétrica, fraca e amarelada, expulsa o resto de luz azul do dia, que ainda entrava pela única janela que não dá para um beco sombrio.

Bárbara não se importa com isso, não. Ela sabe de cor o que vai fazer, o movimento que já repetiu tantas vezes. Agora é a última vez, se Deus quiser! Porque a nota que traz dobrada no sutiã completa, certinho, o tanto que precisa para o material de construção, conforme os cálculos de Vadinho. A compra mesmo, só vai fazer amanhã. Quando subiu o morro, Bárbara viu que Vadinho já tinha abaixado a porta de ferro do depósito e não quis incomodar, embora a luz ainda estivesse acesa lá dentro.

Os comerciantes do morro estão fechando as lojas cada vez mais cedo! Bárbara pensa:

— Mas, de hoje para amanhã cedinho, o que é que pode acontecer para atrapalhar? Não há de ser hoje que vem um ladrão aqui. Que ladrão? Nunca veio nenhum aqui na vizinhança. Em casa de pobre, pelo menos disso a gente está livre! Deus vela... Como é mesmo aquele cântico?

Bárbara lembra e canta baixinho:

— “Se o Senhor não proteger a cidade, em vão vigiará a sentinela...”.

Ri, contente. Retira com cuidado o quadrinho dependurado no prego, deixando à mostra a parte mais larga da rachadura na parede. Cutuca dentro da fresta com um grampo de cabelo e puxa o pacotinho fino embrulhado em papel pardo de enrolar pão. Abre e acha, direitinho, as seis notas de 100 reais e mais três de 50 que agora vão ser quatro, com aquela que ela traz dobrada no sutiã.

Para ela é um dinheirão! Para Dona Amália, não. Hoje mesmo Bárbara ouviu a patroa, no telefone, contando para uma amiga que comprou um vestido por quinhentos e noventa reais, e ainda disse:

— Um pretinho básico, a gente sempre precisa. Preço ótimo, não acha? Pra ser de estilista famoso, achei baratíssimo!

O tal de vestido pretinho básico, Bárbara viu: um tubo de pano preto com um buraco para a cabeça e dois para os braços. Ficou pensando:

— Quinhentos e noventa por um trem daqueles? Daniely faz um desses, igualzinho, por 50, com o tecido, aviamento e tudo!

Lembrando disso, Bárbara ri, balançando a cabeça do mesmo jeitinho que faz quando o filho Eustáquio diz as besteiras dele. Bárbara sempre achou Dona Amália meio tola, mas gosta dela. Já disse mais de uma vez aos filhos:

— Ela não tem culpa de ser assim. Ninguém lhe ensinou outra coisa. Com a facilidade desse dinheiro todo, tudo ali na mão, sem ter nada que fazer, a pessoa parece que não desenvolve mesmo... É boa patroa, coitada.

— Bárbara se dá bem com ela, é quase uma amizade das duas. Desde que veio de Minas, há anos, trabalha para Dona Amália sem motivo para sair de lá. Bárbara tem é pena da patroa e explica:

— Imagine a pessoa ter um pai que suicidou e a mãe acabada numa cama, que a enfermeira põe para cá, põe para lá, sem saber de nada, sem mexer um dedo, vivendo assim que nem um pé de couve... Nem Mãe-Outra, minha bisavó, com mais de 110 anos, ficou daquele jeito. É melhor ter os velhos da gente pobres mas inteiros, ranzinzas mas com a cabeça viva, mesmo que seja lá em Minas. Ai, Minas está tão longe! Faz tempo que Bárbara não escreve e nem recebe carta do Barro Preto.

Refeito o embrulhinho, Bárbara enfia tudo de novo para dentro da rachadura, recoloca o quadro no lugar e fica ali, esquecida da vida, aproveitando o momento de satisfação e silêncio. Fica olhando para o quadrinho, o seu preferido, um palmo por um e meio de cor, alegria e beleza.

Este foi o primeiro quadro que Taquinho pintou e ela acha que é o retrato dele. Não é um retrato assim de parecença por fora, como se fosse fotografia, porque a cara do menino pintado não parece muito com a cara de Taquinho. Mas é o retrato dele direitinho, como se fosse ele mesmo virado do avesso e mostrando na tela coisas que só tem lá dentro da cabeça dele: cores sem nome que ela nunca vê em outro lugar e nem imaginava, aqueles passarinhos, bichos que não existem neste mundo, tudo inventado por ele. A mãe acha lindo aquelas flores e nuvens e o menino misturado no meio daquilo tudo.

É diferente, Taquinho. Nasceu igualzinho aos outros, mas depois que pegou a ter convulsão, ataque, ficou assim. Bárbara ficava triste quando diziam que ele era bobo, retardado. Nunca aceitou isso e sempre respondia:

— Ele é só diferente, uai! Não tem malícia, é meio sistemático, é verdade. Tem umas manias, não quer que ninguém bula nos trens dele. Faz e diz umas coisas que a gente não entende bem, mas é só isso, diferente. Nunca fez mal a ninguém e tem vez que aprende as coisas muito mais depressa do que os outros e inventa jeito que ninguém tinha pensado antes para sair das dificuldades do dia a dia.

Não foi à toa a ideia de batizá-lo com o nome de Eustáquio, o padre milagreiro e bondoso que tinha curado uma doença grave do avô dela, de quem herdou o bentinho do padre, agora sempre costurado num escapulário pendurado do pescoço do menino. Era proteção que chegasse pra inocência dele.

Bárbara gostou quando leu na Bíblia: “Da boca dos inocentes sai a sabedoria”. Isso falava de Taquinho, inocente, e ela começou a prestar mais atenção ao que ele diz, querendo compreender a sabedoria escondida ali.

Pelejou para segurar Taquinho na escola, mas não deu conta. Também, nem queriam ele lá. A professora dizia que não podia lhe ensinar nada, que ele não prestava atenção, ficava avoado, com os olhos vidrados, olhando pela janela, ou para uma mancha qualquer na parede. Era como se Eustáquio não estivesse ali. De repente, começava a contar uma história sem pé nem cabeça, parecendo sonho, e não havia quem fizesse ele calar até acabar.

MB

Fazia confusão na sala porque os outros meninos gostavam de arreliar Taquinho. Nem ele mesmo queria ficar na escola: quando lhe dava a sapituca, saía pela porta afora, sem dizer nada, e sumia nos becos do morro. Só ia chegar em casa já de noite sem saber dizer onde tinha andado. Agora Bárbara não pode demorar pensando nessas coisas porque já está atrasada. Precisa tomar banho e vestir-se, tomar uma sopinha e subir para o salão, que hoje é dia do encontro da comunidade, mas, assim mesmo, fica ali olhando para o retrato de Taquinho, lembrando.

Eustáquio esteve sempre no centro da vida dela. De primeiro tinha a preocupação de que lhe acontecesse alguma coisa ruim, de que alguém se aproveitasse da inocência dele ou de que um dia ele sumisse para sempre. E o medo de que o pessoal que não presta, que em todo morro tem, se aproveitasse da inocência dele e ela perdesse o filho pro mal?

Mas Taquinho não era difícil de lidar, era bonzinho, carinhoso. Com o remédio que passaram para ele o menino não tinha mais ataque. Graças a Deus, Bárbara sempre conseguiu garantir o remédio, fosse no posto de saúde, ou comprando, ou com as amostras grátis que Dona Amália arranjava.

O problema com a vizinhança só começou quando Taquinho deu de encher tudo o que era papel, parede, muro, porta, janela e até lençol estendido em varal com uns calungas, uns bichos traçados a caco de tijolo, a pedra de cal e toco de carvão. No princípio, Bárbara achou graça, se admirava, achava aquilo até bem feito e se perguntava:

— Onde será que ele aprendeu?

Ficou contente porque Taquinho deixou de sumir. Se sumia, era lá para dentro dele mesmo. Ficava em casa, entretido, rabiscando, tranquilo. Mas quando ali em casa já não havia mais um canto livre para cobrir com desenhos, quando até o cimento do chão ficou cheio, danou a desenhar nas coisas dos outros. Riscava, de preferência, bem nas tábuas ou no reboco que algum vizinho tinha acabado de caiar.

Bárbara tentou explicar para ele que não podia, que coisa dos outros é sagrada, mas era como se ele não ouvisse nada, não entendesse. O menino fazia que sim com a cabeça, virava as costas e ia direto riscar na parede do barraco de Altair, ou de Dona Berta, ou mais acima. Levava um susto, sem entender o que acontecia, quando a mãe o agarrava pelo braço para tirá-lo dali e trazê-lo de volta para casa.

Bárbara não quer chegar atrasada na reunião, mas lembrar da comunidade também faz suas ideias correrem por outros caminhos e tempos, e ela vai ficando, recordando. Se não fosse essa história de formar comunidade no morro, pode ser que há muito tempo ela já nem estivesse mais morando aqui. Sabe lá onde é que ia arrumar outro canto para viver com cinco filhos?

A vizinhança começou a ficar incomodada com os rabiscos de Taquinho e sempre tem um ou outro mais implicante. Bárbara vivia aflita, com medo de não aguentar o falatório, as reclamações, as caras feias para o lado dela e dos meninos. Imagine se quisessem que ela pagasse nova caiação nas casas!

Um dia, no ponto do ônibus, desabafou suas preocupações com Maria do Carmo, conterrânea lá do Barro Preto, que morava bem mais para cima. A amiga a convidou para fazer parte dum movimento de comunidade que estavam começando a formar no morro, dizendo:

— Quem sabe os outros sabendo do caso do menino dá para lhe ajudar?

Bárbara aceitou o convite mas demorou a ir, porque chegava tarde e cansada do serviço. O problema de Taquinho com os vizinhos só piorava. Um dia a patroa dispensou-a mais cedo, ela chegou logo em casa, resolveu e foi ver o que era aquela história de comunidade. Gostou do que viu: 12 pessoas dali mesmo, como ela, mais mulheres do que homens, sentados em tamboretes ou na beirada da mesa, apertados na salinha de um barraco comum.

Ninguém se espantou com a sua chegada, como se já fizesse parte deles. Animados, estavam cantando um canto a Nossa Senhora que lhe deu uma saudade enorme, mas boa, das rezas e procissões lá de sua terra, das missas solenes do domingo com coral e tudo. Lembrou de tudo aquilo que lhe fazia tanta falta aqui nesta cidade que parecia um mundo sem Deus.

Depois contaram casos, problemas do morro, conversaram sobre os motivos daquilo tudo que a gente às vezes achava que era só falta de sorte mas não era: era a sociedade mal arrumada em que a gente vive, injustiças. Deus não quer injustiças. De vez em quando um ou outro, com mais leitura, pegava uma bíblia, folheava para um lado e para o outro e encontrava uma passagem para ler que dava certinho com o que estavam dizendo.

Deram conta de coisas que tinham combinado fazer para ajudar alguém. Falaram de juntar o povo e lutar para conseguir uma creche, combinaram uma novena para o Espírito Santo e um abaixo assinado para exigir a volta da merenda escolar. Juntaram a contribuição de quem pudesse dar para comprar o remédio urgente de um vizinho desempregado e cantaram, cantaram muito.

Carmo puxou o assunto de Taquinho. Bárbara, meio sem querer, acabou contando tudo e foi aí que encontraram aquelas palavras de Deus que falavam dele, da sabedoria dos inocentes. Disseram que iam pensar um jeito de ajudar, rezaram juntos por cada um, pelo morro todo e por esse mundão inteiro.

Bárbara desceu para casa sentindo-se menos só. Foi de novo para a reunião na outra semana e nunca mais largou. Pegou gosto naquilo, ajudou a criar outros grupos no morro, mesmo que isso aumentasse o tanto de problemas que já tinha para resolver na vida, fazendo Bárbara se preocupar com sofrimentos de tanta gente além dos dela mesma. Mas também dava alegria quando conseguia vencer alguma coisa, uma pequena vitória contra a dor e o desespero. Bárbara se sentia mais perto de Jesus, acompanhada, irmã de muita gente. Era bom.

MB

De vez em quando vinha um padre à reunião e entrava na conversa como se fosse um deles ali. Se ninguém dissesse, não se sabia que aquele era um padre, até que começava a falar do Evangelho de Jesus e se via que ele era bem preparado para aquilo. Bárbara ficava admirada lembrando-se da carranca, do mau humor e da batina malcheirosa de Monsenhor Arnolfo, lá na terra dela, sempre resmungando coisas que ninguém entendia.

A comunidade começou a ajudá-la no caso de Taquinho. Hernandes, empregado na limpeza de uma gráfica, começou a trazer maços de papel borrado de um lado só, para Taquinho desenhar do outro lado. Olinda, porteira de um colégio de freiras, trazia tocos de lápis de cor que as alunas não queriam mais. Taquinho consumia tudo em pouco tempo, desenhando sem parar, mas deixava em paz os muros dos vizinhos. A coisa acalmou-se e melhorou muito quando o povo começou a achar bonitos os desenhos e pedir que ele desse algum para enfeitar a casa.

Lembrando tudo isso, Bárbara suspira fundo, contente, olha o relógio, levanta-se depressa e vai para a cozinha pôr a sopa para esquentar enquanto toma banho e se veste. Encontra o fogão ocupado por uma pequena pilha de quadrinhos pintados em cores vivas.

— Mas que menino distraído!

Ela pega os quadros e ri, feliz, pensando no que vai fazer amanhã mesmo. São quadros verdadeiros, pintados com todo o capricho, tinta a óleo sobre a tela bem esticada na armação de madeira, uma beleza! 

Isso é que foi mesmo uma sorte: um dia Dona Amália chegou da rua toda animada, com um pacotão de telas, tintas e pincéis. Disse que ia aprender a pintar com um pintor espanhol famoso que ia dar aulas de pintura para senhoras, no clube que ela frequentava.

Não durou quase nada o entusiasmo de Dona Amália: dois meses depois, o tal pintor, que nem era pintor de verdade, nem espanhol e nem famoso, sumiu com o dinheiro das alunas. A vocação artística de Dona Amália sumiu também e o material todo foi parar dentro de caixas de papelão no quartinho de passar roupa. Bárbara dava topadas naquelas caixas todos os dias e pensava, sonhadora, que Taquinho desenha tão bonito com tocos de lápis em papel estragado, imaginando:

— Se ele pudesse ter um material como este, que coisas lindas não haverá de fazer!

Não tinha coragem de pedir, até que um dia a patroa, por acaso, entrou lá, viu as caixas e mandou que Bárbara desse fim naqueles trastes:

— Jogue isso tudo no lixo, Bárbara, ou leve para onde quiser, que eu não quero mais nem ver essa tralha.

Quando chegou em casa com a primeira caixa e abriu diante de Taquinho, foi como um milagre. Ele foi desembrulhando as coisas como se já conhecesse, sabia direitinho o que fazer. Naquela mesma noite, o menino nem foi se deitar. Pintou o primeiro quadro, aquele mesmo que Bárbara guarda no quarto até hoje e que lhe serve para esconder o dinheiro atrás.

Taquinho não parou mais de pintar quadros, até que acabassem as telas de Dona Amália e que não houvesse mais parede livre no barraco para pendurar pinturas. Os vizinhos vinham ver, pediam um quadro, Taquinho dava. Não se importava com o que já estava feito, queria era pintar mais.

Quando o material acabou, o menino ficou triste e inquieto. Mas seu irmão, Dilermando, tinha arranjado o emprego de vender sorvete na praia e teve a ideia de pendurar os quadros de Taquinho no guarda-sol do carrinho de sorvete. Em uma semana vendeu dez quadros, trouxe o dinheiro para a mãe, compraram mais telas e tintas e Taquinho continuou a pintar.

Dilermando vendia, a procura aumentava, não havia quadro que chegasse e o preço foi crescendo. Depois de comprar telas e tintas até sobrava algum para as despesas da família. Apareceu o dono de uma loja para turista oferecendo contrato. Comprava tudo que Taquinho pintasse por um valor que custava crer. Coisa que ninguém havia de pensar: os calungas de Taquinho tirando a família da beirada da miséria. Daniely pôde voltar para escola, já está quase terminando o segundo grau e pensando em fazer faculdade. Bárbara vivia cantando — Deus seja louvado!

Bárbara, pegando a pilha de quadros que tirou do fogão, procurando onde guardá-los no espaço tão apertado da casa, sorri contente pensando que esse problema vai acabar e junto com ele o desassossego de Taquinho.

Por um tempo, fazer aqueles quadrinhos tão bonitos deixava Taquinho feliz e os outros admirados. Mas, um dia, de repente, o menino começou a pintar umas coisas que Bárbara achava muito esquisitas e que ninguém queria comprar: às vezes só uma orelha num canto e o bico de um passarinho no outro, ou uma pedaço de mão segurando o que podia ser a metade de uma flor, ou um olho grande sozinho no meio da telinha. Daniely dizia:

— É arte moderna, mãe, não se preocupe não.

Mas Bárbara se preocupava porque Taquinho começou a ficar de novo desassossegado, a sumir como antes pelas vielas do morro. Alguma coisa estava agoniando o menino. Um dia achou jeito de perguntar:

— O que é isso, Taquinho, porque está pintando tudo assim partido?

— É que as coisas não cabem mais em quadro pequeno, mãe, preciso de quadro bem grande, maior que aquela parede ali, para poder botar tudinho dentro.

MB

A mãe entendeu logo o desejo de Taquinho, mas era impossível acomodar mais alguma coisa naquela casa onde já não se podia andar sem dar topada nos trens amontoados. Bárbara então meteu na cabeça que ia fazer para Taquinho um ateliê, nome certo de oficina de artista que ela tinha visto na televisão. Ia ocupar o espaço que ficava no fundo do barraco, três metros por quatro, da porta da cozinha até o muro de arrimo do barranco, mesmo que tivesse de pôr os varais de secar roupa na rua.

Falou desse plano na reunião da comunidade. Prometeram fazer um mutirão para construir se ela arranjasse o material. Ela, feliz, garantiu que ia juntar o dinheiro, que logo iam poder marcar o início da obra. Mas cada vez que estava perto de completar o tanto que precisava para comprar o material, aparecia um caso de desgraça na comunidade, que demandava recurso para resolver. Nesses casos, cada um ajudava com o que podia.

Quando isso acontecia, Bárbara passava a noite sem dormir, pensando no dinheiro que tinha guardado na rachadura da parede e na outra pessoa necessitada. Então lhe vinham ao pensamento as palavras do Evangelho: “Quem tem duas túnicas que dê uma a quem não tem”. Em sua cabeça ficava soando o refrão das palavras de Jesus que ela gostava tanto de cantar: “Aquele irmão a quem ajudaste era eu, era eu, era eu”.

Ela não podia se negar a fazer o que seu coração mandava e lá se ia uma parte do ateliê de Taquinho para a cadeira de rodas de seu Antenor, para o telhado de Antonina que desabou, para o caixão do filho de Belinha que morreu baleado, para uma roupa e um sapato decentes com que o Zico de Carmélia se apresentasse no primeiro emprego de sua vida, e isso e aquilo, e toca a juntar de novo.

Bárbara andava cansada demais. Desde que começou com esse plano, economizava tomando um ônibus só, para ir e voltar do serviço. Caminhava a pé mais de uma hora na ida e na volta, carregando as sandálias na mão para não gastar as solas. Mas agora, pronto! O dinheiro está completo. Vadinho prometeu manter o preço do material que lhe deu no começo. É preciso correr já para não perder a reunião onde ela vai anunciar que já tem tudo e marcar o primeiro mutirão para o domingo que vem — Deus seja louvado!

Bárbara dá uma última olhada no relógio da cozinha: oito e quinze. Está um pouco atrasada mas ainda em tempo de pegar a maior parte da reunião. Sente o estômago reconfortado pela sopinha quente, o corpo desenfadado pelo banho rápido, acaba de abotoar o seu melhor vestido, o mais bonito, para combinar com a alegria de hoje. Pega o Novo Testamento e o livrinho de cânticos e vai saindo.

Quando sai pela porta da frente, quase atropela Carmélia que vem subindo os três degraus da rua, meio desequilibrada nas pernas desiguais. Carmélia está chorando, a lâmpada fraca do poste é bastante para fazer brilhar as lágrimas, que são muitas, escorrendo pela cara encovada da mulher negra que anda torta para um lado por causa da perna mais fina e curta do que a outra. Bárbara pressente desgraça, de novo! Ampara a vizinha até o sofá velho que atravanca a salinha e espera a outra poder falar.

O caso é que Zico foi acusado de roubar um videocassete na loja em que trabalha. Carmélia fala entre lágrimas e soluços:

— A senhora sabe que não foi ele, Dona Bárbara. É injustiça e maldade dos outros que acusaram só porque ele é o mais novo ali, não vai para a farra com eles, não gasta o pagamento com cerveja, traz tudo para casa. Ele sabe que eu só tenho ele no mundo e não posso mais trabalhar. Não acharam nada com ele, mas prenderam porque ele é preto e pobre, Dona Bá.

O delegado diz que se mandar para a cadeia, novinho assim, ele vai é servir de mulher para os outros. Disse que não pode fazer nada, só pode soltar se eu pagar fiança de 200 reais. Onde é que eu vou tirar 200 reais, Dona Bá, eu sozinha, só eu mais Zico nesse mundo e ele preso?

MB

Bárbara sente a revolta, a recusa lutando contra o sentimento de dó, pensando, mas sem coragem de dizer em voz alta:

— Agora já é demais! Por que sempre eu é que tenho de resolver os casos dos outros? Por que Carmélia não foi bater em outra porta? Por que eu não bati na porta do depósito do Vadinho e não lhe entreguei o dinheiro todo hoje mesmo?

Carmélia continua a chorar e a recontar a história. Bárbara procura um jeito de se livrar do pedido desesperado que a outra não diz, mas que o coração dela ouve. Não quer olhar para Carmélia para não enfraquecer, não ceder. Com que palavras poderá dizer “não” àquela mulher sozinha e desamparada como ela mesma estava quando chegou aqui sem conhecer ninguém, sem marido, com cinco meninos pequenos?

Bárbara não quer olhar para Carmélia, então olha para o teto, para o chão, para as paredes. Mas na parede vê o Cristo de gesso, ferido, pregado na cruz, no meio das manchas de umidade que parecem assim como se fosse o mapa do mundo. Vê que ele também está tão sozinho ali! Não tem jeito. Jesus, Carmélia, Zico, Taquinho e ela mesma, Bárbara, é tudo uma coisa só. Levanta-se sem dizer nada, entra no quartinho, tira o quadro descobrindo a fresta na parede. Dali retira o dinheiro do pacotinho e entrega uma parte à vizinha.

Lá se vai Carmélia, com um sorriso de alívio entre as lágrimas de gratidão, duas notas de 100 reais amassadas na mão e mais um trocado para a condução.

Bárbara fica ali sentada. Não vai mais para reunião nenhuma hoje. Bem que já lhe disseram que devia largar disso, cuidar da família dela que já é muito. Hoje não, hoje Bárbara não tem mais forças para subir o beco e ir para a reunião da comunidade. Hoje tem vontade de largar isso tudo, dizer que nunca mais vai para reunião nenhuma. Hoje não vai mesmo, mas na semana que vem ela já sabe que vai de novo. E vai continuar a juntar o dinheiro para o ateliê de Taquinho.

 

Maria Valéria Rezende é escritora, freira missionária e educadora popular, com mais de 15 livros lançados — entre romances, infantojuvenis e coletâneas de contos e crônicas. Venceu o prêmio Jabuti em 2015 com o romance Quarenta dias.

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