Um Escritor na Biblioteca | Miguel Sanches Neto

Da redação

O escritor Miguel Sanches Neto fez uma imersão em sua obra durante a edição de outubro do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. No bate-papo mediado pelo jornalista e tradutor Christian Schwartz, o autor falou em detalhes sobre seus principais romances, como Chove sobre minha infância, livro que marca sua estreia nas longas narrativas e que trata de seu passado no interior do Paraná. 

“Chove sobre minha infância foi escrito num grande impulso, sem pensar muito, em um mês, um mês e pouco. Eu sentava no computador e passava o dia trabalhando”, diz o escritor. 

Nascido em Bela Vista do Paraíso, no Norte do Estado, Sanches Neto cresceu em um ambiente rural e teve uma formação literária autodidata, a partir do incentivo de alguns professores do colégio agrícola em que estudou. Hoje o escritor leciona na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e é autor de mais de 30 livros, entre crítica, poesia, crônicas e contos. Em sua obra, destacam-se os romances Um amor anarquista e A máquina de madeira, ambos escritos a partir de fatos históricos, o que tem sido uma das marcas da produção de Sanches Neto nos últimos anos. “O romance histórico que escrevo é um romance com bastante liberdade. A partir de alguns fatos, construo uma história que é completamente minha, ficcional”, explica. 

O escritor também falou sobre sua obra mais polêmica, Chá das cinco com o Vampiro, livro publicado em 2010 e que ganhará nova edição pela Companhia das Letras ainda este ano. Controverso, o romance fala sobre a cena literária curitibana e seus principais personagens. “O livro foi escrito como uma homenagem ao Jamil [Snege], uma espécie de desconstrução do meio literário curitibano”, diz. 

Em 2016, o autor lançou A Bíblia do Che, romance ambientado principalmente em Curitiba, sobretudo na região da Praça Osório, no centro da cidade, em que retoma o protagonista do romance A primeira mulher, o professor Carlos Eduardo. O personagem é contratado para localizar um exemplar de uma Bíblia que pertenceu a Che Guevara, que teria anotações feitas por ele durante uma de suas passagens pelo Brasil. 

A seguir, trechos com os melhores momentos da conversa.
Fotos: Fábio Santiago
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Formação 

A trajetória de minha formação está em alguns dos meus livros, como em Herdando uma biblioteca. Até os meus 12 anos, nunca havia lido nenhum livro de literatura e só tivera contato com obras escolares. Minha mãe tem o primário incompleto. Meu pai, já falecido, era analfabeto. Meus avós também eram analfabetos. O meu padrasto, que foi quem me criou, tem pouca escolaridade. O fato é que em casa não havia nenhum livro além dos escolares, que eram tratados pela minha geração com muito desdém. A gente recebia, na sexta série, os livros dos alunos que estavam na sétima, um ano à frente, portanto. Livros preenchidos. Apagávamos as primeiras páginas, mostrávamos para a professora e continuávamos utilizando aquele manual sem surpresas.

Ponto de virada 

Se não tivesse acontecido um incidente, eu teria ficado nesse nível superficial de contato com a cultura. Eu sempre apagava o quadro para uma professora de quem gostava. Mas num determinado dia, um amigo me empurrou enquanto eu fazia o trabalho. Sem pensar muito, me virei e dei um murro no rosto dele. Não que tenha sido muito forte, mas foi o suficiente para cortar o seu lábio, o que fez com que eu fosse parar na direção. Na época da ditadura militar, isso era quase uma revolução. Você bater em alguém e tirar sangue durante a aula. Então estavam lá decidindo se me dariam suspensão ou não. A direção queria me suspender, mas um professor de quem eu também gostava muito, Nely Pinheiro, disse “não, esse menino é estudioso, não vamos suspendê- lo. Vamos apenas dar um castigo”. Qual o pior castigo que os professores poderiam dar a crianças na época da puberdade, pensando em mil coisas? O castigo que me deram foi fazer um trabalho na biblioteca da escola. Foi então, no dia seguinte, que pela primeira vez entrei em uma biblioteca.

Adaptação 

Sem saber o que fazer ali, procurei resolver o trabalho que me deram. Comecei a frequentar a biblioteca e a ler. Lembro-me que o primeiro livro que li foi Últimos sonetos, do Cruz de Souza. Não entendi absolutamente nada. Hoje sou um grande defensor de livros que a gente lê e não entende, porque é também uma experiência literária — mesmo quando não conseguimos ou não estamos preparados para ter compreensão parcial ou total da obra. Foi então, nessa biblioteca, que comecei a minha formação autodidata. E descobri que se eu falasse para a minha família que tinha um trabalho para fazer na biblioteca, não precisaria ajudar nos serviços em casa — acompanhar meu padrasto na cerealista, limpar o quintal etc. A leitura se tornou para mim quase uma segunda experiência de vida. É como se eu tivesse uma vida antes de conhecer a biblioteca e uma vida depois desse contato bruto com o livro.

Avançando 

O segundo passo dessa formação foi quando entrei no colégio agrícola, onde deveria aprender coisas extremamente importantes, como regulagem da plantadeira, velocidade do trator, etc. Eu me isolava num galpão, em cima da caixa
da água, ou mesmo no dormitório, e ficava lendo os livros que minha professora de português me trazia — ela deixava livros para mim e um amigo, o Valdir Heitor Barzotto, hoje professor na USP. Foi o Barzotto que me indicou a
faculdade de Letras, na cidade de Mandaguari, onde eu estudaria mais tarde.

Romance de 30 

Essa professora que me iniciou na literatura trazia vários romances da Geração de 30: Graciliano Ramos, José Lins do Rego etc. E também alguns autores russos. Ela não morava na fazenda onde funcionava o colégio interno. Lá só residiam os meninos. Os professores vinham todos os dias da cidade, de Campo Mourão. O colégio funcionava no antigo matadouro municipal. Eu dormia num barracão que tinha sido matadouro. O que eu acho uma metáfora perfeita para minha adolescência. 

Biblioteca pessoal 

Só depois que comecei a trabalhar em fazendas, como peão, montador, ajudando meu padrasto na cerealista, a Máquina Bandeirante, é que iniciei minha biblioteca pessoal, que passa a existir a partir dos meus 17 anos. É nesse período que começo a ter algum dinheiro para comprar livros. 

Curitiba anos 1980 

Em 1983 eu vim para Curitiba depois de uma experiência frustrada no Mato Grosso. Havia sido contratado em Rondonópolis para ser técnico agrícola, cheguei lá e fui cozinheiro nos primeiros meses, depois montador de silos e peão na fazenda. Em Curitiba, me torno timidamente um frequentador da Biblioteca Pública do Paraná. Depois volto ao interior. É nesse momento que faço a faculdade. Depois de formado, venho trabalhar na Região Metropolitana de Curitiba, em 1987. Dei aula em Colombo, Pinhais, Rio Branco do Sul e Piraquara. Aí, sim, começo a frequentar assiduamente a BPP. Sou fruto de uma família em que a vocação para a leitura não existia, sou fruto de uma trajetória torta, em que não havia nenhuma perspectiva de se tornar escritor, de ler e escrever, e sou fruto em boa medida de bibliotecas públicas. 

Resenhista 

Chove sobre minha infância é um livro estranho. Já havia publicado uma coletânea de poemas, chamada Inscrições a giz, que ganhou o Prêmio Nacional Luís Delfino, de Santa Catarina. Depois desse livro, tornei-me amigo do José Paulo Paes. Eu ia a São Paulo e sempre passava na casa dele. O Zé Paulo então me deu um conselho. Disse para eu parar de publicar e me ocupar de outras coisas, deixar para escrever literatura quando estivesse mais velho. Então, continuei escrevendo poemas e contos, mas não publiquei. Passei a me dedicar integralmente à resenha. Em 1994, estreei uma coluna de crítica literária na Gazeta do Povo, que mantive até 2012 — em determinado período também alternei crônicas neste espaço. De 1993 a 1999, atuei apenas como resenhista. Colaborei na revista República, em seguida na Bravo!. Nesse período, estava voltado para a resenha e para a crítica literária. Não esperava escrever ficção tão cedo. 

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Crise e volta à ficção

Em 1999 passei por uma grande crise de saúde. Descobri uma doença crônica chamada Síndrome de Addison. Tinha 35 anos e me bateu aquele medo terrível de morrer sem produzir os livros que imaginava escrever. Foi no meio dessa crise, num final de ano, que me tranquei em minha casa durante um mês, em um período de férias, em dezembro ou janeiro. Eu me tranquei num quarto vazio em que coloquei um computador, uma mesa e uma cadeira. Aí fiquei um mês escrevendo sem parar o Chove sobre a minha infância. 

Influências 

No Brasil, nos anos 1990, foram publicados três grandes livros que me impactaram. Um deles era, talvez um dos mais belos escritos no Paraná, Como se fiz por si mesmo, do Jamil Snege. Trata- se de um projeto de memória do Jamil, mas é uma memória muito sacana. Ele não quis fazer ficção, mas saiu ficcional. Um livro maravilhoso, que tem aquela frase final que nunca esqueço: “Havia um rei, havia um reino, eu me errei”. Isso é um programa de vida. Tem um rei, um reino, e a gente se erra. A gente nunca vai com o rei nem com o reino. Também tinha lido o Quase memória, do Carlos Heitor Cony, outro romance deslumbrante. E o terceiro livro que me impactou — que para mim é um dos marcos da literatura contemporânea, mas hoje pouco comentado — foi À mão esquerda, do Fausto Wolff, um romance geracional. Eu estava com essas leituras muito frescas na cabeça, com muita admiração por esses livros. Então comecei a escrever Chove sobre minha infância inspirado nelas. 

Empreitada 

Escrevi esse livro em um mês, um mês e pouco. Eu me sentava ao computador e passava o dia trabalhando. Muitas vezes me dava sono à tarde, aí dormia um pouco e continuava depois a escrita. Parava à meia-noite, uma hora da manhã, fazia uma macarronada. Comia e voltava ao livro, em seguida dormia mais um pouco... Foi um mês assim, em que meu calendário não era dividido nem em horas nem em dias, mas em números de páginas. “Ah! Terminei tantas páginas, agora posso descansar”, dizia para mim mesmo. Aí descansava um pouco, fazia mais cinco, dez páginas. Chove sobre minha infância foi escrito num grande impulso, sem pensar muito. 

Literatura autobiográfica 

Esse tema é, digamos, uma corcunda que acabei ganhando. O Chove sobre minha infância foi baseado muito nas vivências da minha família. No romance, criei para mim uma compreensão das coisas de que me lembrava, das histórias que minha mãe e minha avó me contaram. Mas em tudo isso já havia apenas uma vaga relação com as experiências reais. Aprofundei a ficcionalidade dessas narrativas memorialísticas sem nenhum problema. Tanto é que ao ler algumas passagens do livro minha mãe me repreendeu: “Filho, não aconteceu bem assim, acho que você errou”. Não é que eu errei, é porque o romance exige uma estrutura. E quando você trabalha com uma estrutura romanesca, mesmo que use sua vida, a história já adquire uma energia desviante. As referências à minha vida e à minha família são reais, mas a maneira como moldei essa história é completamente ficcional. Então, dentro dessa estrutura, mesmo a narrativa mais autobiográfica assume um valor universal. 

Romance histórico 

Sempre quis fazer romances híbridos. Se você pegar o Chove, vai ver que é um romance híbrido, porque tem estrutura de romance, mas também é um livro de memórias. O romance histórico para mim também foi uma oportunidade de fazer romance híbrido, algo que fosse literatura, mas que tivesse um pé na História. Jamais quis fazer um romance histórico clássico, que funcionasse dentro de um padrão mais de História mesmo. O romance histórico que escrevo é um romance com bastante liberdade. A partir de alguns fatos, construo uma narrativa que é completamente minha. Mas ele dá ilusão, para quem está lendo, de que aquilo de fato aconteceu daquela forma. Mas tem muito de invenção e de memória pessoal. Uma coisa que me ajudou muito a escrever Um amor anarquista, por exemplo, foi eu ter morado em colégio agrícola, porque era uma experiência dentro de uma colônia rural — não era socialista nem anarquista, mas era agrícola. Então, quando eu estava falando da colheita do milho, de carregar o cesto cheio de milho nas costas, sabia o que estava dizendo, porque eu tinha carregado milho e acompanhado o plantio, etc.

Um amor anarquista 

Eu trabalhava na editora da minha universidade [Universidade Estadual de Ponta Grossa] e uma das minhas funções era acertar livros que chegavam lá. Um dos trabalhos que chegou foi o de um médico descendente dos anarquistas da colônia. Esse médico, Cândido de Mello Neto, tinha feito uma pesquisa por todos os arquivos anarquistas. E eu revisei o livro dele, que se chama O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. Trabalhei com ele alguns meses. Nesse período, ele me levou ao lugar onde ainda havia alguns resquícios da colônia, conversava com os familiares, me deu cartas... Enfim, ele me passou um arquivo com informações sobre o tema — eu já havia lido Anarquistas graças a deus, livro da Zélia Gattai, que também é sobre a Colônia Cecília. Então meu interesse em ler outras coisas sobre esse episódio cresceu. O Dr. Cândido sempre dizia que eu devia escrever um romance sobre o assunto. Foi quase uma obrigação que assumi com ele. Acabei escrevendo, mas ele não soube disso. Morreu antes. Mas foi o gatilho desse livro.

A segunda pátria 

Eu estava lá na roça, ouvindo os galos os passarinhos cantarem, lendo meus livros, tomando nota, quando recebo um telefonema do Bruno Porto, que havia editado o Chá das cinco com o vampiro. Ele me convocou para uma reunião na Intrínseca. Fui até lá e eles me convidaram para fazer o primeiro romance brasileiro da editora. Só que a história precisava se passar durante a Segunda Guerra Mundial. Então a ideia veio deles. Voltei a Ponta Grossa e estudei várias possibilidades. Fiz um pré-projeto, chamava-se “Deportações”. Submeti à editora, que o aprovou. Tive dois anos para escrever esse livro. E aí é uma vantagem você ser professor universitário. Você tem metodologia de pesquisa. Tracei o que precisava pesquisar, o que fazer. A ideia do Sul nazista estava nas minhas primeiras anotações. Lembro da minha infância, de alguns alemães que eram tratados com receio na cidade por conta do nazismo. Inclusive de alguns parentes distantes. Fiquei com essas histórias na cabeça. Também tinha lido um livro maravilhoso, que recomendo, chama-se O guarda-roupa alemão, da Lausimar Laus, autora de Santa Catarina pouco conhecida fora de lá. Esse livro me dava o imaginário do nazismo no Brasil. Também havia lido Um rio imita o Reno, do Vianna Moog. O livro é muito bonito, mas literariamente frágil, estruturalmente ruim. Então, a partir desse imaginário, construí uma narrativa totalmente ficcional. Antes uma distopia do que um romance histórico.

Discípulo de Jamil 

Chá das cinco com o vampiro é meu livro mais polêmico — não que eu quisesse. Tenho uma personalidade do confronto, que se manifesta na minha vida em vários níveis. Quando escrevi o Chá das cinco, estava em um momento de confronto com o meio literário curitibano. Eu era um discípulo, e ainda sou, do Jamil Snege. O Jamil tinha um olhar muito irônico sobre Curitiba. Quem conviveu com ele sabe disso. Ele era de um sarcasmo a toda prova. Mas era um sarcasmo amoroso, algo muito interessante. Ele te sacaneava, mas sacaneava amorosamente. E ele sacaneava todos os amigos, e nós o sacaneávamos também. Havia um pacto de sacanagem que um fazia com o outro. Vou dar um exemplo. O Valêncio Xavier se vangloriava do prêmio Jabuti pelo romance O mez da grippe, que saiu pela Companhia das Letras. Mas o prêmio era de melhor projeto gráfico, não de melhor romance. E o Jamil, numa Feira do Livro, aqui em Curitiba, mandou fazer um cartaz e colocou na frente do romance do Valêncio: Prêmio Jaburu de Literatura. O mais engraçado é que o Valêncio não percebeu que era brincadeira. 

O polêmico Chá das cinco 

O livro é escrito como uma homenagem ao Jamil, uma espécie de desconstrução do meio literário curitibano. Ele nasceu em um momento de confronto com Dalton Trevisan e outros autores locais, mais especificamente com um determinado status literário do Paraná. Gosto desse livro, não tenho nada contra ele ou contra qualquer um dos meus outros títulos. 

Reações

Eu escrevo sem me preocupar com o julgamento das pessoas. No Chá das cinco foi uma tensão muito grande, cheguei a receber ameaças. Um período em que temi realmente pela minha integridade física e da minha família. Amigos presenciaram pessoas em auditórios aqui em Curitiba, dizendo: “Temos que acabar com esse escritor, temos que acabar com esse livro”. Tive que viver de uma maneira que aceitasse toda crítica que faziam a mim. Mas as coisas vão sendo ajeitadas. Recentemente o Paulo Venturelli escreveu aqui no Cândido um ensaio sobre literatura no Paraná em que fazia um balanço da recepção acalorada a meu livro. Foi uma das melhores críticas* que o livro recebeu, e foi a posteriori. É apenas um parágrafo em que ele fala do livro depois que a poeira assentou. E me deu algum alento, indicando que eu não estava errado. O que houve foi uma má compreensão do livro naquele momento, com as pessoas achando que era apenas um ataque. Na verdade, era uma homenagem às avessas, à maneira do Jamil Snege. Uma homenagem crítica, sarcástica.

Che em Curitiba 

Eu sabia dessa história, todo mundo já ouviu falar dessa lenda. O Valêncio Xavier tem um conto sobre Che Guevara em Curitiba. O texto saiu na Folha de S. Paulo. Tinha lido, mas nunca me interessei por esse tema. Uns três anos atrás, fui tomar vinho com um amigo médico, Fábio Milléo. Aí ele começou a me contar que na década de 1970, quando ele tinha contato com gente do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR8, viu uma Bíblia com anotações de Che Guevara. Perguntei se essa Bíblia havia mesmo existido e se ele não conseguiria localizá-la. Ele me relatou que ficou durante um tempo com o exemplar da Bíblia em que Che Guevara teria sublinhado passagens da vida de Cristo, identificando uma atitude revolucionária a ser seguida. Isso era extremamente interessante. Contra a ideia do homem que vem trazer a paz, a do líder que quer a guerrilha. Aí eu lembrei também de um conto do Dalton Trevisan em que Jesus aparece como personagem do mundo real expulsando os vendilhões do Templo. A partir dessa conversa, comecei a pesquisar, comprei livros e fui ao Arquivo Público do Paraná. Descobri uma pasta imensa sobre a passagem do Che por Curitiba e pelo Paraná, arquivos do Dops, etc. Peguei também outras pastas sobre o MR8. Copiei tudo em um pendrive e fui para casa estudar. Quando comecei a ler essa história, fiquei fascinado. É um mito. De fato, ele não passou por aqui, mas há documentação sobre isso, trechos de jornal, o endereço do hotel em que ele teria ficado em Maringá (PR), o lugar em que se hospedou em Barracão (PR), tudo isso tirei dos jornais. É aquela coisa da literatura: não ocorreu no plano real, mas foi intenso no plano da imaginação. Essa é outra coisa que a gente aprende fazendo ficção: você tem que ter um compromisso com o teor de verdade. Eu tenho insistido muito nisso. Essa questão remete a uma passagem do Walter Benjamin, nos ensaios em que ele escreve sobre Goethe. Tem um trecho muito bonito, que diz que o importante da literatura não é o teor factual — o factual é importante para o historiador —, para o escritor o importante é o teor de verdade que ele consegue imprimir num livro, mesmo não tendo uma relação direta com a história. Isso acho que explica um pouco a maneira como eu faço romance histórico.

*Nota:
“Chá das cinco com o vampiro satiriza e tenta demolir vários escritores de Curitiba. Confessamos que este trabalho nos incomodou muito, porque criou um ninho de vespas e ao lê-lo elas voaram e nos picaram por todo o corpo. Talvez até tenhamos sido injustos com certas críticas que fizemos ao romance em eventos. Agora, passado algum tempo, estamos certos que uma das funções da literatura é realmente incomodar, nos tirar do conforto de nossas posições e sendo assim, vemos o romance como um ato de coragem de enfrentar certos figurões, pelo menos para despertar a sempre saudável polêmica” (Paulo Venturelli em “A literatura paranaense”, publicado na 25ª edição do Cândido).