Felipe Hirsch | Indisciplinado 17/10/2017 - 17:00

Com interesses que vão do teatro ao cinema, passando pelos quadrinhos, a música pop e a literatura latino-americana, Felipe Hirsch não para: só fica feliz se estiver angustiado

Ronaldo Bressane

 

Às 11 horas de um frio domingo paulistano, Felipe Hirsch parecia leve, embora carregado de assuntos. Tinha recém-chegado da Europa, onde flanou pela Bienal de Veneza (detestou a grandiosidade vazia de Damien Hirst e apreciou a criatividade de Cinthia Marcelle, bem como a programação paralela) e visitou Locarno para apresentar seu segundo filme, Severina. Adaptação de uma noveleta do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, o longa é mais um elo da corrente de inspirações no imaginário da América Latina: os outros são os ciclos Puzzle e a dupla A Tragédia e A Comédia latino-americana. No festival de cinema independente suíço, o filme teve sessões lotadas e ganhou críticas entusiásticas. Pouco antes do giro europeu, Hirsch havia dirigido a abertura da Flip, em Paraty; pouco depois, ensaiava seu próximo espetáculo teatral, em São Paulo, sua cidade há 10 anos; e logo após esta entrevista, caía na estrada rumo ao Rio de Janeiro para acertar a estreia de Severina no Festival do Rio.

Ainda estava fechado o café da Livraria da Vila — cujas vitrines exibiam o inusitado encontro entre uma biografia de Donald Trump e um livro sobre gênios —, então fomos desviando das poças d’água do Jardim Paulista até o Frevinho, onde um dos principais encenadores do país bate cartão para celebrar os tradicionais beirutes. No percurso, o carioca de 45 anos falava sobre seu desprezo por café da manhã (boêmio caseiro, dorme às 6 horas todo dia e acorda quase na hora do almoço), o pânico de avião em dias chuvosos (escolheu a Dutra em vez da ponte aérea), o conservadorismo do Paraná (onde morou por duas décadas), a dramaturgia achada nos meandros da biblioteca de José Mindlin (sua próxima peça), o amor e a aversão às universidades (começou três, mas nunca se formou) e a dificuldade em desapegar dos milhares de livros e vinis atulhando o apartamento dividido com a estilista Mariana Prates (sua musa há 12 anos).

Ao chegarmos à lendária lanchonete, o papo mergulhava nas águas turvas da política brasileira — e por aí começamos a entrevista. Felizmente fomos salvos por Roberto Bolaño, Fernanda Montenegro, Luis Buñuel e sutis reflexões sobre o envelhecimento, a angústia da vida e a sorte em viver angustiado; pouco depois já estávamos no vizinho café Pascucci tagarelando sobre os espelhos na fotografia de Brassaï. Ao se despedir, o leve Hirsch encarava as nuvens carregadas levando alguma reticência sob suas lentes: parecia querer captar mais algum assunto desprendido no ar.

FH
   Fotos: Rafael Roncato

Suas peças mais recentes tiveram o apoio do Sesc/SP, que está no meio do caminho entre o Estado e a iniciativa privada. Você acha que um investimento do Estado é necessário à cultura? Como vê a lei Rouanet hoje?

Olha, se não existisse o Sesc, não teria nada. São Paulo é muito resgatada pelo Sesc. E 25% do dinheiro do Brasil está em São Paulo... por aí você percebe. Já a Rouanet é um paliativo necessário para a falta de investimento histórico de todos os governos em cultura neste país. Uma lei cheia de brechas para que pessoas mal intencionadas se metam, conseguindo muito dinheiro fácil. Pessoas que não são artistas. Essas pessoas investigadas pelo mau uso da Rouanet, eu não conheço nenhuma, e olha que conheço todo mundo no teatro faz uns 30 anos. O triste é que esse tipo de história acaba dando brechas para xingarem todo artista como...

“Mamando nas tetas da Rouanet”...

Pois é. Minha companhia só usou uma vez a lei, quando fizemos 10 anos, para captar R$ 350 mil. Tentamos mais duas vezes e não conseguimos. A ingerência dos diretores de marketing não deixa. Mas o fato de eu ter usado pouco não quer dizer que eu não ache importante. O problema é que a Rouanet está muito sitiada por grupos — como o Congresso: tem o Centrão, a esquerda, a direita... Você vê espetáculos musicais que levantam grandes investimentos — e eu adoro musicais — e já entram pagos em toda a sua extensão, sem precisar se preocupar com sucesso ou fracasso. Não depende da bilheteria ou da crítica: um espetáculo de R$ 10 milhões já entra pago, e se ficar um ou dez meses em cartaz, tanto faz. Este é um ponto mínimo para revisar na lei.

Revisar não é acabar com a lei.

Argumentam que a Rouanet tem que acabar porque “não existe Ministério da Cultura nos EUA”, mas nossa realidade não é essa. O Ministério da Cultura tem de servir à realidade do Brasil. E não tem nada a ver colocar junto com a educação... Existe um desconhecimento amplo do que é a Rouanet no país, inclusive entre artistas, pessoas que emitem opiniões preconceituosas. Precisamos de uma bela DR sobre a Rouanet e de uma lei nova, que revigore o apoio financeiro à cultura. É importante entender que quem conta a história do país é a cultura. Se não prezamos pela cultura, teremos um período não contado.

Já que estamos falando em política, não tenho como não pedir para você comentar a Lava Jato e a suposta “República de Curitiba”. Sinal do conservadorismo paranaense?

Quando eu vivi em Curitiba, nas décadas de 80 e 90, apesar de ser carioca, de Ipanema, toda a estrutura de classe média e alta sempre foi muito conservadora. Mas as pessoas mais interessantes que conheci na minha vida, escritores, músicos, artistas plásticos, estavam lá! Leminski, Trevisan, Miran, Foca Cruz, designers, as revistas literárias, pensadores, eu vivia nesse meio. Mesmo nascido na beira da praia, eu nunca fui muito carioca. Minha ida a Curitiba foi um movimento muito libertador. Agora, essa onda conservadora é brasileira, não só do sul do país. Não acredito no que leio, nessa violência verbal, nessa falta de percepção em relação a artistas, gays, minorias; tudo o que não seja correto dentro do sistema pregado pela mentalidade reacionária é muito agredido. E eu, naïvemente, pensava que estávamos um passo à frente disso. Agora, fora os reacionários, eu tenho de me equilibrar entre as patrulhas de esquerda, os intelectuais...

FH

E seus próprios pares? Não te chamam de “isentão”?

Sim! “Como assim você não gostou do governo PT?”. Não, não gostei do governo Dilma e quero que o Temer caia. Mas o pior são os linchamentos. Vivemos uma era de linchamentos medievais. Tento me desinteressar por isso, porque, quando leio essas coisas, penso: “Que terrível eu ter lido isso”. A maneira como reverbera é um problema. Como no caso dessas recentes exposições de pessoas com posturas misóginas. Claro que uma mulher agredida tem de ser cuidada com todas as vírgulas e sílabas. Mas a reverberação às vezes é grave. A liberdade é perigosa, está ligada ao tamanho da educação e de sua percepção do mundo.

Nos seus últimos trabalhos há muita eletricidade política. Foi criticado por isso?

No Tragédia, um texto do André Sant’Anna causou pelo fato de eu escalar uma mulher, Magali Biff: confundiu-se com crítica à Dilma, e algumas pessoas jogaram os programas no palco, em cima dos atores. Não considerei ruim, não machucou ninguém. Só que não havia menção à Dilma. Aliás, embora seja muito crítico ao começo de seu segundo mandato, tenho grande simpatia pela Dilma nos instantes finais — ela deixava a Lava Jato correr, a operação era mais autônoma do que hoje. Mas não deixo de acreditar que o país estava em função de um partido, e essa não é uma boa ideia.

Passando à política continental: por que o Brasil dá as costas à América Latina?

Em primeiro lugar, a língua. Depois, as colonizações muito violentas, mas muito diferentes. A gente não estuda a América Latina no colégio. O Uruguai, a Argentina e a Colômbia não sabem nada de nós também. Só pensam que, se o Brasil vai mal, o resto da AL vai mal. E tem a diferença de pirâmides. Esses países têm classes médias mais fortes que as do Brasil. Nossa elite ambiciona a elite dos EUA, e são as pessoas que ditam o comércio, a política, a cultura do país. Por isso nos afastamos. As classes menos favorecidas no Brasil respondem aos interesses das pessoas mais ricas, que se relacionam mais com os EUA do que com a Europa. Até os anos 50 o padrão era francês, agora é o americano.

A América Latina então seria um espelho distorcido para os brasileiros?

Brasileiro nem tem esse espelho em casa. Não sabe a diferença entre um colombiano e um argentino. Temos 100 milhões de índios dizimados, ditaduras de esquerda ou direita, ainda assim nos desconhecemos. E é vice-versa. Tenho trabalhado muito com uruguaios, chilenos, mexicanos, colombianos, argentinos, e eles também não sabem nada sobre o Brasil. No Uruguai, enquanto filmava o Severina, a rádio vivia tocando uma música que descobri depois ser um axé de quinta. Somos bons em exportar lixo.

E no que toca à literatura, como sente essas diferenças?

Lê-se mais no Brasil, apesar de tudo, mas não é o bastante para chegar na diversidade argentina. E, de fato, na Argentina a realidade literária de editores, autores e leitores é exemplar. Você vai numa livraria em Palermo e vê que três dos dez mais vendidos são autores argentinos contemporâneos, e não são auto-ajuda.

Como se interessou por literatura latino-americana?

Sempre li, dispersamente, Borges, Cortázar. Dificilmente lia os contemporâneos. Aí, em 2007, comecei a ler os contemporâneos brasileiros. Acho que li uns 200 autores, porque cultivava um projeto sobre literatura brasileira, ainda sem saber o recorte. O Sesc pediu um trabalho para a Feira de Livros de Frankfurt. Foi quando interrompi o trabalho com a Sutil, e começamos esse coletivo chamado Ultralíricos, com artistas plásticos, atores, músicos, escritores. O primeiro foi Puzzle, em quatro espetáculos, a seguir a Tragédia e a Comédia, e agora meu filme, Severina, especificamente com o autor Rodrigo Rey Rosa. Com esse universo, escrevi ainda uma série pra Globo, que está suspensa, a melhor coisa que já fiz na vida. Escrevi um argumento e mandei pra 20 autores, Alan Pauls, Zambra, Villoro, Sant’Anna, Reinaldo Moraes... Depois eles me devolveram o texto e passamos para seis roteiristas, Felipe Bragança, André Czarnobai, Marina Meliande... Tenho esperança que algum dia aconteça. Se chama Futuro perfeito.

Você tem essa coisa nerd de tentar esgotar um universo, não?

Sou completista. Da minha banda favorita compro os discos ruins também, não só os bons. Quando quero saber uma coisa, vou ler tudo, saber tudo do que se trata. Me divirto com isso.

E vinil?

Fui daqueles idiotas que doaram seus 5 mil vinis e agora estão comprando tudo de novo [risos]. Uns seis anos atrás, fiz uma ópera, ganhei uma graninha e disse para a Mariana: comprei um carro. Ela estranhou: é que, como não dirijo, comprei um som que valia o preço de um carro. Então comecei a comprar vinil de novo com o objetivo de ter só 500 discos imprescindíveis. Já estou em 3 mil vinis e ainda não comprei os meus 500 imprescindíveis, é ridículo, sou um fracasso [risos]. Tenho problemas sérios de armazenamento. Jurei a vida inteira não ter biblioteca no quarto para não ficar cheirando poeira e agora durmo soterrado por livros. Sei que é possível um exercício terapêutico de desapego, e sei que tenho livros que nunca vou ler. Mas não tenho nem tempo pra fazer uma seleção decente do que quero largar [risos]. A decisão sobre o que eu vou largar pelo caminho é difícil, tem livros que me acompanham há décadas, mas eu nunca os li, então eles já viraram companheiros. Saber que estão comigo é reconfortante. Não sou um nerd de organização. O Mindlin usava “indisciplinado” pra definir sua biblioteca, me identifico.

FH

Você usa a biblioteca de uma forma criativa?

Tenho a sensação de que um único livro poderia me dar um universo e me abastecer pelo resto da vida. Os Contos de Tchecov, por exemplo. E um livro leva a outro. Pega por exemplo o Rosa, que morou em Tânger com Paul Bowles e a Jane Bowles. Aí você tem que ler tudo desses dois. O prefácio do livro da Jane é do Truman Capote, então você tem que ler tudo dele. O Severina acaba com uma citação da Jane Bowles.

Como chegou a Rodrigo Rey Rosa?

Via Bolaño, que eu lia desde 2005. No Entre parênteses, Bolaño traça um desenho bonito da literatura que admirava na América Latina. Conta que Rodrigo vivia gripado, então o Bolaño pedia para não deixarem ele morrer, porque com ele morreria também o futuro da literatura, e levava pro Rodrigo dúzias de laranjas. Eu adorava aquele livro dele sobre o mendigo que sonha. Então o produtor Rodrigo Teixeira me convidou pra fazer um trabalho e me deu o exemplar de uma revista McSweeney’s organizada pelo Daniel Galera (Acerto de contas, Companhia das Letras), que tem um conto do RRR. Voltei a lê-lo e descobri o Severina. É um livro curto que fala sobre sua separação. O narrador usa o fim do relacionamento para propor uma espécie de vingança. Mas quando ele se envolve no universo feminino, as personagens mulheres prevalecem como o mais interessantes. E aí no lugar da vingança vem o perdão. Rodrigo apontou um coprodutor no Uruguai e aí fomos para Montevidéu, uma cidade perfeita pra filmar, pode ser Porto Alegre, Havana, Buenos Aires...

O filme trata do perdão, certo?

O narrador cria uma metáfora genial na figura de uma menina que rouba livros na livraria dele e de outros. Tem uma maneira quase oriental, muito simples e direta de narrar. Existe uma visão masculina do relacionamento, mas aí ele entra em uma ficção sobre esta mulher tão fascinante, fica tão obcecado por isso que o perdão o redime. O texto cita o William Carlos Williams, “What power has love but forgiveness?” — “Que poder tem o amor senão o perdão?”.

Seu filme é antirrealista, assim como suas últimas peças.

Essas peças são um cabaré macabro. Gosto do Brecht, opinar na primeira pessoa. Os atores quase nunca se tocam, o texto está à frente. Eu tinha uma questão centrada na narrativa memorialística na Sutil Cia: por mais que não fosse realista, a cena tinha uma estrutura dramatúrgica ligada ao naturalismo. E eu queria quebrar isso. Me sentia muito centralizador nessa época. E fui cansando desse lugar do teatro. Sabe, a última opção do ator às vezes é ir para o teatro. Ele quer fazer TV, filme, se não der certo vai fazer teatro. Eu estava saturado de entrar na sala de ensaio para repetir. Ia para o primeiro ensaio empolgado e no segundo ficava desesperado. Por isso busquei um modo de convocar os artistas que admiro para somar em um trabalho que eu orquestrasse sem centralizar, juntando um movimento coletivo artístico importante para a cidade de São Paulo, para o Brasil e para o momento que a gente vive. Assim as obras passam a ser cada vez mais únicas. Tem o Carlito Carvalhosa, o André Sant’Anna, o Rafael Coutinho, músicos, atores, a dramaturgia vem como um encontro entre saberes. Adoro, por exemplo, atrair atores que cantam “mal bem”. Detesto os “bem bem”, os “mal mal” ninguém merece e dos “bem mal” eu tenho horror. Tom Jobim é um cara que canta mal bem, e o Bob Dylan também. A atriz Georgette Fadel canta mal lindamente, foge da técnica mas tem estilo. É o que me apaixona.

FH

Como você vê a crítica teatral?

Não leio mais jornal em papel faz muitos anos. Me irritava muito com os cadernos culturais. Mas hoje praticamente acabaram. O espaço da crítica sumiu. Um jornal vende 200 mil exemplares, 10% leem o caderno de cultura, 10% leem a crítica de teatro — dá 2 mil, que somos nós [risos]. Não quero participar desse uróboro tedioso. Agora, sinto muita necessidade da crítica. Defendo o leitor crítico como um complemento do trabalho. Sou formado no Crítico como artista do Wilde, em que ele demonstra como o crítico é fundamental para o artista. Fui criticado muitas vezes, me chamaram de gênio e de mendigo, então você aprende a não dar ênfase nem às vitórias e nem às derrotas, descobre que aquilo não é a verdade absoluta. O que me interessa é ver uma pessoa que respeito falando de meu espetáculo para me alimentar com outras coisas, o que sempre foi raro. Grandes críticos de teatro do Brasil nunca tive por referência. Agora, sinto falta da Barbara Heliodora, pois era uma apaixonada por teatro. Falava coisas às vezes erradas, injustas, mas com vida e paixão. São outros tempos hoje: vivemos o culto ao amador. Gosto desse livro do Andrew Keen, o Culto do amador. Este é o nosso tempo, em que as verdades são incertas.

Como foi mostrar o filme em Locarno?

Foi superbem recebido. Sessões lotadas, extras, público aplaudindo muito, ninguém saindo da sala, críticas assustadoramente positivas. Agora, o festival é louco, pois envolve mercado, lobby, imprensa, pautas distantes do teu primeiro impulso de fazer um filme. É um festival ousado, agradável, muito legal, mas ainda assim tem mesas com calculadoras, é a diferença entre a SP Arte e a Bienal. Apesar disso foi muito bem, tivemos muito carinho, a Variety fez uma crítica linda, sites italianos e suíços falaram bem.

E o que é essa nova peça de teatro?

É a terceira parte do projeto que começou no Puzzle. O nome provisório é Brasilianas. São documentos da Biblioteca Mindlin que transformei em cenas. Há cartas do Guimarães Rosa explicando o Grande sertão aos tradutores. Não sei como vou encenar isso [risos]. O primeiro relato de uma mulher falando sobre o Brasil, no século XVI. Um texto de 1580 contando como levaram 50 índios para a Europa e vestiram os franceses de índios pra explicar o Brasil. Documentos que provavam as benesses dos escravocratas porque livravam os africanos de guerras de tribos africanas — um mito que é parte de nossa educação. Estou há quase cinco anos pesquisando a biblioteca digitalizada. Selecionei 40 documentos, livros de 1600, 1700, que contêm registros históricos. Essa ideia surgiu no meio do Tragédia, quando comecei a visitar a Biblioteca do Mindlin. É um espaço lindo, você senta numa cadeira do Sergio Rodrigues, pega um livro, desce na Livraria da Edusp, a melhor de São Paulo, e se sente a pessoa mais burra do mundo: lá tem coisas como uma monografia sobre uma orquídea amazonense, o que para uma pessoa ansiosa é horrível, dá vontade de voltar à universidade. Então eu ficava ali lendo o que poderia encenar. O Sesc gostou e estamos enlouquecendo agora.

E seu flerte com os quadrinhos?

A aproximação com o Rafa Coutinho no Puzzle foi por eu ter amado o Beijo adolescente, graficamente lindíssimo. Quando fomos para a Europa, o Rafa começou a estudar o Mensur lá. Sempre leio muita HQ. Na Tragédia tem o Marcelo Quintanilha, que admiro demais. Tenho vontade de levar o Will Eisner para os EUA, mas é um mercado muito fechado.

Você nunca teve vontade de escrever?

Escrevo bastante, mas não sou um escritor. Escrevi roteiro, ensaio, coluna, peça. Por lidar com eles, admirá-los, lê-los, amá-los, não me considero um, não no meu nível de exigência. Escritor é a Flannery O’Connor.

Vai continuar passando do teatro para o cinema?

Quero fazer filmes rápidos e pequenos, sem precisar ficar quatro anos levantando dinheiro. O tamanho de um filme não faz ele melhor ou pior. Não vou filmar em estúdio, para gastar uma fortuna em cenários da Daniela Thomas. Agora, saltar de uma linguagem para outra é natural. Odeio quem pensa que um artista não pode circular em variadas linguagens, “Caetano não pode fazer filme, escritor não pode fazer filme...”. Minha formação de teatro é cinematográfica. Vi muito Bergman para entender como o espaço tem uma energia específica, as cores de Kurosawa... Hoje admiro muito os Dardenne, Miguel Gomes, os pernambucanos, Claudio Assis, Gabriel Mascaro. Os irmãos Coen, que sabem exatamente em que ponto emocional você está para jogar com você, tensionar e distensionar, a condução emocional deles é muito firme, eles não têm fronteiras.

FH

A gente falava sobre como seu filme não é muito realista em um zeitgeist obcecado pelo realismo...

Eu mirei no Buñuel e acertei no Rivette. Foi o que me disseram, que o filme lembra Rivette, Rohmer, Visconti, fiquei muito lisonjeado. Mas nunca pensei nesses nomes, pensava no Tristana do Buñuel. Queria uma liberdade com o realismo, fazer um convite a outras atmosferas e camadas. Gosto daquele livro do David Shields, Fome de realidade, incrível, sobre o quanto a gente aproxima a ficção da realidade, um livro inteiro montado com citações, de Montaigne a Seinfeld. Mas, quando você vê um filme como Poesia sem fim, do Jodorowsky, como é possível aquilo hoje? O Severina, guardadas as proporções, é um filme out of zeitgeist. Ficar na crista da onda te dá o risco de submergir em dois segundos. Meu filme pode fazer sentido daqui a um tempo. Ele não é político, por exemplo. É onde me sinto mais confortável, onde me emociono. Não penso em obras de modo estratégico. Me considero estratégico ao me convencer a fazer algumas coisas para construir meu pensamento artístico. Não quero me colocar nos melhores lugares, porque o lugar certo sempre muda de lugar. Outro dia ouvi um amigo dizer “NY não está com nada”. Mas, poxa, nesse meio tempo já surgiram lá cinco coisas novas que ele não ficou sabendo. As coisas acontecem no subterrâneo, não adianta caçar tendências. Se procurar fosse achar, todo mundo estaria no mesmo lugar [risos].

Você comentou que é ansioso. Como tem trabalhado com isso?

Ansiedade é boa no sentido produtivo. Mas há um momento da vida, que tem a ver com o envelhecimento, em que você é livre. Foi quando aprendi a falar “não sei”. Quando você é jovem, tem muitas certezas. Um diretor jovem dá chilique porque está inseguro. Quando você diz “não sei”, ganha uma liberdade e fica sereno. Então não tenho ansiedade existencial, pois tenho realizado coisas. Não tenho planos pra construir um acelerador de partículas na Suíça [risos]. E consegui um certo equilíbrio espiritual. Descobri que Deus existe desde cedo. Creio em uma energia que conecta todas as coisas — se quiser chamar de Deus, ok. Claro que sou evolucionista, mas existem milagres, há um milagre em ligar as coisas. Esse equilíbrio me deixa entender que envelhecer não tem nada a ver com deixar a mente envelhecer. Agora, o que me causa ansiedade é o envelhecimento dos meus amigos, da minha família, das minhas referências, do lugar onde eu sou mais eu... Os lugares que eu conheço estão indo embora. Também passei a conviver com pessoas mais velhas, como a Fernanda Montenegro, o Paulo Autran, o Antonio Abujamra. E vi que, mais ou menos sábios, mais ou menos doentes, todos chegaram à velhice deprimidos. Ninguém chega à velhice falando que é o melhor momento da vida. É um momento difícil, em que você mais perde do que ganha. Assim, estou aprendendo a lidar com isso, a ser menos nostálgico — a nostalgia é a morte, diz Dylan. Tento pensar mais no futuro e menos no passado, se as pessoas que quero bem estão bem, se consegui realizar meu dia, e aí consigo me reequilibrar. Porque se penso demais no passado ou no futuro, me angustio.

O que você pensa da sorte?

Acho que a sorte está muito ligada à energia que você coloca nas coisas. Realmente acredito que você consegue estabelecer uma energia nas suas realizações, relacionada ao bem estar e à amorosidade — e isso resulta na sorte. Não estou sendo pragmático: você percebe que tem sorte quando percebe que tem condição de dignificar a condição humana, tão difícil de ser digna. A verdade é que a gente vive pelos prazeres que a gente conhece. Negar esses prazeres e essas sensações boas é perder o pouco que se conhece. A partir do momento em que as coisas simples te trazem prazer e esses prazeres surgem como importantes, você vê que a sorte está aqui. A sorte de ter bons amigos, de viajar, de trabalhar, de ter energias boas ao teu redor. É neste lugar que você percebe a sorte.

 

Ronaldo Bressane é escritor e jornalista. Publicou, entre outros livros, Metafísica prática e Escalpo.

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