As Muitas Clarices 26/06/2020 - 12:39

Uma conversa com a escritora e ensaísta carioca Vilma Arêas, autora do livro Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos

Jonatan Silva

Clarice Lispector (1920-1977) foi uma esfinge. Do seu nascimento na pequena cidade ucraniana de Chechelnyk — um vilarejo cuja população não chega a 10 mil pessoas — até sua morte, vítima de um câncer diagnosticado em estágio avançadíssimo e intratável, a escritora viveu envolta em uma espécie de mistério particular: uma névoa que cultivava com uma obra impecável e vasta.

A literatura de Clarice, por sinal, parece ser o epíteto de sua própria geração. Seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem (1943), escrito quando tinha apenas 20 anos, romperia com a tradição regionalista que tomava conta da literatura brasileira naquele momento, na figura de escritores como Erico Verissimo (1905-1975), José Lins do Rego (1901-1957), Rachel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001).

A escritora buscava nas cenas cotidianas, recheadas de metáforas, a composição para uma narrativa intrincada e intimista, alcançando o ápice na famosa cena de A Paixão Segundo G.H. (1964), em que a narradora — enquanto limpa o quarto da empregada recém-dispensada — devora uma barata. O gesto, entre o banal e o grotesco, é a chave para um romance monumental e também para a consolidação da escritora como uma mulher hermética, autora de livros insondáveis.

Para celebrar o centenário de Clarice Lispector, o Cândido conversou com a escritora, ensaísta e ex-professora da Unicamp Vilma Arêas, autora de Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos (2005), obra vencedora do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Se para uns tantos a literatura da autora de Felicidade Clandestina (1971) se resume a uma evocação feminista, na visão da pesquisadora Clarice é universal. “Ela escreve sobre mulheres, sobre homens, sobre bichos, também sobre os deserdados sociais”, explica.

Existe, em verdade, uma escritora para além dos mitos e dos rótulos. Como Fernando Pessoa (1888-1935) — um homem de muitos eus —, Clarice — uma mulher que também guardava muitas versões de si mesma — foi acometida pelo mal de ser mais adorada que lida. Essa questão esbarra em um fenômeno tecnológico: as frases atribuídas à autora e que pululam na internet. Ao mesmo tempo, foi (re)descoberta no exterior graças à polêmica biografia Clarice,, escrita pelo historiador Benjamin Moser. “Achei o livro equivocado nas análises e no desejo claro de furo jornalístico para impactar”, comentou Vilma. Leia a seguir.

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Vilma Arêas é autora do livro Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos (2005). Foto: Reprodução/YouTube

 

Clarice Lispector sempre retratou o universo feminino de uma maneira ímpar: explorou as dores da maternidade, as agruras do casamento e o silêncio da solidão da mulher em uma sociedade estruturalmente machista. Como sua obra pode ser interpretada à luz das lutas atuais das mulheres? Seria um possível diálogo com os nossos dias que ainda torna o universo clariceano tão fascinante e relevante?
Penso que é equivocado pregarmos o rótulo de “feminista” na obra de Clarice Lispector.  Com uma formação nada ortodoxa (trabalho precoce, curso de Direito — queria reformar os presídios —, leituras misturadas, etc), Clarice desenvolveu um estilo muito original, seguindo a própria intuição na busca de seu processo criativo. Também foi impulsionada pelo talento, que ninguém explica direito o que seja. Ela escreve sobre mulheres, sobre homens, sobre bichos, também sobre os deserdados sociais. Escreve muito sobre o escrever, isto é, escreve suas tentativas e dúvidas quanto ao que está escrevendo, como em Perto do Coração Selvagem (1943), A Maçã no Escuro (1961) e A Hora da Estrela (1977), em que ela se desdobra em três: Clarice Lispector, Rodrigo S.M. e Macabéa. Um bom exemplo de sua construção de personagens encontra-se em “Amor”, conto de Laços de Família, livro de 1952, ampliado na publicação de 1960. Ana, a protagonista, casada, com filhos, vida absolutamente regrada, pois ela tudo controla e administra, uma tarde vê um cego mascando chicletes. Ele parecia automático, com a mastigação sorria e parava de sorrir, sorria e parava de sorrir. Certamente Ana viu-se retratada nele, no movimento que imprimiu à própria vida, por temperamento e por desejar apagar a “paixão de viver”. Vale a pena ler o conto e pensar sobre suas questões, longe dos rótulos.

 

Em Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos, a senhora diz: “Ninguém duvida de que nos dias de hoje haja tantas Clarices quanto se queira”. Essa frase me parece interpretar — ou prever — o uso do nome da autora de maneira indiscriminada, atribuindo a ela coisas que jamais disse. A senhora já chegou a dizer que Clarice, assim como Pessoa, foi transformada em santa, muito mais adorada que lida. Como essas muitas Clarices — a verdadeira, aquela que está nos livros, entrevistas, cartas, etc., e a recriada — entrelaçam-se para difundir a obra da escritora? Quais os perigos desse movimento apócrifo envolvendo grandes nomes da literatura?
Antonio Candido dizia: “Ler é reler”. Em relação a Clarice, porque virou santa, hoje em dia as pessoas já chegam para adorar antes de ler. Sem atenção, sem avaliação. Esse processo de santificação vem de longe, antes dos anos 1970, quando uma editora francesa “descobriu” Clarice, colocando-a no grupo feminista. Mas há outra pesquisadora estrangeira mais interessante, como Claire Varin, canadense que veio ao Brasil, aprendeu português, investigou e escreveu dois livros nos anos 1990, que foram traduzidos entre nós.

 

A senhora costuma dizer que não se sente escritora. A Clarice afirmava o mesmo, que não era profissional, que escrevia apenas quando queria. Isso, em alguma medida, parece refletir o descaso da sociedade para com a figura do artista. Por que uma escritora do calibre de Clarice Lispector não conseguia se enxergar como tal? E no seu caso, o que ainda falta para mudar essa percepção de si mesma?
Acho que é uma sorte quando se faz arte sem precisar ganhar a vida com ela, porque ficamos independentes, podemos escrever quando desejamos, sem datas. Escrever e reescrever. Mas isso não é uma lei geral.

 

Clarice, — biografia escrita por Benjamin Moser e considerada por muitos como “definitiva” — retrata a escritora como uma figura mística, uma mulher distante da realidade. Como é possível trazê-la novamente para um campo “mais humano”, mais próximo, inclusive, do leitor?

Sinto muito, tentei ler Benjamin Moser, mas não consegui. Achei o livro equivocado nas análises e no desejo claro de furo jornalístico para impactar. Uma chatice, bastante oportunista.

 

Ainda sobre o livro de Moser, em uma passagem polêmica, o biógrafo cria um relato desdenhoso de Maria Carolina de Jesus e coloca Clarice como uma mulher “proverbialmente linda”. Que leitura a senhora faz dessa passagem?
Não posso responder. Pelo que você diz, deve ser um terror.

 

A despeito de todos os problemas encontrados em Clarice,, seria correto dizer que, ao menos, o livro serviu para projetar Clarice para o público estrangeiro?
E qual é a vantagem de ser conhecida dessa maneira? Bom, gera lucro para pessoas que realmente não precisam de dinheiro.

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Em dezembro de 2020 é comemorado o centenário de Clarice Lispector (1920-1977). Foto: Divulgação

 

As reações ao assassinato recente de George Floyd — homem negro asfixiado por policiais nos EUA — fazem lembrar da indignação de Clarice diante da morte de Mineirinho, assassinado com 13 tiros pela polícia do Rio de Janeiro. Para além do experimentalismo linguístico e do olhar sobre o feminino, na sua opinião, como a literatura de Clarice Lispector lida com as questões sociais e as feridas histórias brasileiras?
Não precisamos de George Floyd para nos horrorizar com a matança de inocentes ou de pobres, principalmente negros. O Brasil é um dos países em que a polícia mais assassina e é estimulada para isso por governantes paranóicos ou simplesmente cruéis. Era preciso fazer um movimento de repulsa dessa situação aqui, mas o racismo brasileiro é muitíssimo entranhado. Para uma análise do texto “Mineirinho”, aconselho o livro de Yudith Rosenbaum, Metamorfoses do Mal, publicado pela Edusp/Fapesp.

 

Lendo a obra da escritora italiana Elena Ferrante é possível perceber algumas questões que se cruzam, temas que dialogam e olhares comuns sobre questões cotidianas. Como a senhora percebe essa intersecção entre as duas autoras?
Acho que são completamente diferentes, basta observar a construção do texto e a intenção literária de ambas.

 

A polêmica envolvendo a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip trouxe à tona a relação da poeta norte-americana com a autora de A Hora da Estrela. Bishop chegou a traduzir alguns textos de Clarice, tentou se aproximar, mas a amizade não vingou. Que leitura a senhora faz desses episódios?
De novo, elas são muito diferentes, tanto que “a amizade não vingou”.

 

A respeito da questão de influência de Clarice Lispector sobre os autores contemporâneos: até que ponto essa não é uma herança maldita, que prende o escritor a algo que, de tão poderoso, acaba por aprisioná-lo?
Não concordo com a “herança maldita” e não vejo influência da Clarice em autores contemporâneos, embora não os conheça todos. Estão escrevendo muito agora, pela facilidade de impressão, e acho isso bom. Mas “herdar” procedimentos é outra coisa. Acho difícil isso acontecer pela complexidade das questões formais inventadas, conscientemente ou não, pela autora de A Hora da Estrela.

 

Quando da publicação de A Hora da Estrela, a senhora visitou a escritora no hospital. Ao dizer que achava o livro uma obra-prima, Clarice disse: “tanta gente está gostando que não pode prestar”. Clarice acreditava mesmo que a literatura deveria ser um instrumento hermético, algo distante do grande público?
Não creio que o problema tenha sido a defesa do hermetismo ou do afastamento do grande público. Quem não gosta de ser admirado? Mas depende, não é? O que você sentiria se um de nossos ministros atuais elogiasse um livro seu? Pensaria em se matar de vergonha, não?  Ela talvez tenha achado que tinha escrito um livro muito particular, um verdadeiro testamento à hora da morte, centrado em uma pária social afogada na indecente desigualdade social brasileira. Para escrevê-lo usou formas populares, português pobre contrastando com o pedantismo de Rodrigo S.M. (“na verdade Clarice Lispector”), ao mesmo tempo de olho no Fellini de La Strada. Não é pouca coisa. Um livro tão triste, tão dilacerante falando do que ela julgava um grande fracasso e ao mesmo tempo tão absolutamente engraçado, no molde das comédias clownescas! Diante de tudo isso, aquele “toda a gente está gostando” desilude.

 

Quando falamos na prosa de Clarice Lispector, é impossível deixar de lado o experimentalismo que, ao mesmo tempo, tem um quê de poesia — algo bastante perceptível no conto “A Mensagem” —, ainda que a própria autora negasse qualquer inclinação pelos versos. Gostaria que a senhora comentasse sobre a ligação de ficção de Clarice com a criação poética. Que caminhos ela toma?
É engraçado que “A Mensagem”, um conto muito problemático e mal resolvido,  só foi analisado, salvo engano, por Leyla Perrone-Moisés em Flores na Escrivaninha (Companhia das Letras) e por mim em “Une prose tentée par le grotesque e la poésie” (Europe, revista literária francesa), que vai sair, quando a pandemia deixar, na segunda edição de Clarice Lispector com a Ponta dos Dedos, pela Imprensa Oficial. Uma parte importante do conto fala do desacerto de Clarice com seu livro de poesias, já pronto em 1943 — Lúcio Cardoso o anunciou e um jornal do Rio — e que ela deve ter jogado fora, porque o livro desapareceu sem deixar traço. Isto é, deixou pegadas transparentes para serem olhadas a contraluz. A partir de então, sempre negou “ter começado pela poesia”. Vingou-se, ou desabafou, em “A Mensagem”. Acho que esta é a linha principal, mas não é só isso. O conto é muito tumultuado.

 

Por fim, para quem ainda não está familiarizado com Clarice Lispector, que itinerário seria possível traçar? Por onde começar?
Ah, não sei dizer, teria de conhecer a pessoa, conversar. Talvez fosse bom começar pelos textos mais curtos ou começar pelo começo. Perto do Coração Selvagem é muito complexo, mas tem um arrojo e um sopro de juventude encantadores. Bom, a pessoa tem de gostar de literatura e reler sempre. “No Raiar de Clarice Lispector”, de Antonio Candido, que saudou imediatamente o livro em 1943, pode ajudar e muito.

 

JONATAN SILVA é escritor e jornalista, com passagem pelas redações da Tribuna do Paraná e Paraná Online. Foi editor da revista Mediação, do Colégio Medianeira, e colabora regularmente com o jornal literário Rascunho e o portal Escotilha. É autor dos livros O Estado das Coisas (2015) e Histórias Mínimas (2019).