CONTO | Tenório Rocha 24/02/2025 - 15:39
Mita
por Tenório Rocha
Maria Carmelita Açucena da Conceição. Preta dos olhos pretos, peito duro que nem coco, cabelo solto e espírito ainda pior. A Deus nada devo, nem nunca fomos apresentados. Ou Ele é corrido demais ou eu é quem não paro num canto. Sou mulher. Mulher. Se isso não te assusta, deveria, queridy. Mulher, sim, de sangue grosso, coração calejado. Nasci em berço de besouro, só se for, casa de taipa é paraíso de Chagas, queridy, muriçoca era estrela que zunia e voava, e dos buracos no forro de madeira choviam ovo de lagartixa e bosta de morcego, pensa, isso quando mãe não acordava a gente com chinelada na cara, porque barata d’água tava subindo no pescoço pra lamber resto de papa.
Brincava com boneca de sabugo, de pano era luxo, de plástico só se achasse no lixo com a cara encardida com os zói tudo pra fora. Essas eu levava pra casa, dava um banho de torneira, passava a escova de dente de papai na cara dela, com sabão de pedra. Depois recortava um trapo e fazia um vestido. Pensa numa marmota, dou até risada. Tempo ruim da desgraça que tenho saudade, aquele.
Everaldo, bicha velha amiga minha, era quem dizia: tua vida dá um livro, Mita. Olha pra isso, um livro? Tô com tempo nem pra fazer unha, tirar bigode, depilar virilha com aquela delícia de cera quente de Jandira, endireitar minhas madeixas, vou perder tempo com coisa que não dá lucro? Só porque passei fome sou motivo de livro? Passar fome não é, nunca foi e nunca vai ser diferencial, quiridy. Só porque fui puta de feira? Volta lá na minha terra pra tu ver se não tem mais puta do que chinela de couro e melancia, e cada vez mais novinhas.
Eu tinha o quê, quinze anos quando dava a priquitinha atrás do hospital? Era nem isso, hoje com dez ou doze as rapariguinhas estão soltando fogo e nem sei mais se é por dinheiro ou se é por safadeza. E pegam bucho, pegam bucho como se pega a doença da cólera, deixam lá pra vovó criar e se soltam no mundo como a bestafera, eu pelo menos não deixei filho pros outros darem conta, esse desgosto não dei à mamãe.
Contar coisa que passei, conto aqui mesmo, quiridy, sem dó nem nó, e se quiser gravar aí no gravador do celular pra depois dar risada, que grave, em alto e bom som eu vou dizendo, vou contando o que me perguntar e o que não perguntar, tá ouvindo, tá gravando, tá vendo? Vocês querem saber tudo, né, quiridy? Bando de urubuzinho carniceiro de desgraça dos outros, desgraça e graça, rá, ninguém é de tudo miséria nesta vida, quiridy, já rodei muito em forró risca-faca também, botei velho na tumba de pau duro, roubei muito dinheiro de cabra sem vergonha traidor, roubei dinheiro e vou dizer que até já matei, mas isso é passado de outros passados, nem é bom pronunciar assim de tanto alto e bom som, olha aí, quiridy, tudo de olhinho arregalado, tem uma ali até suando, né, bicha despenteada?
Gosta das desgraceiras, né? Apôis eu conto, eu conto, conto. Matei, matei, por quê? Foi num fim de feira, uma amiga minha de escola apareceu com o olho deste tamanho, ó, a cara ralada, toda estropiada, me viu e fez que não viu, abaixou a cabeça e tomou rumo, corri atrás dela, virei a cara dela pra ficar frente com a minha, não precisou de muita coisa pra eu ver que tinha sido coisa do padrasto dela, e num era a primeira vez que ele fazia isso, e até coisa pior, aquele infeliz das costas ocas. Eu pensei, deixa quieto, maldito, teu dia chega e não tarda. Dito e feito. Foi noutra feira pra lá de seis meses depois, eu tava encerrando o expediente, dia bom, bem cansativo, mas tava com a bolsa entupida de nota de dez e mais um bocado na calcinha, e no sutiã, que é pra ladrão num ganhar sorte.
Já tava puxando o carro, foi quando o bandido do padrasto de Verônica encostou em mim com aquele fedor de cachaça, coçando o bigode, envergando com a mão nas costas querendo coisa. Eu disse: acabou-se serviço por hoje. E ele: “Vem cá, quenguinha, tu nunca fosse de dispensar nem dinheiro nem rola, tome”, e foi botando uma mão no meu bolso com uma nota de vinte e a outra mão no meio das minhas pernas. Eu, assim, com um shortinho caju e blusinha branca, me afastei e disse: “Tu não tem vergonha, não, cachorro manco, abusar de uma menina inocente”. Ele arregalou os olhos e, num trisco, me deu uma bofetada de mão aberta bem aqui no canto da boca. Virei numa rodada, quase me estabaquei, mas, meu filho, a pomba gira voa. Andei dois passos pra trás, tirei da bolsa meu punhal de cabo de rabo de peba. Foi quando ele veio pra cima e, no abraço, deixei-lhe um furo no pescoço igual se sangra galinha.
O quê, quiridy, ficou lá estrebuchando, foi achado no clarear do dia, com a cara de sangue seco e todo inchado. O homem tinha tanta intriga que sabe lá Deus até hoje quem matou o peste. Quem matou? Quem matou? Quem matou, quiridy, eu não sei, vocês sabem? Me digam: quem matou o cachorro?
Tenório Rocha, nascido em 1986 em Garanhuns, Pernambuco, é estrategista de marcas, redator, roteirista e escritor. Após viver em Curitiba (PR), percorreu diversas cidades do Brasil e atualmente reside no Sul de Minas Gerais, onde cursa Psicologia. Entre suas obras destacam-se A parte amarela do fogo (Matriz Verbal, 2023), A última parede do labirinto (Patuá, 2022), Fígado (Selo LIVRE, 2019) e Ô de dentro! (Lura, 2017). O conto “Mita” faz parte do livro Carcaça de Alma Urubu não come, recém-lançado pela editora Kotter.