Um Escritor na Biblioteca | Sérgio Rodrigues

O escritor e jornalista mineiro Sérgio Rodrigues abriu a temporada 2019 do projeto Um Escritor na Biblioteca, que ainda traz mais sete autores ao auditório da Biblioteca Pública do Paraná até o final do ano. Nascido em Muriaé, cidade do interior de Minas Gerais, Rodrigues cresceu em uma casa com livros e sua iniciação literária teve também influência da pintura.

      Fotos: Kraw Penas
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O encantamento se deu cedo, por volta dos 7 anos de idade, ao descobrir as ilustrações do francês Gustave Doré (1832- 1883) que estampavam as páginas do “Inferno”, uma das três partes do livro A divina comédia, do italiano Dante Alighieri (1265-1321). “Aquilo tinha um erotismo sombrio, torturado. Não sei nem como é que me deixavam folhear”, comenta o autor que estreou com os contos d’O homem que matou o escritor (2000).

Como ganha-pão, porém, Rodrigues optou pelo jornalismo. Atualmente é roteirista do programa Conversa com Bial, da Rede Globo, e assina coluna na Folha de S.Paulo. Sobre essa necessidade de levar uma “vida dupla”, entre a literatura e o trabalho jornalístico, diz que consegue conciliar aos trancos e barrancos. “Acho que seria difícil de conciliar com qualquer profissão, uma vez que a literatura não paga todas as suas contas. Na verdade, paga pouquíssimas delas, mesmo que você venda é muito difícil”.

Dezenove anos depois de estrear na ficção, a produção do autor de As flores de Flowerville (2006) é espaçada mas sólida. Com o romance O drible (2013), que nasceu de um conto que a princípio integraria seu livro de estreia, venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura — atual Prêmio Oceanos.

Outra obra festejada de Rodrigues é o romance Elza, a garota (reeditado em 2018), que nasceu de uma encomenda do editor Alberto Schprejer. O livro mescla fatos históricos com ficção ao narrar a trajetória de Elza, morta pelo Partido Comunista. A escolha estética reforça a tendência do autor de caminhar entre a fantasia e o realismo — aliás, foi o próprio autor quem propôs essa combinação, uma vez que os arquivos de Elza foram extirpados da Biblioteca Nacional e não seria possível fazer uma biografia suficientemente informativa. “Para minha surpresa, até porque eu tinha certeza que eles não iam topar uma maluquice dessas, mas toparam”, comenta.

Na conversa, Rodrigues também falou sobre o status do escritor brasileiro na cultura (“Nos tornamos figuras muito periféricas”), o futebol como inspiração para nossa ficção e seu próximo livro, uma coletânea de contos chamada A visita de João Gilberto aos Novos Baianos, que deve ser lançada em junho deste ano.

Magia literária
É muito importante quando você dá a sorte de nascer numa casa que tem livros. Isso já é meio caminho andado. A curiosidade infantil de ver aquelas lombadas na estante e imaginar: “Um dia eu vou poder ler isso”. Eu tinha muita curiosidade. Meu pai e minha mãe eram leitores, minha mãe principalmente. Não era uma biblioteca de centenas de volumes, mas tinha ali os clássicos brasileiros, universais, algumas encadernações bonitas. Lembro de olhar para aqueles livros desde pequeno com uma curiosidade que era quase meio “abestada”. Aquilo tinha uma magia para mim. Acredito que, mais tarde, quando comecei a ler de fato, aquela magia foi de alguma forma desmistificada, porque os livros se mostraram mais acessíveis e mais concretos do que quando eram só lombadas na parede. Mas aquela magia, de alguma forma, acho que fica e te alimenta como leitor. 

Bibliotecas públicas
Sou um cara do interior de Minas. Nasci numa cidade chamada Muriaé — que hoje nem é tão pequena, mas na época era bastante pequena. As cidades do interior do Brasil não têm bibliotecas, ou melhor, não têm livrarias. Bibliotecas elas têm, que é o quesalva. Depois que esgotei os livros na casa dos meus pais, comecei a correr atrás de outros. Era muito difícil ter acesso. Hoje em dia você vai para a internet, compra e entregam na sua casa. Na época, tinha o Círculo do Livro, que preenchia um pouco esse papel de levar livros aonde a rede de livrarias do Brasil não chegava, como não chega até hoje. O Círculo do Livro era um clube que você se associava e podia escolher umas edições, e eles entregavam na sua casa. Li muita coisa do Círculo do Livro. E também das bibliotecas públicas, que acabavam sendo uma grande salvação. Nunca tive escolas com boas bibliotecas. É uma deficiência, acho, bastante comum. Morei em outras cidades também, os meus pais se mudavam bastante, sempre no interior. Só com 17 anos fui para o Rio de Janeiro, e aí tudo isso muda, porque você está num lugar em que os livros circulam muito. Mas essa minha experiência do interior mostra a grande importância da biblioteca na vida de um leitor. As poucas pessoas — infelizmente, acabam sendo poucas — que naquele meu ambiente quiseram ler, e tiveram uma curiosidade crescente sobre livros e literatura, acabavam caindo nas bibliotecas — que não eram nenhuma maravilha, mas já supriam, pelo menos tinham lá todos os modernistas. Li muita coisa assim.

Divina comédia
O primeiro livro marcante na minha vida é um do qual eu não entendia uma palavra. Era uma edição muito bonita da d’A divina comédia, do Dante. Com 6 ou 7 anos comecei a folhear para ver as ilustrações, principalmente as do “Inferno”. Eram incríveis. O “Paraíso” e o “Purgatório” eram meio chatos, mas no “Inferno” as pessoas estavam nuas e se contorcendo. Eram ilustrações famosas de um francês chamado Gustave Doré, e aquilo tinha um erotismo sombrio, torturado. Não sei nem como é que me deixavam folhear. O encanto que aquilo ali me proporcionava se manteve ao longo da vida.

HQs
Eu sabia desenhar, queria ser desenhista. Só que comecei a fazer HQs. E ali pelos 12 anos comecei a produzir muito. Eu desenhava ok, era um desenhista com um pequeno talento, mas comecei a perceber que as histórias ficavam melhores do que os desenhos. Então o texto começou a ganhar uma importância ali dentro daquele negócio que eu estava fazendo e com o tempo, pouco tempo na verdade, achei que era melhor abrir mão do desenho e ficar só com as histórias. Foi um caso em que o escritor acabou engolindo o desenhista. Mas eu não era totalmente desprovido de talento para o desenho, até gostaria de ter levado mais à frente isso, essa coisa do traço.

Primeiros passos
A primeira história escrevi quando era muito pequeno. Minha mãe guardou umas coisas, mas é coisa de criança mesmo. Só que eu já encadernava, recortava aquilo, fazia um desenho, costurava e dizia que era um livro. É uma coisa que surgiu como uma brincadeira realmente bem cedo. Mas resolvi mesmo que ia ser escritor com 14 anos, e comecei a escrever contos. Era uma época, anos 1970, que tinha uma coisa chamada “boom do conto brasileiro”. Tinha muita revista de conto, muito livro de conto sendo lançado. Era um momento muito rico para o gênero. Tinha a mística do contista mineiro, muitos contistas eram de Minas Gerais, e as pessoas falavam: “Os mineiros têm o jeito”. E eu, como era mineiro, falava assim: “Pô! Então já tenho meio caminho andado”. E fiz esse plano maluco de ser escritor, aos 14 anos. Acho que é um pouco cedo pra você estar preocupado com isso, mas foi uma decisão mesmo — vou escrever, vou ser escritor. E eu não sabia nem o que isso significava em termos profissionais. Era um desejo, um pouco como ser astronauta. Só que botei mãos à obra: comecei a escrever contos e inscrevê-los em concursos pelo país inteiro.

Saindo do armário
Tinha muito concursinho assim: Concurso de Contos de Santos, Concurso de Contos da Prefeitura de Goiânia, da Academia de Letras de Maceió. Eu via essas coisas no jornal e comecei a mandar meus contos. Ganhei meu primeiro prêmio aos 15 anos, pela Academia Santista de Letras, e, com o aval de uma instituição, tive a coragem de sair do armário e me assumir perante minha família como escritor, que era uma coisa que até então eu fazia de maneira muito envergonhada. Eles ficaram apavorados, obviamente, mas acharam que aquilo ia passar. Não passou.

Embrião
O conto que foi o embrião d’O drible é sobre um jogador com poderes sobrenaturais, que é filho de uma mãe de santo e usa certa mediunidade dentro de campo em benefício do seu futebol. É um conto que seria publicado no meu primeiro livro, O homem que matou o escritor, mas resolvi tirar porque achei que aquilo precisava ser trabalhado e, na verdade, merecia crescer. Era uma história muito anedótica, essa do jogador, mas achei que ela precisava estar numa moldura histórica e social para reverberar e dizer o que eu achava que ela precisava dizer sobre o Brasil, e não ser só uma estorinha engraçadinha, o que era até então. E isso virou uma obsessão, um grande problema na minha vida. Tentei abandonar várias vezes, mas aquela história acabava voltando. Acho que, na verdade, eu não estava pronto para escrever O drible. Não tinha condições técnicas de escrevê-lo. É um livro muito difícil, que lida com 50 anos de história, tem muitas idas e vindas. É uma estrutura bastante complicada e eu precisava aprender a escrever esse livro, então talvez por isso tenha demorado tanto.

Vingança
Adoraria ter sido jogador de futebol se tivesse talento, mas não tinha. Acho que o fato de ter escrito O drible tem muito a ver com isso. É uma espécie de vingança contra a natureza. Tenho um irmão que era muito bom de bola, o que torna tudo mais difícil ainda, porque é um irmão mais novo que tinha o maior prestígio nas peladas, nos jogos e tal. Mas eu era muito esforçado — um centroavante rompedor, com pouca habilidade, mas tinha altura, bom chute. Joguei bola pra caramba, mas sabia das minhas limitações e que jamais poderia sonhar com uma carreira. Agora, sem brincadeira, acho que O drible nasce daí mesmo, de eu ser muito apaixonado por isso, de ter passado muitas horas praticando esse troço, vendo jogos, lendo sobre futebol. Virei jornalista esportivo, né?! Quando me torno jornalista, meu primeiro cargo é de repórter do esporte. Acho que tem aí um encaminhamento que começa lá com as peladas de garoto. Quando lancei O drible, o grande Tostão, do Cruzeiro e da Seleção Brasileira de 1970, tricampeão do mundo e que virou cronista esportivo, gostou muito do livro. Ele escreveu uma coluna na Folha de S.Paulo dizendo que aquele era o livro que ele gostaria de ter escrito. Isso para mim foi uma grande felicidade. Respondi que trocava O drible por meia dúzia de gols dele. Na boa, acho que eu ia sair no lucro ainda.

Literatura e esportes
A literatura brasileira é elitista demais para dar qualquer colher de chá, para dar qualquer importância ao futebol, o que eu acho que é uma meia-verdade. Não tenho nenhuma dúvida de que a literatura brasileira é elitista, mas ao mesmo tempo conheci muitos escritores e jornalistas que adorariam fazer um romance sobre futebol, eram realmente apaixonados por aquilo e se não fizeram há outras razões em jogo. Uma delas, com certeza, é o fato de que não é muito fácil você levar qualquer esporte para ficção porque os esportes já são narrativas prontas, fechadas, autossuficientes. Você já tem os heróis, os vilões, os dramas, as comédias, a tragédia, o “Maracanaço”. Os personagens são maiores que a vida, como Garrincha, completamente inverossímeis. Se você os inventasse, ninguém acreditaria: o sujeito que tem perna torta e se torna um dos maiores jogadores da história. Então, assim, não é muito fácil você chegar com as mentiras — a ficção, no final das contas, é um conjunto bem engendrado de mentiras — e jogar dentro desse mundo. Acho que tem uma série de coisas que jogam contra. Agora, isso não é exclusivo do futebol. É uma característica do esporte. Se você parar para pensar, tem pouca literatura boa feita com esportes em qualquer lugar do mundo. Não tem um grande romance italiano de Fórmula 1. Ou um grande romance japonês de Artes Marciais. Não é uma coisa que combine muito. O futebol é, sem dúvida alguma, crucial na cultura brasileira, mas não quer dizer que ele tenha que se traduzir facilmente ou mecanicamente para o discurso de uma arte. A mesma coisa ocorre com o Carnaval. O Carnaval é crucial na cultura brasileira, talvez não tanto no Paraná, mas em grande parte do Brasil, e você não tem também uma literatura vibrante. Têm alguns contos, têm algumas coisas boas, o futebol tem também, mas você não tem uma literatura, vários romances, que tratem do Carnaval.

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Clássico brasileiro
O negro no futebol brasileiro, do Mario Filho, é uma delícia de ler. Ele era um cronista de mão-cheia, irmão do Nelson Rodrigues. Acho que a família toda tinha isso no sangue, de escrever crônica como deuses. É um cara que era jornalista esportivo e foi juntando histórias que até então eram transmitidas apenas oralmente sobre anos de fundação do futebol brasileiro, já talvez meio misturado com lendas também, com exageros e tal. Ele registra uma história oral que do contrário teria se perdido, entrevistando deus e o mundo, principalmente do futebol do Rio de Janeiro, mas não só, e conta isso com uma prosa divina. A linha dele é vagamente sociológica porque a partir do título fica claro que o lance do Mario é provar que o futebol brasileiro foi inventado pelos negros, importado como um jogo dos clubes brancos da elite, e ele é jogado nos primeiros anos de uma maneira medíocre, uma simples imitação do que os ingleses faziam, do que os europeus faziam, e como toda imitação, ficava aquém, abaixo. Só que as pessoas, os pobres, os negros, os mestiços brasileiros, que não tinham acesso àqueles clubes se encantam por aquele esporte e começam a jogar do lado de fora, nas ruas, nas ruas esburacadas, na várzea, com bolas de meia. E essa própria precariedade acaba obrigando essas pessoas a criar uma série de recursos, de habilidade de controle de bola e de invenção que simplesmente revoluciona o futebol. Os caras começam a jogar tanto que os próprios clubes de elite acabam, em algum momento, sendo obrigados a abrir as portas — não em nome da igualdade racial ou social, mas em nome do interesse esportivo: queriam ganhar os campeonatos e os caras estavam jogando bem demais para serem ignorados. Então, de certa forma, é a história da formação de uma nação, que acontece até hoje, com avanços e retrocessos — às vezes um baita de um retrocesso, como eu acho que nós estamos vivendo agora. Mas assim, não é um livro de um sociólogo nem de um antropólogo. É um livro de um jornalista, de um escritor, mas a história que ele conta é a história da formação de uma nacionalidade.

Elza e o partido
Elza, a garota é resultado de uma encomenda do Alberto Schprejer, um editor carioca que estava na Nova Fronteira na época. Ele queria uma biografia da Elza, uma moça que foi assassinada, uma adolescente analfabeta, que não era nem uma militante comunista, apenas a namorada do secretário-geral do Partido [Comunista]. Uma pessoa bastante ingênua e que ficou sob suspeita de estar entregando os companheiros quando a repressão do Getúlio caiu em cima de todo mundo no pós-Intentona. O Partido a condenou à morte e, enfim, ela foi assassinada com uma cordinha de varal pelos próprios companheiros e enterrada no quintal. Isso foi descoberto alguns anos mais tarde. Foi usado também numa campanha de propaganda anticomunista violentíssima do governo Vargas. Por isso digo que esse anticomunismo brasileiro tem muitos erros, e erros do Partido, como o fato de terem vindo pessoas, agentes estrangeiros enviados de Moscou, para fazer essa suposta revolução que foi um fiasco. Pegou muito mal com o sentimento patriótico nacional. Os caras eram capazes de trazer estrangeiros para cá para derrubar o nosso governo. Mas essa biografia que a editora queria eu logo percebi que não daria para escrever. Seria impossível por algumas razões: primeiro, que todos os grandes personagens da história já tinham morrido quando eles fizeram essa encomenda, então não teria mais quem entrevistar, pessoas que tivessem visto aquilo em primeira mão. Na verdade, consegui apenas uma entrevista com uma militante comunista que conheceu a Elza. Segundo, que as pastas dela nos arquivos públicos tinham sido em grande parte destruídas, acho que pela esquerda, porque a Elza tinha se tornado um esqueleto horrível no armário. Você chegava no arquivo público, na Biblioteca Nacional, encontrava pastas da Elza Fernandes e não tinha nada dentro. A memória dela foi literalmente apagada. Então cheguei para a editora e falei: “Olha, uma biografia não rola, seria muito fraca, com 90% de contexto histórico e só 10% de história da Elza. Acho que isso não é uma boa biografia. Que tal fazer um romance em que a ficção preencha as lacunas, que tenha muita pesquisa, uma pegada de não ficção, um rigor, mas que tenha essa liberdade de usar a ficção para preencher as lacunas?”. Para minha surpresa, até porque eu tinha certeza que eles não iam topar uma maluquice dessas, eles toparam. Fiz esse livro em um ano porque tinha um prazo, um contrato. As encomendas funcionam bem para mim.

Narrativa longa
Não acho que o conto seja um estágio anterior ao romance. Não acho nada disso. São gêneros autônomos, cada um com suas dificuldades e seus pontos fortes. Mas, no meu caso, sempre quis chegar a uma narrativa mais longa. Acho que é onde eu me sinto mais feliz mesmo, mais realizado como autor. E os meus contos começaram a ficar longos. O próprio O homem que matou o escritor é um livro que tem apenas cinco contos, já são longos. Nenhum deles tem o tamanho de um conto do Dalton Trevisan. Depois até fiz, experimentei minicontos. O Sobrescritos é um livro de narrativas muito breves, muito curtas, mas acho que tinha desde o início uma ansiedade por chegar à narrativa longa. O ponto de virada é As sementes de Flowerville, meu primeiro romance. Acho que é um romance ainda muito verde, de aprendiz mesmo, de um contista que estava tentando esticar um pouco mais o fôlego da sua história. Em seguida, com o Elza, isso já era, digamos, fácil. Já era natural, então acho que teve um aprendizado.

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Todo prosa
O Sobrescritos não nasceu como um livro, mas como uma coluna no meu blog de literatura chamado Todo Prosa. Foi bastante influente e muito visitado por toda a literatura brasileira entre 2004 e 2008. Depois ele continuou, mas esse foi o auge, num momento em que blogs eram importantes. Hoje não são mais importantes, né? As redes sociais ocuparam o espaço. As pessoas iam para os blogs para se encontrar, e o Todo Prosa virou um ponto de encontro. Às vezes eu acordava, abria o computador e já tinha lá umas 20 pessoas dando “bom dia” umas para as outras. Elas dispensavam a minha presença, inclusive, os papos circulavam entre eles. E eu fazia comentários, resenhas, notícias do mundo literário, mas tudo com uma linguagem de jornalista. Era um blog de não ficção, nunca quis escrever ficção na internet. A internet é um meio um pouco árido, não é muito acolhedor para criação literária. Mas até uma certa altura, até por diversão, tinham certas coisas que eu queria dizer no Todo Prosa que já não cabiam mais no discurso jornalístico. Queria, sei lá, fazer uma brincadeira com alguma coisa que tinha ouvido, então mudava os personagens e criava uma outra história. Comecei a escrever ficçõezinhas ali, que chamei de “sobrescritos”. Era uma rubrica dentro do Todo Prosa que, de vez em quando, aparecia lá um continho sempre de humor muito crítico a esse mundo da literatura. Os personagens eram escritores, editores, tradutores, críticos e tinha sempre uma visão bastante ácida de flagrar o que tem de vaidade, o que tem de vazio — as rivalidades, os inimigos mortais que se digladiam por uma bobagem, uma coisa que ninguém está prestando muita atenção, porque em literatura ninguém está prestando muita atenção.

Correspondente
Viver fora do seu país é sempre bom, te dá uma visão, de uma certa distância, que permite enxergar coisas que você estando muito dentro não enxerga. É possível que isso tenha acontecido em relação à língua também. Eu era correspondente do Jornal do Brasil, escrevia diariamente em português. Não é uma questão de estar distante da língua, mas, não sei muito bem, acho que era o fato de não estar imerso nela, e foi isso que me fez voltar. Depois de dois anos tive ofertas pra ficar lá, o que talvez não fosse uma má ideia, em termos profissionais, mas sentia que o escritor em mim estava morrendo por estar fora da minha língua. Por mais que a praticasse diariamente, não estava ouvindo ela 24 horas por dia e não estava mergulhado nela como a gente está mergulhado aqui. Voltei, mas não fui logo escrever sobre língua. Isso foi um passo posterior que surgiu, de uma maneira até um pouco fortuita, quando me ofereceram uma coluna na revista de domingo do mesmo Jornal do Brasil, já numa outra fase, em 2001.

Viva a língua brasileira!
O Viva a língua brasileira! nasce de um consultório gramatical, só que daí começo a responder àquelas dúvidas dos leitores — “é com ‘x’ ou com ‘s’?” — tentando dar a eles uma perspectiva histórica. “É assim, mas nem sempre foi assim”, “é assim mas tá deixando de ser assim” ou “tanto faz.” Esse tipo de resposta que em geral irritava um pouco as pessoas no início. “Não, eu quero saber o que eu respondo lá na prova.” Eu falava: “Escuta. Na prova você responde isso, mas tem mais aí”. Isso veio de uma maneira bastante casual, dessa mistura, de um olhar de escritor, um olhar bastante lúdico e livre sobre a língua com obrigação de dar conta das demandas dos leitores que saem da escola aparentemente se sentindo muito despreparados em relação à língua portuguesa.

Diversão e sofrimento
Me divirto bastante escrevendo e sofro muito também. Acho que todo mundo, né?! Gosto muito de reescrever, tenho muito prazer em editar. O livro para mim só fica pronto quando eu o edito. Às vezes mudo completamente a ordem das coisas, intercalo e tal. Esse é um momento de grande prazer mesmo, muito lúdico. Agora, há momentos em que a escrita é quase um transe, é mais do que um prazer, é uma exaltação. Mas não dá para você só escrever nessa hora, porque senão você não vai escrever nunca, ou rarissimamente. Você tem que sentar e fazer aquilo com uma regularidade, com uma disciplina, senão você não consegue realmente chegar muito longe. É um trabalho e, como todo trabalho, têm momentos em que é profundamente chato. Você poderia estar fazendo qualquer outra coisa no mundo em vez de estar ali, mas tem que estar ali, é o seu trabalho. Se você não tiver um prazer grande em algum momento, aí é melhor não fazer. Não pode também ser só uma coisa chata, mas que tem muita chatice, tem.

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Jornalismo e literatura
Consigo conciliar aos trancos e barrancos a literatura com o jornalismo. Acho que seria difícil de conciliar com qualquer profissão, uma vez que a literatura não paga todas as suas contas. Na verdade, paga pouquíssimas delas, mesmo que você venda é muito difícil. Se você não é a Thalita Rebouças nem o Paulo Coelho, acaba tendo que ter um trabalho, um emprego, uma profissão, enfim. Emprego não necessariamente, emprego é uma coisa cada vez mais difícil, mas você tem que ter um ofício, e eu acho que o de jornalista é um ofício do qual não me arrependo nem um pouco de ter escolhido. Foi uma escolha, na época, de um adolescente que não sabia muito da vida, mas acho que acertei. Já que o objetivo era ser escritor, ter virado jornalista foi muito melhor para mim do que se eu tivesse ido por um outro caminho que seria talvez mais natural até, que era Letras. O jornalismo abriu um monte de portas, me deixou menos provinciano. Eu era um garoto do interior e depois estava morando em Londres, quer dizer, isso tudo devo ao jornalismo. É uma profissão, sem dúvida, fascinante, te bota nos ambientes mais variados, então te dá uma visão da sociedade que poucas profissões conseguem dar. Se você é um repórter de jornal, você pode estar no mesmo dia no palácio e na favela, e frequentemente você está. Não é todo mundo que tem essa possibilidade. Em geral, o seu trabalho te limita a um certo universo. Sou um entusiasta da profissão de jornalista. Agora, toma muito tempo. Demorei muitos anos a conseguir abrir espaço na rotina de jornalista para que o escritor pudesse funcionar, pudesse fazer alguma coisa que prestasse. Na verdade, o meu primeiro livro só saiu aos 37 anos por causa disso basicamente, porque até então o jornalismo ocupou tudo. Quando comecei a poder fazer um jornalismo mais autoral, coisa das colunas e tal, aí sim você consegue abrir um espaço para a literatura ou para qualquer coisa que você quiser fazer fora de uma redação, porque as redações, pelo menos no meu tempo, são muito absorventes. Quando você está ali no front do jornalismo, é difícil achar tempo. Agora, hoje em dia a minha relação com o jornalismo é outra. Trabalho muito mais de casa. Não é sempre que dá, mas tento sempre manter o escritor funcionando, mesmo que em fogo baixo às vezes.