Um Escritor na Biblioteca - Roberto Gomes

Roberto Gomes

As palavras, desde cedo, estiveram no caminho de Roberto Gomes. Filho de jornalista, brincava entre os linotipos que imprimiam o jornal editado pelo pai em Blumenau (SC). A partir daí, tornou-se um leitor de literatura pelas mãos de Mark Twain e seu As aventuras de Tom Sawyer. “O livro continha algum vírus”, disse Gomes no segundo encontro do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2013. Gomes estreou no mercado de livros em 1974 com uma obra de filosofia, Crítica da razão tupiniquim, mas se considera um ficcionista, o que — de fato — é. Seu mais recente romance, O conhecimento de Anatol Kraft (2011), chama a atenção pela linguagem elaborada e pela prosa que apresenta raro senso de humor, elemento com o qual contrapõe a desilusão de um personagem no final da existência diante da energia de um jovem que ainda tem um longo caminho a percorrer. “Tudo que escrevo tem esse traço de humor. É espontâneo ao escrever. Quando falo, sou um sujeito aborrecido como todo mundo.” Ele admite que se formou leitor e escritor lendo revistas e jornais e, há alguns anos, também tem as suas crônicas veiculadas, a cada 15 dias, nas páginas da Gazeta do Povo. Gomes também é autor dos romances Os dias do demônio (2001) e Júlia (2008) e está à frente da Criar Edições, selo que viabilizou obras de Paulo Leminski, Jamil Snege, Alice Ruiz, entre outros.

Foto: Kraw Penas

Influência do pai
Quando vocês me propuseram esse tema, achei interessante, me propus a pensar e lembrar das minhas leituras, de onde tudo isso veio, o motivo de eu ter me interessado por isso, porque faço isso até hoje e etc. Mas a primeira lembrança, na verdade, não era de livro. A primeira lembrança, a mais remota, é de quando eu tinha cinco anos, talvez. Meu pai era jornalista e morávamos em uma casa na beira do rio, em Blumenau. Morávamos parte de trás e, na parte da frente, funcionavam as oficinas do jornal. Quer dizer, então, a oficina do jornal ficava no meu quintal. Era ali onde eu brincava. Então, vivia ali o tempo todo, no meio de papel, tinta, chumbo empilhado pelos cantos. Comecei a lembrar, que é uma coisa inclusive que eu já escrevi no romance Todas as casas, daquele espetáculo de máquinas, aquelas impressoras que faziam uma barulheira o dia inteiro.

Linotipo
Lembro do meu pai — que era jornalista, diretor do jornal, era tudo, fazia até horóscopo — em uma saleta ao lado, sentado em frente a uma máquina Remington, daquelas pretinhas, e datilografando com dois dedos só, ligeiro que era uma barbaridade. Achava fascinante aquilo. Naturalmente, com cinco anos não sabia ler, mas sabia que dali que saiam os jornais. Ele levantava com a lauda datilografada, dava para o Nelson, que era o linotipista, um agregado da família, e o texto então ia para o linotipo. Quando terminava uma linha, ele levantava uma alavanca e, cada linha, ele tinha que ajustar uma por uma, para dar o espaço certo. Aquilo se fundia em uma linha de chumbo, com um tamborzinho do lado, que ficava sempre fervendo. Era uma coisa meio dantesca, aquele cheiro de chumbo, aquela fumaça. Isso é tudo muito interessante porque, para mim, essa é minha grande entrada no universo da escrita, no universo do jornal, no universo do texto, através do trabalho do meu pai, do linotipista.

Livros
Depois da experiência na oficina do jornal de meu pai, a lembrança mais forte que tenho relacionada aos livros remete ao primeiro ano do primário, quando eu tinha seis anos e consegui uma proeza que nunca mais repeti na vida: passei com nota dez em todas as matérias. Eu gostava muito da professora, já era apaixonado por ela e, então, tirei nota dez em tudo. Só que junto comigo, uma menina tirou nota dez, então ficamos empatado em primeiro lugar e, na festa de fim de ano, nos deram um livro de presente como prêmio. E esse livro me marcou, tenho ele na memória até hoje. Era desses livros que, quando se abre, ele arma um cenário. Quando eu vi aquele negócio, fiquei muito impressionado, pois tinha castelo, princesa, cavalo, etc. Além do texto, claro. É uma lembrança muito agradável. Esse livro eu perdi, infelizmente. Mas ele me deixou uma sensação. É uma coisa que se você olha de longe, ele fechado, parece um tijolinho, e quando você abre, entra em contato com uma outra coisa. Você abre um mundo novo, uma outra porta, outra janela, algumas coisas que te despertam para um outro universo. Então, essa mágica do livro, quer dizer, essa mágica de colocar um cenário de pé, armar esse cenário na sua frente, e estimular sua fantasia, foi o que ficou da experiência desse primeiro livro, que era muito bonito, colorido, capa azul. Anos depois, indo em um ônibus lotado para o bairro curitibano Água Verde, eu olhei e, de repente, vi uma alemãzinha, meio sardenta lá trás, e era a menina que ganhou o livro junto comigo. Mas eu, que ainda sou tímido hoje em dia, era morbidamente tímido naquela época e não consegui falar com ela. E menina desceu e eu fiquei apenas na vontade de perguntar se ela ainda tinha o livro.

“ Ninguém escolhe ser escritor. Acho que não

existe essa escolha. Agora, se eu não tivesse

sido bem-sucedido como escritor, não sei se

teria outra alternativa.”


Revistas
Não foi somente a gráfica, a oficina, mas também o jornal e a revista que me marcaram antes do livro. Meu pai era jornalista e sempre levava revistas para casa. De início, levava a revista Careta, que era um periódico sensacional de sátira política, que foi publicado por muitos anos com extraordinários caricaturistas, como J. Carlos e vários outros desenhistas fantásticos. Depois houve um período de uma época de revistas extraordinárias, como a Cruzeiro e Manchete, de muito significado. Na Cruzeiro tinha a Raquel de Queiroz escrevendo a última página, tinha o Joel Silveira, repórter extraordinário, com um texto magnífico, o próprio Assis Chateaubriand acho que era um fantástico escritor. E, mais adiante, a revista Manchete, que me lembro quando meu tio Gersino chegou apresentado-a: “Veja a revista nova que saiu, que coisa extraordinária que é”. E nessa revista, minha geração conheceu escritores extraordinários. Nela escreviam Fernando Sabino, Paulo Mendes Campo e Rubem Braga. Então nós tínhamos toda semana uma leva de bons textos, de textos inteligentes, e aquilo foi uma vida de universidade para meus estudos, tanto de conhecimento de literatura, de poesia, de política, quanto de uma ideia de jornalismo. As revistas tiveram, para mim, uma importância muito forte.

Educação pela pedra
Acho que se vende no mundo de hoje a ideia de que tudo tem que ser fácil. Você tem que educar fácil, você tem que entender fácil, você tem que explicar facilmente, você tem que, imediatamente, entender tudo o que foi feito. Isso é uma fábula. Na verdade, aprender qualquer coisa, seja lá o que for, de um ponto de vista mais complexo, é uma coisa demorada, é uma arte que precisa ser cultivada, que precisa ser desenvolvida. Então, você dizer para um criança ou um jovem, leia Machado de Assis, ler é fácil, é só pegar e ler, é uma mentira. Não é fácil não. Acho que exige toda uma preparação, a pessoa tem que saber o que é aquilo, ao que se refere, o que aquele autor, naquela época, naquele momento, com aquela linguagem, está querendo dizer. Quer dizer, você tem que apurar esse senso de leitura. Depois, digamos, pode até ficar fácil. Lembro sempre de um filme, um documentário que vi na televisão francesa, sobre o japonês que faz a pintura de letras, um caligrafista, e achei interessantíssimo porque falavam dele, contaram algo da vida e suas atividades, até o mostrarem em seu lugar de trabalho, seu ateliê, então ele entrou no estúdio e preparou todo seu trabalho sem dar bola para ninguém, sem olhar para câmera e coisa e tal. Sentou-se e esperou. Em pouquíssimo tempo pingou seu pincel no nanquim, escreveu rapidamente e terminou, como se fosse fácil, extremamente fácil. Para quem fez aquilo a vida inteira, quer dizer, quem desenvolveu aquela técnica a vida inteira, quem se aprofundou naquilo a vida inteira, fica facílimo. Então, a ideia é mais ou menos essa, quer dizer, acho que a leitura não é uma coisa fácil, não se deve vender a ideia da facilidade.

Humor
O primeiro livro que eu li que realmente me abriu a mente efetivamente, foi um livro dado pelo meu irmão, Orlando, de aniversário. Levei, de início, um susto. Tinha apenas 12 anos e achei aquele livro meio grosso, tinha umas 300 páginas. O livro era As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain. E meu irmão acertou na mosca, era aquele livro que eu precisava ler naquele momento. Era a minha idade, e nós vivíamos ali em Blumenau em um trecho da Rua Paraíba, tínhamos uma verdadeira gangue de gurizadas de 12, 13 e 14 anos. Mandávamos e desmandávamos ali, tomávamos banho de rio, jogávamos futebol, etc. Esse também era o universo do Tom Sawyer. O extraordinário Mark Twain é, especialmente, um humorista. Ele é um grande humorista, que sabe tirar a graça de muitas coisas. E o humor é uma coisa espontânea, ele aparece. Como disse anteriormente, sou morbidamente tímido, mas na hora de escrever eu consigo ser diferente. E esse é o segredo de se poder escrever, não é saber regra gramatical, não é saber teoria da literatura, não é saber história da literatura, é você soltar os cachorros. Você tem que colocar para fora o que tem dentro de você, com sentimentos, com pensamentos, com contradições. Esse é o segredo. Então, na hora que você vai escrever, não tem essas inibições, muito menos essa timidez, então sai uma quantidade de coisas de humor. Os meus livros tem isso. Meu romance Alegres memórias de um cadáver é uma sátira política do período de ditadura no Brasil, que se passa em uma universidade. O conhecimento de Anatol Kraft, meu mais recente livro, é todo uma sátira à formação dos intelectuais brasileiros, de uma certa intelectualidade brasileira, de um certo modo de encarar a literatura e a política no Brasil. Então, tenho esse gosto pelas coisas relacionadas ao humor, sobretudo nas crônicas, aí é mais palpável ainda.
Luiz Andrioli e Roberto Gomes

“ Então você precisa pregar uma mentira. Pode-se

dizer que é uma irresponsabilidade total de

quem escreve? O interessante da literatura é

esse truque, você prega uma mentira porque

precisa dela para revelar uma verdade.”


Grandes derrotas
O Brasil tem essa coisa meio mórbida pelo fracasso. Se gosta muito de noticiar o fracasso, e se desconfia do sucesso, do êxito. Não digo esse sucesso de celebridades. O Tom Jobim tem uma frase que é mais ou menos assim: “O Brasil odeia o sucesso”. Tanto que na história do Brasil, não querendo ser mórbido ou aborrecer vocês, temos a tradição dos grandes mortos e dos grandes enterros, que são cultuados como se fossem acontecimentos nacionais. Lembro que a minha mãe sofria, anos depois, com a morte do cantor Chico Alves. Depois, as outras mortes que aconteceram, Getúlio, Tancredo, Elis Regina, Ayrton Senna. O Brasil tem essa busca mórbida pelas grandes derrotas, mas isso não deveria desviar nossa atenção para um a série de êxitos, de realizações, onde se obteve o que se queria. Então, o que o Anatol está contando, novamente ele, não eu, é que é preciso dar uma certa calibrada nessa concentração do fracasso.

Mentira literária
O escritor é um mentiroso, antes de mais nada. Muitas vezes as pessoas reagem: “Mas como assim, está mentindo? Que história é essa?”. Mas, vejam, o sujeito conta uma história e publica algum livro, que na verdade são pensamentos e reflexões de um sujeito que já morreu. Como é que pode o escritor reescrever aquele livro? Mas Machado de Assis fez isso. Aí o outro escreve que quando o encanador vinha na casa da vó dele, a casa se enchia de borboletas amarelas. O que tem a ver o encanador com a borboleta amarela? Mas o Gabriel García Márquez fez isso. Então a história da literatura é uma história de múltiplas mentiras. Às vezes exigem da literatura que ela seja verdadeira. Eu, por exemplo, escrevi um livro chamado Os dias do demônio, que se baseia em uma larga pesquisa histórica sobre o que aconteceu no Sudoeste do Paraná na década de 1950, que foi a revolta armada dos colonos, o único levante de colonos que saiu vitorioso no Brasil, e ninguém fala nela. Fala-se em Canudos, onde houve a derrota. Somente se fala das derrotas. Mas, nesse livro, eu tenho dados, situações e personagens históricos, que transformo em romance. Um dia me telefona um jornalista de Francisco Beltrão, e diz: “Escuta, Roberto, o teu livro tem um erro. Você diz que o personagem Pedrinho Barbeiro se encontrou com fulano de tal no Verê, porém esse encontro se deu no Barracão”. Porém, no meu romance, foi no Verê, e continuará sendo. Então você precisa pregar uma mentira. Pode-se dizer que é então uma irresponsabilidade total de quem escreve? O interessante da literatura é esse truque, você prega uma mentira porque você precisa dela para revelar uma verdade. Você cria um defunto que conta a própria história para falar sobre a morte, o sofrimento, o desaparecimento, a ignorância nossa em relação à vida, do que acontece depois da vida. Você precisa dessa mentira para poder falar a verdade. Então, todas aquelas fantasias que o García Márquez coloca no Cem anos de solidão, por exemplo, toda aquela série de personagens meio fantásticos, alegorias, meio absurdos, que fogem do padrão normal, na verdade aquilo é para poder dizer uma verdade. Ou, como dizia o Fernando Pessoa, a série que todo mundo repete: “O poeta é um fingidor, que finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.

Influências
Minhas principais influências são os livros que eu li de início. Esses livros de formação têm um impacto muito grande. Como eu disse a pouco, Mark Twain é um autor fantástico, que teve uma influência muito grande. A questão do humor, do modo de desenvolver a história, as peripécias da história, o impacto emocional daquilo. Depois tive outros livros que foram decisivos, um deles, que não é um livro magnífico, mas para mim, naquele momento, foi sensacional. Trata-se de Olhai os lírios do campo, do Erico Verissimo, que li aos 16 anos. Outro autor muito importante foi o Fernando Sabino, não só as crônicas que eu li muito, e lia semanalmente na Manchete, como eu disse, mas com o romance O encontro marcado. Esse romance é uma obra-prima, é um livro extraordinário. Para mim, ele caiu na hora certa, lia aquilo apaixonadamente, e eu sabia de cor, porque eu tinha um amigo chamado Érico, e nós dois tínhamos lido o livro no mesmo momento. Fazíamos uma brincadeira de dizer um trecho do livro para o outro completar. Esse livro é extraordinário. Outro escritor importante para mim — filosoficamente também — foi o Sartre. Li a trilogia “Os caminhos da liberdade”, na qual ele coloca discussões filosóficas no meio da história.

“ Aprender qualquer coisa, seja lá o que for,

é uma arte que precisa ser cultivada. Então,

você dizer para um criança ou um jovem, leia

Machado de Assis, ler é fácil, é só pegar e ler,

é uma mentira.”

Dalton Trevisan
São muitas influências. Agora, eu acho que a mais decisiva é o Dalton Trevisan. Isso não quer dizer que vocês vão encontrar Dalton Trevisan no que eu escrevo, não tem nada a ver com isso. Mas, é que quando eu cheguei em Curitiba, vindo de Blumenau, pensei que estava em Nova York. Aqui tinham várias livrarias, esta Biblioteca, tinham bares e lugares onde as pessoas ficavam batendo papo, falando mal da vida dos outros na Boca Maldita. Enfim, fiquei surpreso ao chegar em Curitiba. Naquela época, o Dalton ainda parava na Boca Maldita, imprimia os livretinhos em formato de cordel. O Dalton é um grande marketeiro. Ele chegava, naquela época, e colocava no bolso das pessoas o folhetinho, dizendo: “Está aqui meu conto, acabei de publicá-lo”. O Dalton fazia isso. Quando ele ganhou o Prêmio Paraná [em 1968], tive a sorte de ir lá e ver o Dalton Trevisan de terno e gravata recebendo um prêmio — e falando em público. Um negócio inédito. Nunca ninguém viu isso na vida. Eu fui lá e vi esse tipo de coisa. Acho que ele foi muito importante, não só para mim, mas para todo um grupo de escritores que escreve até hoje em Curitiba. Tem certas características que podem distinguir a literatura feita no Paraná da feita em outros lugares, por causa de certas coisas que o Dalton inoculou em cada um de nós. É uma coisa absolutamente maníaca pela perfeição formal, pela busca da precisão, pela busca da síntese, pela busca da palavra correta naquele momento, ou seja, inúmeras coisas do Dalton que estão presente em nós. Depois do Dalton, ninguém mais me influenciou, não sinto essa influência presente de ninguém.

bob
Ser escritor

Ninguém escolhe ser escritor. Acho que não existe essa escolha. Um fato, que para mim foi decisivo, e que também não entendi até hoje, que marca essa escolha, é que eu lia muito e fui ter o meu primeiro emprego como auxiliar de desenhista na Prefeitura de Blumenau. Ganhei meu primeiro salário e acabei comprando uma máquina de escrever. Ela era tcheca, chamava-se Zeta e era gigantesca, enorme, pesada, de ferro. Comprei a máquina, voltei com ela nas costas para casa. Quando minha mãe me indagou o motivo que me levou a comprar a máquina, respondi-lhe que iria ser escritor. Aí disparei a escrever, e claro, fiz plágios descarados do Nelson Rodrigues, do Fernando Sabino, plagiava todo mundo, mas tinha o bom senso de uma semana depois jogar fora. Até que chegou um dia que escrevi uma história que achei que não era plágio de ninguém, não tinha a cara do Nelson Rodrigues, nem do Fernando Sabino. Então, escolher escrever, não sei, talvez seja uma imaturidade. Agora, se eu não tivesse sido bem-sucedido como escritor, não sei se teria outra alternativa.

Poesia
A poesia tem um problema editorial não só no Brasil, no mundo inteiro. Há uma dificuldade muito grande de publicar poesia, mesmo com editores que têm interesse em poesia, gostam de poesia, não publicam. É uma falta de público, uma dificuldade enorme de divulgação. Isso não é mentira dos editores. Eu, como lidei com editora, a Criar, sei quão verdade isso é, não é desculpa ou ignorância de editor. É curioso porque as pessoas não tem, sobretudo no Brasil, o hábito da leitura de poesia, tanto que os poetas brincam que há mais poetas do que leitores de poesia. E os jornais mudaram muito, já não tem mais aquele espaço para publicação de contos. Por exemplo, o primeiro conto que publiquei em âmbito nacional foi no jornal Movimento, em São Paulo. Mandei por correio e saiu censurado algumas coisas, tinha o conto, e três linhas apagadas, e voltava. Vários jornais publicavam textos e isso desapareceu: os jornais não têm mais espaço para isso. E como não há mais propriamente aqueles cadernos literários como a gente conhecia, também não há mais críticas literárias. Há um sucessão de resenhas, mas a crítica literária tal como era praticada, ela também desapareceu, também não tem lugar no jornal. Esses dias, eu que escrevo para jornal, levei um pito. Escrevi e enviei uma coluna com 3.600 caracteres, e não pode, são somente 3.000. Então, os espaços estão muito disputados, são muito delimitados, é terrível.

Incentivo
Eu estudava no Colégio Pedro II na época do antigo científico. A gente morria de tédio nas aulas de literatura porque sempre tinha um manual de literatura que todos os professores usavam, que sempre começava naquela poesia do século XVI, os pastores, os provençais, tropeçava por Camões, chegando, no máximo, em Olavo Bilac. Então, eu estava convencido de que a literatura acabava em Olavo Bilac. Aí um dia, em Blumenau, apareceu um sujeito que foi um espetáculo. Chamava-se José Curi e era professor de literatura. Ele ia para a aula de lambreta, era magro, comprido, descabelado, de origem italiana, agitadíssimo. Virou um acontecimento na cidade. Na primeira aula ele já entrou com o mesmo manual de literatura na mão, todos já desanimaram, a mesma aula de sempre. Mas ele pegou o manual e perguntou se sabíamos o que era aquilo. Respondemos, e ele disse: “Não, isso aqui é uma porcaria”, e jogou pela janela. Foi sensacional. Ele nos colocou para estudar o Modernismo, Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Esse sujeito é uma figura que foi notável, não só para mim, mas para vários amigos meus que tiveram sorte de ser alunos dele. Foi um desafogo, nós achávamos que a literatura era outra coisa, e ele abriu uma nova perspectiva para nós. Esse foi o grande incentivador de muitas leituras que iríamos fazer mais pra frente.