Tomando todas com Tinhorão 20/11/2018 - 16:50

O resumo de uma tarde de bate-papo, cerveja e cachaça com o mais temido crítico musical do Brasil

Alexandre Gaioto 

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Ilustrações: Carolina Vigna

Gente de todos os tipos se acomoda nas mesas do bar Amélia, na rua Doutor Vila Nova com a General Jardim, embaixo das letras garrafais da placa “ESQUINA DO TINHORÃO”. Entre as figuras mais recorrentes estão: um produtor de moda, homossexual assumido que é contra “essa modinha fresca de me chamarem em termos no feminino”; um contador e sua esposa, que bebe cerveja em copo com gelo e limão; um comerciário; um cenógrafo; um ator que fez um papel secundário como um dos loucos em Bicho de sete cabeças, mas que, pelo menos ali, é considerado, por unanimidade, “o maior artista vivo do Brasil”; um administrador de empresas, descendente do Brigadeiro Luís Antônio e colega dos tempos de colégio de Chico Buarque; um pintor húngaro que aos 12 anos fugiu do regime comunista de Budapeste e, ao regressar anos mais tarde à terra de origem, sentiu-se rejeitado pelos colegas e familiares, fixando, para sempre, a residência em São Paulo; um cantor que durante mais de três décadas se apresentou na noite paulistana, sem jamais gravar único álbum. Todos esses sujeitos, tão diferentes entre si — metáforas ambulantes da diversidade paulistana —, saem de suas casas nas tardes de sábado para se reunir, religiosamente, a partir das 15 horas, com o arqui-inimigo da bossa nova, o homem que ironizou João Gilberto, Tom Jobim e Caetano Veloso, um crítico amado e odiado que está prestes a publicar seu último livro.

Ali na frente ficava a livraria de um grande amigo. Quando fechou, nós continuamos nos reunindo aqui no bar”, comenta José Ramos Tinhorão, recebendo um livro que um sujeito setentão acaba de lhe presentear. “Ele fala de você toda hora, Tinho.” Tinhorão folheia Até a última página: Uma história do Jornal do Brasil, de Cezar Motta, observando, silenciosamente, alguns trechos em que é citado.

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Deparando-se consigo mesmo, empunha a obra com ligeiros tremores nas mãos — único detalhe que denuncia seus 90 anos. Quando desceu sozinho do táxi, caminhou a passos lentos, porém firmes, rumo à mesa que o aguardava e, dispensando ajuda, sentou-se à cadeira que alguém lhe trouxe às pressas. Definitivamente, não parece ter a idade que tem.

Educadamente, Tinhorão pede licença à confraria. Diz que precisa atender um jornalista. Em vão, tento decifrar se os olhos de todas aquelas pessoas à mesa, aparentemente tão complacentes e condescendentes, no fundo não me fuzilam e cobiçam meu pior. Privá-los de Tinhorão, no sábado à tarde, não é roubar toda a fortuna crítica do grupo?

Avesso a tecnologias, Tinhorão não tem celular nem e-mail. Quem quiser falar com ele deve tentar a sorte num dos dois telefones fixos — que frequentemente tocam até cair a ligação — ou esperar até o próximo sábado. Nada de perfis em Facebook, Instagram, coisas do tipo. “Os meios de comunicação só servem para amarrar o sujeito a outros meios de comunicação”, justifica.

Distante das novidades, ainda não se refestelou com as maravilhas da Amazon. De 15 em 15 dias, revira as seções de música e literatura dos sebos paulistanos, onde é reverenciado por funcionários. “É um senhor muito educado e tranquilo, sempre sai daqui com dois, três livros”, comenta um atendente do tradicional Sebo do Messias.

Contra os chatos

Distribuindo bordoadas, vestindo camisa branca de linho e calça e sapatos pretos, o pugilista de punhos firmes prova que não perdeu o pique: “Milton Nascimento, quando surgiu, já era um chato, com exceção de uma ou outra música, como ‘Travessia’ e ‘Maria, Maria’. Depois disso, nunca mais fez nada novo”. A mesma justificativa serve para analisar a obra de Chico Buarque, que mostraria as novas canções de Caravanas, naquela noite em São Paulo, algumas horas depois do nosso encontro. “Chico não percebe que ele está acabado. Nada acrescenta ao que já fez.” Nem mesmo um dos maiores ícones da música instrumental brasileira escapa aos socos e pontapés verbais: “Jazz brasileiro é sempre de segunda mão. Isso vale, também, para o Moacir Santos”.

Em meio às porradas do outro lado da mesa, talvez até desnorteado pelos tantos golpes, reparo, só agora, que Tinhorão ostenta um copo vazio, trazido por algum garçom. E ofereço minha Heineken. “Não tomo cerveja. Mas vou beber em sua homenagem”, diz, gentilmente, estendendo o copo à frente e dizendo “tim-tim”.

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Um duo de trompete e percussão surge no bar tocando “Se acaso você chegasse”, clássico de Lupicínio Rodrigues que leva toda a confraria à loucura, com exceção de Tinhorão. Sem tamborilar os dedos nem entoar os versos, o crítico lamenta o concerto de esquina: “Isso aí não é arte. Esses dois aprenderam meia dúzia de acordes e tocam só pra ganhar dinheiro. Não conhecem nada de música. E nem sabem quem eu sou”.

Nostálgica, a dupla executa, em seguida, “Regra três”, “Besame mucho” e — atendendo ao pedido de um cliente — o hino do Palmeiras. Ao final, o trompetista se aproxima da nossa mesa.

“Boa tarde, Tinhorão!”

Atônito, o rosto do crítico assume os mesmos traços que Rodin imortalizou no semblante de Balzac.

Você sabe quem eu sou?!”

O trompetista, simpático, abre um sorriso.

“Todo mundo sabe quem é você. E tocamos no seu aniversário aqui mesmo no bar, há dois meses, lembra?”

A memória, sacana, derruba até os mais críticos dos críticos.

“Claro, é verdade. Mas você sabe que eu sou contra isso aí, não sabe?”

“Sei, sei”, responde o sujeito, despedindo-se e abandonando a mesa — a única em que ele não pediu trocados.

Com o fim do show, a confraria segue ao espaço interno do bar, onde tevês exibem o jogo do Corinthians contra o Palmeiras. Desconfio que não fariam isso se Tinhorão estivesse com eles, porque o crítico não é fanático por futebol.

Quando criança, Tinhorão torcia para o Fluminense e, durante um tempo, chegou a acompanhar a seleção brasileira. Embora admita que Neymar é talentoso, nenhuma partida, atualmente, desperta sua atenção. “Hoje não há uma seleção brasileira. O que há é um time de jogadores que se formaram na Espanha, na França, em Portugal, em outros países.”

O garçom traz outra Heineken e o crítico não decreta se a cerveja holandesa é boa ou ruim. O que ele gosta, na verdade, é das cachaças que o bar, infelizmente, não oferece no cardápio. “Só vendem as porcarias industrializadas. Gosto é das cachaças produzidas no interior, que vez ou outra algum amigo, retornando de viagem, me dá de presente.” A crítica etílica condiz com a musical: aprecia os sons que representam a cultura popular — um Geraldo Vandré, um Elomar, não os versos massivos que atulham as programações das grandes mídias. Ao garçom, sem escolha, Tinhorão recorre à cachaça da casa, servida a módicos R$ 4. Também peço uma para acompanhar.

Afagos derradeiros

Depois de publicar mais de duas dezenas de livros que traçam a história da música brasileira, Tinhorão verá sua última obra ser publicada por uma nova editora, o Instituto Cultural Glória do Samba, no dia 29 deste mês [a entrevista aconteceu no início de abril].

Com a garganta momentaneamente anestesiada pela cachaça, ouço que a coletânea Primeiras lições de samba e outras mais reúne, de forma inédita em livro, 65 artigos originalmente publicados na imprensa carioca entre 1961 e 1981. Nas páginas, nada de acidez ou pancadarias: os textos trazem reverências e aplausos para Heitor dos Prazeres, Cartola e Ismael Silva, entre outros ícones. “Não há um artigo sequer em que ele seja irônico, ácido. São todos textos elogiosos”, adianta o jovem editor Eduardo Pontin, com os contratos da obra, amontoados numa pastinha, para serem assinados na mesa do boteco.

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“Não vou publicar outro livro depois desse aí”, avisa Tinhorão, entornando a cerveja e rebatendo-a com a cachaça. “Meu baú já secou. Escrevi sobre tudo o que poderia ter escrito e hoje sou um capítulo encerrado.”

Rubem x Dalton

Leitor de José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Franklin Távora, Tinhorão admira os romances e contos de Machado de Assis, mas não gosta de sua personalidade. “O talento é inegável, mas ele era um chato: aquele lance de ser mulato e não admitir é atitude de gente chata”, observa.

Nos anos 1970, leu o brutalismo de Rubem Fonseca e o minimalismo de Dalton Trevisan. Entre o contista mineiro e o paranaense, prefere o Vampiro. “O Dalton não é comercial e se sobressai porque não conclui muitas situações: deixa na mão do leitor. Dalton dá o que pensar. Com Rubem Fonseca, não há o que fazer: tudo está dito.”

A leitura que lhe dá mais prazer, nos últimos tempos, é a de textos de Eça de Queirós. Há uma década, Tinhorão adquiriu a obra completa do gênio lusitano, e vem devorando volume por volume. “Antes, só tinha lido aqueles romances que todo mundo leu, como O crime do Padre Amaro. Ler todos os romances, as crônicas e os contos me dá um grande prazer estético. Sabe qual a vantagem do Eça com relação ao Machado? Eça não era um chato”, opina, rindo e ajeitando o copo para que eu despeje mais Heineken.

Acho que já estou ligeiramente alcoolizado quando vejo tomarem assento à nossa mesa os membros da confraria. Tinhorão agora ostenta os óculos erguidos na testa, como um jovem boêmio. Revelo ao grupo que sou fã de bossa nova e que minha maior frustração na vida é ter consciência de que jamais terei a oportunidade de testemunhar, ao vivo, um concerto de João Gilberto.

E todos lamentamos o último capítulo do enredo rocambolesco em que ele se meteu, com a Justiça autorizando o arrombamento da porta de seu apartamento, no Leblon, buscando salvaguardar sua saúde. Tinhorão me tranquiliza. “Não se preocupe com o show dele, rapá. Põe um CD e fica imaginando o violão fazendo tim-tim-tom”, comenta, arrancando gargalhada dos amigos, que não gostam dos sons sincopados de João Gilberto, e me pego rindo também.

Tomando outro gole de cachaça, o crítico dispara: “Nunca houve nada de original na bossa nova. Quer a prova? Coloca aí no seu celular a Judy Garland cantando ‘Mr. Monotony’”. Aumento o volume da gravação de 1948, quando Tom Jobim, um rapazote de 21 anos, ainda nem havia gravado um álbum. Os primeiros quatro compassos contorcem os semblantes dos boêmios, numa mescla de surpresa e revolta, e iluminam, triunfal, o rosto do crítico. “É um plágio descarado!”, decretam dois ou três sujeitos, notando semelhanças com “Samba de uma nota só”.

Lula x Moro

Tomo nota do que ele diz sobre alguns figurões que vão surgindo na conversa.

Sérgio Moro: “Ele é honesto”.

Lula: “Um traidor, analfabeto, safado”.

Deus: “Sou ateu e não acredito nessas coisas nem na vida após a morte”.

Tinhorão só recusa comentar a Santíssima Trindade: “Não conheço música erudita, não posso opinar sobre Bach, Mozart ou Beethoven”.

Alguém pergunta se a entrevista já acabou. “E Pabllo Vittar, Tinhorão, o que você acha?”, arrisco a última. “Esses sons aí que estão na TV, no rádio, essas coisas não são música”, avalia o crítico. “O Tinhorão gosta é da bunda do Pabllo Vittar!”, sacaneia, rindo, um dos amigos.

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Registro do encontro da reportagem da Helena com o crítico José Ramos Tinhorão

Pessoas em pé, outras sentadas. Um garçom, bandeja em mãos, um tanto em dúvida. Há conversas atravessadas. “A cachaça, pra quem?” Alguém se despede. “De quem, a cachaça?” Abraços. Beijos. Tinhorão com o contrato em mãos, preocupado, perguntando se alguém viu seus óculos. Alguém sugere irmos todos para um apartamento onde acontecerá uma performance artística. “Acharam meus óculos?”, repete Tinhorão. Tapinha nas costas. Uma mulher comenta, esvaziando o copo de cerveja com gelo e limão, que um dia deu carona para Tinhorão e perguntou o que ele achava da música que tocava no carro, “uma do Toquinho que eu adoooro...” Digo que os óculos do Tinhorão estão na própria testa dele. “E sabe o que ele me respondeu?” “Tinhorão, na testa”, repito, mais alto, enquanto ele agradece. “Tinhorão me disse que aquela música do Toquinho era apenas uma punheta de grã-fino!”

E todos gargalhamos das travessuras de Tinhorão, que rabisca os contratos com a letra miúda e tremida. Já é noite quando a confraria se divide entre os automóveis que, à base de buzinas e motores, vão compondo a melodia da esquina da rua Doutor Vila Nova com a General Jardim, carregando no banco de trás o senhor José Ramos Tinhorão, que chegará em seu apartamento dali a cerca de 10 minutos, entornará com a esposa uma taça de vinho e talvez, na calada da noite, ainda tenha fôlego para continuar se embriagando com as linhas de Eça de Queirós.

 

Alexandre Gaioto é jornalista. Colaborou com a revista Cult e e os cadernos culturais dos jornais Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Zero Hora, Gazeta do Povo, O Estado do Paraná, Folha de Londrina e Diário de Maringá.

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