Ser(tão) oprimido 10/01/2019 - 14:50

Os perigos da construção romanceada em torno das figuras de Maria Bonita e Lampião 

Adriana Negreiros

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Ilustrações: Tereza Yamashita

Vovó Alcinda não sabia fazer comida de panela, dizia mamãe. Por isso, melhor que passássemos as férias na casa de Vovó Delvita, mãe de papai, que além de costurar, embora sem brilho, servia almoços de verdade — suculentas galinhas cozidas à cabidela, bem mais fortes do que as bolachas com doce de goiaba de que Vovó Alcinda se servia ali pelas doze horas, quando as incandescências do sol de Mossoró, lançadas do topo do céu, anunciavam que era chegada a hora da principal refeição do dia. 

Vovó Alcinda sabia mesmo era contar histórias. A minha preferida remontava a 1927, quando ela tinha 14 anos de idade e vivia como criada na fazenda de um certo Dr. Duarte, sujeito importante daquela próspera cidade do Rio Grande do Norte, localizada quase na divisa com o Ceará. Na ocasião, o fazendeiro foi um dos bravos mossoroenses a deixar o conforto de seu alpendre para guerrear contra Virgulino Ferreira da Silva, o terrível Lampião. Vovó Alcinda narrava, com orgulho, o fantástico episódio em que, ao tentar invadir Mossoró, o bando de cangaceiros viu-se recepcionado por uma chuva de balas. Do topo das casas mais altas, homens como o tal Dr. Duarte dispararam contra os bandoleiros — e Lampião, o cabra mais temido dos sertões, deu meia volta e mandou-se dali pra nunca mais voltar. Se rabo tivesse, fosse realmente o Capeta que muitos imaginavam, teria o colocado por entre as pernas.

Anos depois, quando, na velhice, já doente, viu-se obrigada a morar na casa de meus pais em Fortaleza, Vovó Alcinda continuaria a repetir a história do Rei do Cangaço, personagem por quem tinha o usual sentimento nordestino de pavor e admiração. Bastava uma visita qualquer lhe perguntar de onde ela era e respondia, com o dedo em riste: “De Mossoró, que expulsou Lampião”. Não se tratava de uma vitória ordinária, contra um bandido qualquer, mas de botar pra correr um cabra da estirpe de Virgulino. E se o interlocutor não parecesse suficientemente espantado com a proeza da cidade, tentava impressionar por outras vias: “E daquele rapaz gordo que aparece na TV”. Perto de morrer, caduca, garantia que o apresentador Fausto Silva, que via de relance no aparelho da sala de estar — evangélica, proibia-se o desfrute do pecado dos programas de auditório —, era nascido e criado em Mossoró.

Minha avó materna nunca falava em Maria Bonita, e por razões que eu viria a descobrir óbvias. Quando tentou invadir sua cidade, o bando de Lampião era formado apenas por machos. As moças só passariam a integrar o grupo a partir de 1930, quando Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa (o famoso apelido é póstumo), largou a vida besta no sertão da Bahia para aventurar-se ao lado do fora da lei mais procurado do Brasil. Depois da Maria de Lampião, outras Marias, além de Anas, Rosas e Joanas tiveram o mesmo destino. Algumas por vontade, como a escolhida de Virgulino, inúmeras por má sorte: muitas cangaceiras, incluindo as famosas Dadá e Sila, entraram no bando à força, raptadas e estupradas ainda na infância. Sila tinha apenas 11 anos quando “conheceu o sexo”, como definiria a violência da qual foi vítima, pelo corpo do cangaceiro Zé Sereno.

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Em 2015, a crise financeira e de qualidade que abateria o jornalismo tinha me expulsado das redações havia dois anos. Durante 13, trabalhei como repórter e editora de três revistas da Abril. Depois de Veja e Playboy, encerrei as atividades na Claudia, publicação feminina em que não se podia sugerir livros muito complexos para as “leitorinhas” — como editora de cultura, eu precisava recomendar às assinantes e compradoras eventuais da publicação obras pseudosensuais, a exemplo dos incontáveis tons de cinza, ou lançamentos na área de autoajuda amorosa, preferencialmente, e corporativa, de quando em vez. Depois de um ano, exausta, fui-me embora dali quase como Maria Bonita deixando o marido sapateiro para seguir com Lampião. Eu carecia de alguma aventura — ou “novos desafios”, como costumamos dizer nos departamentos de recursos humanos quando pedimos as contas.

Nos dois anos que separaram minha saída das redações até a assinatura do contrato com a Editora Objetiva para escrever Maria Bonita, passei longas horas olhando para o teto e pensando no que fazer da vida. Escrever um livro parecia-me uma saída natural — boa parte dos jornalistas, e estou incluída nesse grupo, escolheu a profissão por gostar de escrever. Mas nenhum tema parecia- -me bom o suficiente para atrair a atenção do leitor. Pensei em escrever sobre o cangaço, mas quem ia querer saber de uma história passada entre os anos 1920 e 30, no interior do Nordeste? Em toda a minha vida profissional nas redações de São Paulo, obcecada por estes assuntos do “norte” do país “que não interessam a ninguém”, ouvi inúmeras recomendações para direcionar meu olhar para o Sudeste (além de evitar a interjeição nordestina “égua!” e substituí-la pelo equivalente “nossa!” durante as reuniões de pauta). Certa vez, quando propus a um editor uma matéria sobre os penitentes do Cariri, no Ceará, recebi como resposta a sugestão de inspirar-me em uma reportagem sobre a moda das meninas de Florianópolis de descolorir as sobrancelhas.

O Nordeste, sobretudo o sertão, costumava interessar à maioria dos meus editores somente quando pintado nas tintas do exotismo — ou da caricatura. Houve o caso de uma repórter que precisou providenciar um jumento para ficar estacionado diante de uma loja do Boticário em uma cidade do interior do Ceará. Embora os clientes chegassem ali de ônibus, carro ou a pé, a foto precisava mostrar que o capitalismo ultramoderno, com suas franquias em cores neon, chegava aos rincões do Brasil mais arcaico, de tons terrosos.

Portanto, quando, depois de noites insones, consegui formatar o projeto do meu então futuro livro — a biografia da cangaceira Maria Bonita —, precisei lidar com questões que sempre me assombraram e, eu viria a perceber, operam como causa e consequência. A lógica do esquecimento e ridicularização do sertão, traduzida em grotesca caricatura, é a mesma que transforma cangaceiros em camponeses revolucionários. A dialética da subestimação da inteligência e do silenciamento das narrativas das mulheres, que as faz passar de vítimas a culpadas, é análoga a que nos faz crer, 80 anos depois, que Maria Bonita foi uma liderança feminista. Ambas as versões são muito mais palatáveis e atraentes para a indústria do entretenimento — assim como um jumento em frente ao Boticário chama mais a atenção do que um fiatzinho de duas portas. Esquecimento, ridicularização, subestimação e silenciamento são armas a favor da ignorância e, desse modo, da opressão contra grupos vulneráveis.

Tais práticas dizem respeito, também, ao que o geógrafo francês Élisée Reclus chama a atenção em seus estudos sobre o questionável conceito de “progresso”, algo que a porção sudestina do Brasil, de modo geral, julga possuir em quantidade superior ao Nordeste. Em seu necessário livro O homem e a terra: progresso, Reclus nos ensina que a impressão de progresso é uma mera ilusão com valor pessoal. “Os missionários que encontram selvagens extraordinários, movendo-se livremente em sua nudez, creem fazê-los ‘progredir’ dando-lhes vestidos e blusas, sandálias e chapéus, catecismos e bíblias, ensinando-os a recitar os salmos em inglês ou latim.”

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Vovó Alcinda nunca me contou como conheceu Vovô Enéas. Dois dias depois de os jornais de todo o Brasil — e até do exterior, como o Paris Soir e o New York Times — noticiarem o assassinato de Lampião e Maria Bonita na Grota de Angico, em Sergipe, Vovó Alcinda deu à luz minha mãe, em 30 de julho de 1938. Seria sua única filha. Logo após o parto, envergonhada e humilhada — era solteira —, entregou-se a Jesus. Passou o resto da vida empenhada em ganhar alguns trocados vendendo roupas para a vizinhança, que adquiria após viagens de carona em boleias de caminhão para as cidades próximas, e frequentar os cultos da Assembleia de Deus. Comia doce e bolachas entre um compromisso e outro. De noite, penteava os longos cabelos, que chegavam à cintura, para na sequência arrumá-los em uma trança. Ajoelhada diante da cama, lia o Salmo 91, cujo verso mais bonito dizia: “Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido”. Na noite de 8 de junho de 1996, aos 83 anos, dormiu após seguir a rotina de sempre, e nunca mais acordou.

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Durante muito tempo, tentei reconstituir a trajetória de minha avó. Nas histórias que me contava, vim a me dar conta quando já era tarde, ela nunca era a protagonista. Soube depois de sua morte que jamais conheceu a mãe, morta no parto, e perdeu pai e irmãos cedo demais para que pudesse guardar deles qualquer recordação. O máximo que descobri foi que, antes de engravidar, embora lesse e escrevesse com dificuldades, trabalhou como assistente de enfermagem em um hospital de Mossoró — suponho eu, por intermédio do tal Dr. Duarte.

Sobre Vovô Enéas, sei de muitas coisas, embora o tenha visto, talvez, umas cinco vezes em toda vida. Que foi empresário de sucesso, frequentou salões em Brasília e casou-se com uma parente (este era um hábito comum entre os Negreiros do Rio Grande do Norte), com quem teve uns dez filhos. Quando morreu, em dezembro de 2005, li no obituário do jornal que tinha por hábito escrever poesias. São de sua lavra os seguintes versos, elaborados em homenagem à esposa e reproduzidos no matutino: “Ausente a dona da casa / É enorme a confusão / Não se limpa, não se varre / E abandonam o fogão / Todos desorientados / Andam para a frente e para trás / Veja o pobre ‘coitado’ / A falta que a mulher faz”.

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Por muitos motivos, e não apenas pelas histórias que ela me contava sobre Lampião, a pesquisa em torno da vida de Maria Bonita reconectou- -me com minha falecida avó. Por ter sido mãe solteira, ela foi tida, por muitos de seus contemporâneos, como mulher sem vergonha. Por terem entrado para o cangaço, várias mulheres passaram a ser vistas como safadas. E eram meninas, às voltas com suas bonecas, que foram arrancadas a pulso dos braços de seus pais, colocadas em lombos de burros e carregadas, só com a roupa do corpo, caatinga adentro, sendo estupradas em meio aos espinhos de mandacaru. E, na sequência, submetidas a uma existência dominada pela fome, sede e algo tão imensamente doloroso que me parece insuportável: a experiência de entregar os filhos recém-nascidos para estranhos, pois a presença de bebês era proibida dentro do grupo. O choro dos pequenos poderia chamar a atenção da polícia.

Submetidas a uma existência miserável, perigando morrer a qualquer momento pelas mãos dos cangaceiros ou das forças repressoras, essas mulheres tiveram suas trajetórias obscurecidas. No processo de pesquisa sobre Maria Bonita e as demais cangaceiras, enfrentei não apenas a escassez de informações — ao passo que, sobre Lampião, Corisco e os demais personagens masculinos do cangaço há uma miríade de dados —, como precisei lidar ainda com algo mais assustador: o descrédito com que as narrativas das bandoleiras sempre foram acompanhadas. Dadá, estuprada por Corisco aos 12 anos, passou boa parte da vida sendo chamada de dramática, mentirosa e exagerada.

Não à toa, muitas mulheres vítimas de violência — física ou simbólica — optam, ainda hoje, pelo silêncio. As marcas de séculos de opressão e descrédito não desaparecem, assim, da noite para o dia. Recentemente, enquanto assistia à série The affair, uma das minhas favoritas, lembrei das mulheres violentadas do sertão no momento em que a personagem Athena (interpretada pela atriz Deirdre O’Connel), conta para a filha, Alison (papel de Ruth Wilson), que sua gravidez foi fruto de um estupro. “E por que você não foi à polícia?”, quis saber a filha. “Porque ninguém acreditaria em mim. E seu pai era um homem importante”, responde a mãe. Se há algo que pode unir uma mulher americana de hoje em dia a uma brasileira do sertão dos anos 1930, é a angustiante constatação de que sua versão, quando confrontada à de um homem poderoso, terá grandes chances de ser desqualificada.

Para muitos, Dadá morreu como um exotismo, uma mulher valentona, meio dada a uma bravata. Já a figura de Corisco, seu estuprador, é frequentemente retomada como símbolo de resistência. “Se entrega, Corisco”, escrevem nos memes que circulam nas redes sociais, em referência ao — lindíssimo, sem dúvidas — trecho final do filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol. Corisco, o Diabo Louro, é para muitos, até hoje, símbolo de coragem, enfrenta mento contra os poderosos e disposição para a luta. E Dadá, que deu à luz sete filhos (que não pôde criar) em meio à caatinga? Ah, Dadá foi aquela cangaceira sem uma perna que costurava pra fora em Salvador, resumem muitos. “Uma louca, vivia gritando”, dizem outros.

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Concordo com o escritor norte-americano Gay Talese quando diz que “o realismo é fantástico”. O cinema e a televisão, contudo, nem sempre apostam nisso. Para a indústria, frequentemente, a caricatura é mais atraente do ponto de vista dramatúrgico. Retratar Maria Bonita como uma Joana D’Arc da caatinga talvez dê menos trabalho do que apresentá- -la como a dona de casa que foi. Uma mulher, quando muito, empoderada e transgressora, por fugir de um casamento que a fazia infeliz para acompanhar o homem amado — mas longe de ter uma consciência de gênero, algo impensável para uma mulher dos repressores e machistas anos 1930 do sertão do Nordeste.

O mesmo ambiente que apagou a história de minha avó e levou a de meu avô às páginas dos jornais.

Entregar-se à narrativa mitificada, fácil e caricata pode ser atraente, mas é irresponsável. A construção romanceada, com mocinhos e bandidos, esconde as estruturas da opressão que provocam danos irreversíveis na história dos lugares, das mulheres, dos indivíduos. Seja do ponto de vista universal, seja do ponto de vista mais íntimo, a opressão causa feridas profundas em todos nós.

Compreender os contextos é uma forma de tentar, ao menos, percorrer essas cavernas da alma com uma lanterna na mão, em vez de tatear na escuridão.

 

Adriana Negreiros é jornalista. Trabalhou no jornal Diário do Nordeste e nas revistas Veja, Claudia e Playboy. Escreveu o livro Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço.

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