Um Escritor na Biblioteca: Luiz Alfredo Garcia-Roza

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Um dos autores mais lidos da literatura policial brasileira, o criador do delegado Espinosa fala sobre como e por quê, aos 60 anos, começou a escrever romances policiais, após uma longa e bem-sucedida carreira acadêmica

O carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza estreou na literatura de ficção aos 60 anos de idade. Formado em psicologia e filosofia, o escritor teve uma longa carreira como professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) antes de enveredar para a ficção. Escreveu vários livros acadêmicos, principalmente sobre psicanálise, antes de sua estreia literária com o romance O silêncio da chuva, que recebeu os prêmios Nestle e Jabuti, tornando-se um best-seller. “Se você resolve ser escritor aos 20 anos, pode cometer todos os erros que quiser, dá tempo de recomeçar, consertar, fazer curso, ficar amigo de um escritor e pedir ajuda. Em suma: você pode fazer grandes tentativas. Você pode sonhar em escrever Guerra e paz de novo, dá tempo. Quando resolvi fazer ficção [aos 60 anos], pensei: 'Não se meta a escrever grandes romances. Aliás, não se meta a escrever romances'”, disse o escritor, que foi o nono convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2011. Criador do delegado Espinosa, personagem central de quase todas as suas histórias, Garcia-Roza se tornou uma referência do romance policial no Brasil com seus 11 livros, “escritos em 15 anos”. As histórias de Espinosa se passam no Rio de Janeiro, especialmente no bairro de Copacabana, onde mora o delegado. Porém, nos romances de Garcia-Roza, surge um Rio de Janeiro muito particular, uma cidade narrada a partir da visão do heterodoxo policial Espinosa — solitário, introspectivo, fã de boa literatura e de boa música. Durante o bate-papo, mediado pelo jornalista Christian Schwartz, Garcia-Roza ainda falou sobre a influência da psicanálise em sua literatura (“Deliberadamente, não utilizo nada da psicanálise em meus romances”), sua rotina de escrita (“Trabalho todo dia. Um pedaço da manhã, um pedaço da tarde”) e sua relação com as bibliotecas (“convivi com dois tipos de bibliotecas: a biblioteca pública e a biblioteca particular”). Confira, a seguir, os melhores trechos da conversa.

Formação de leitor

Minha formação como leitor é um pouco heterodoxa. Comecei a ler muito cedo, anarquicamente. Não tinha nenhuma seleção. Comecei com livros que quase todos nós começamos: os “Tarzans”, Júlio Verne, etc. Fui menino no Rio de Janeiro, e tinha pouca biblioteca lá. Uma das poucas bibliotecas que consegui frequentar foi a biblioteca Thomas Jefferson, que era da embaixada americana, ficava na esquina da Av. Atlântica. Um lugar de alto luxo para uma biblioteca. Mas como não poderia deixar de ser, a maioria das edições era em inglês, e eu não lia em inglês naquela época, era menino. A solução foi comprar os livros. Com o dinheiro de mesada que meu pai me dava, eu ia juntando e comprando livros. Até fazer minha primeira prateleira, depois minha primeira estante, depois a primeira minibiblioteca, e assim foi crescendo.

Bibliotecas públicas e particulares

Durante todo esse tempo acabei juntando uma quantidade de livros — que eu não chamaria de assombrosa, mas que é assombrosa para quem não pretendia ser bibliófilo, nem colecionador de livros. Eu já devo ter chegado a juntar qualquer coisa perto de uns dez mil livros. Me desfiz de cinco mil e já adquiri outros. Hoje tenho duas bibliotecas: uma em casa, cujo espaço divido com a minha mulher [a também escritora Livia Garcia-Roza], e outra em meu escritório — um luxo recente —, que tenho só para escrever. Com isso, acabei juntando duas bibliotecas consideráveis, que não são excepcionalmente grandes, mas têm, na pior das hipóteses, cinco mil exemplares. É um bocado de livro, sobretudo quando você vai se mudar. Por exemplo, quando mudei de casa, uns vinte anos atrás, acabei dando uns cinco mil livros porque simplesmente não sabia o que fazer com eles. Mas isso não eliminou minha relação com as bibliotecas. Por exemplo, quando fui fazer vestibular para filosofia, não havia livros de filosofia disponíveis. Então, fui estudar na Biblioteca Nacional, que tem nove milhões de títulos, dá para satisfazer o mais guloso dos leitores. É um lugar lindo, uma biblioteca maravilhosa. Eu não sei se gostava de ir e sentar naquele salão enorme e ficar apreciando aquele silêncio, ou se realmente ia lá para estudar. Passei no vestibular, de modo que devo ter estudado alguma coisa. Daí, o meu hábito de frequentar a BN se estendeu por toda minha formação superior. Então, eu na verdade convivi com dois tipos de bibliotecas: a biblioteca pública e a biblioteca particular.

Primeiras leituras

As minhas primeiras leituras mais consistentes foram os livros do Júlio Verne, que eu consideraria um infantojuvenil já passando para adulto. Li Júlio Verne de ponta a ponta, era um bocado de coisa, setenta e tantos volumes, e depois descobri livros policiais, tipo de Sherlock Holmes. Acabei entrando em contato com os romances de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, aí vi que era possível fazer literatura policial de boa qualidade. Desde então nunca mais parei de ler livro policial. Paralelamente a isso, fui lendo a literatura clássica, ocidental. Comecei com Dostoiévski — iniciei pesado, poderia ter ido um pouco mais leve, tinha 14 anos — e gostei muito dele.

Releituras

As minhas releituras foram, na verdade, mais importantes que as leituras. Tive releituras surpreendentes, como a de Lord Jim, do [Joseph] Conrad. Cinquenta anos depois de tê-lo lido, li novamente. Quando li, achei o livro interessante; quando reli, achei ótimo. Como a releitura do Dostoiévski, com Os Irmãos Karamázov, já traduzido diretamente do russo. Comprei a coleção do Dostoiévski quando era menino e, muito tempo depois, fui me dar conta que os livros eram traduzidos do francês e do inglês. Aquilo me decepcionou. Quando os romances começaram a ser traduzidos diretamente do russo, por Boris Schnaidermann, enfim, traduções magníficas, comprei tudo novamente e foi uma releitura enriquecedora. É curioso: meu percurso literário é feito de leituras e releituras, sendo que as releituras são mais ricas do que as leituras.

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Biblioteca afetiva


A minha biblioteca afetiva sem dúvida alguma inclui um Faulkner. É um escritor magnífico. Palmeiras selvagens e Luz em agosto são obras-primas da literatura. Dois dos maiores livros do século XX. A distância é curta, mas eu incluiria Dostoiévski, ele me habita permanentemente. Gosto muito do Herman Melville. Bartleby é magnífico. Como eu gostaria de ter escrito aquilo. Sem contar Moby Dick, que é uma Odisseia sem Ulisses. Mas também Conrad, Philip Roth e, para citar um bem recente, o próprio Umberto Eco. Eu seria incapaz de nomear todos eles. Provavelmente ficaram alguns de fora, mas esses, pelo simples fato de terem me ocorrido assim de imediato, estão assim, mais à flor da pele. Dos policiais, sem dúvida alguma, me habita permanentemente a Patricia Highsmith, que é uma autora muito pouca ortodoxa, até porque o personagem principal dela é um psicopata. O Ripley é um assassino frio, psicopata, mas todo mundo gosta dele. Eu não encontrei ninguém até hoje que tivesse lido a Highsmith e não gostasse do Ripley. E, no entanto, ele mata operacionalmente, quando o sujeito está atrapalhando. Gosto muito do Hammett e do Chandler. E Edgar Allan Poe, que fundou o romance policial, fundou a ideia da cena do crime, da investigação, e, principalmente, fundou o leitor. Ele inventou o leitor de romance policial. É fantástico. Assassinatos da Rua Morgue e Homem na multidão (que não é um livro policial) são duas peças que também me habitam permanentemente.

Influências

O nome da rosa, por exemplo, tem tudo para ser um livro policial. Mas eu resistiria a incluí-lo entre os livros policiais. Como Crime e castigo tem uma coisa de romance policial, tem crime, investigação, etc. Eu não sei se diria que eles me influenciaram em termos de romance policial. Eles me influenciaram como literatura e como leitor de literatura, tout court. Tenho uma admiração grande pelos dois, mas não consigo ver marca de autor nenhum no que escrevo. Não é por arrogância intelectual, é porque não consigo mesmo. Absorvi tanta coisa nos meus 60 anos de leitor, que é impossível saber, neste caldo fantástico que se criou por essa absorção selvagem, o que é devido a fulano, sicrano e beltrano. Eu me sinto como se fosse habitado por esses autores todos. Eles estão aqui dentro. Deve estar uma enorme bagunça, mas eles estão aí.

Autores brasileiros

Dos policiais, pouco autores me influenciaram porque falta massa crítica para se falar em literatura policial no Brasil. Agora, dos outros autores, de Machado de Assis a Milton Hatoum. Vários autores me agradaram. Mas também não seria capaz de falar em marca, nem pretendo ter marcado ninguém, a não ser desse jeito impressionista. Uma coisa que quero deixar claro, para não parecer que estou fazendo uma seletividade maior do que eu deveria fazer: a minha relação com a literatura é inteiramente selvagem. Sou um leitor selvagem. Eu usaria este termo no mesmo sentido que o Levi Strauss usou: no sentido pré-crítico. Não leio literatura criticamente. As releituras podem ser críticas. Mas as leituras não são. Então, diria que eu só “acho” em termos de leitura. É quase que um achismo. Não sou capaz de teorizar sobre literatura.

O romance policial

Eu faria três divisões: os americanos (o detetive quase que comete o crime para poder investigar em seguida, ele intervém na trama permanentemente, quase cria condições para investigar, é uma espécie de behaviorista da investigação policial); e os ingleses, que são mais refinados, mais sofisticados. Mas a grande divisão para mim é a que se faz entre os cartesianos, cerebralistas, que acham que o romance policial é um tratado de matemática com certa ação. Há um determinado crime, esse crime é visto como um problema, esse problema então vai ser equacionado, enunciado, é só uma questão de aplicar o método hipotético dedutivo, e aí no fim junta a turma num ambiente fechado e simpático, e então diz como foi que o crime foi cometido nos seus maiores detalhes. Essa é a perspectiva que vê no crime um problema a ser resolvido, e uma vez resolvido, afastada a causa do crime e evidentemente o criminoso, o “whodunit”. Sherlock Holmes, Agatha Christie, quase todos os ingleses, também franceses, como o Simenon, se utilizam desse recurso. O outro tipo de narrativa policial, é quando o crime não é um problema a ser resolvido, mas um enigma a ser decifrado. A diferença é enorme: no primeiro caso, “uma vez o problema enunciado, ele está resolvido”. É só uma questão de proceder lógico-dedutivamente. No enigma, não. O enigma não tem essa transparência, essa clareza, ele não é feito de ideias claras e distintas como o problema. O enigma tem uma parte da verdade que te revela, te insinua, e uma parte que ele oculta. A parte oculta, do enigma, é o que faz com que o enigma seja reinventado, ou redito, ou reeditado, em suma: o enigma é como o sonho. Você interpreta uma vez, outra vez, outra vez...

Poe
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Por incrível que pareça, Poe está nos dois grupos. No começo de Assassinatos da Rua Morgue, ele faz uma belíssima exposição do raciocínio lógico dedutivo. Resolver crimes é isso que está aqui. No ano seguinte, ele escreve O homem na multidão, em que começa dizendo: “O essencial de todo crime permanece irrevelado”. Ora, se é isso, há algo no crime, no assassinato, que ultrapassa o “whodunit”, o “quem fez isso”. O crime tem uma complexidade social, filosófica, política, religiosa, o diabo a quatro, que vai muito além do ato de descobrir quem matou.

Opção pelo romance policial

Se você resolve ser escritor aos 20 anos, pode cometer todos os erros que quiser, dá tempo de recomeçar, consertar, fazer curso, ficar amigo de um escritor e pedir ajuda, em suma: você pode fazer grandes tentativas. Você pode sonhar em escrever Guerra e paz, de novo, dá tempo. Quando resolvi fazer ficção, pensei: “Não se meta a escrever grandes romances. Aliás, não se meta a escrever romances.” Não se meta a fazer um romance extremamente complexo, porque você não vai ter tempo. Aos 60 anos, eu me perguntava: “quanto tempo vou ter de vida inteligente pela frente?” Eu acho, inclusive, que eu já estou lucrando. Então decidi por romance policial. Primeiro, porque eu gosto. Segundo, porque não é bem um romance, é uma novela, é mais enxuto, na quantidade de personagens, em tudo. Isso não tem a ver com o número de páginas, mas com a complexidade da coisa. Então a primeira coisa a fazer era inventar um detetive. Quem? Pensei: “qual é o sujeito menos policial que você conhece na vida?”. É o Spinoza. O filósofo Baruch de Spinoza, do século XVII, figura magnífica, das mais belas da filosofia ocidental, de uma integridade absoluta, um pensador que nunca cedeu a qualquer tipo de pressão. Um sujeito que conseguiu ser excomungado pela igreja católica, protestante, pelos judeus, etc. Então pensei se era possível criar um policial que tivesse toda essa integridade pessoal, não precisava ser o maior pensador do século, não, mas que tivesse nele essa coisa da imagem do Spinoza. Daí, botei, inclusive o nome. Mas você imagina um detetive desse, até com o nome de um filósofo, um judeu? Qual é o problema? E o nome eu acho simpático. Inclusive o nome original, é grafado com “S” e “za” no fim, mais chique. Eu botei português mesmo, Espinosa. Até porque ele nasceu em Portugal.

Espinosa

Espinosa surgiu absolutamente de repente. Não só o Espinosa, mas eu como autor policial surgi de repente. Sempre gostei de romance policial, sempre li, mas não tinha pensado seriamente em vir a ser um escritor de romance policial. Evidente que tinha feito fantasias, “puxa, como deve ser bacana ser escritor policial, o sujeito que é um escritor de romance policial é tudo na vida, ele pode sair na rua de peito aberto porque é o tal”. Coitado, eu devia ter menos de 20 anos. E aí, fui a vida toda professor, profissão que não dá canja para fazer outras coisas. Fiz também mestrado, doutorado, criei um doutorado na UFRJ em psicanálise, me dediquei à pesquisa, etc. Em suma: minha vida profissional foi muito intensa, não dava tempo para mais nada. Na virada dos 60 anos, eu disse: “tá bom”. Saí da universidade e comecei a escrever um romance. Foi O silêncio da chuva. Escrevi sem mostrar para ninguém, sem nunca aprender a como escrever literatura — eu já tinha uns oito ou nove livros teóricos publicados. Mas uma coisa é publicar ensaios sobre psicanálise e filosofia, outra coisa é fazer ficção. O livro conceitual te abraça, te põe no colo. Tem os comentadores, enfim, qualquer descaminho que se cometa num livro conceitual, há orientadores que te apoiam, te orientam. Na ficção, não tem nada. É como estar nu, sozinho, no meio da rua. Não adianta pedir socorro porque ninguém vai te ouvir. É um estado de desamparo absoluto. Eu acho que o autor de ficção é o ser mais desamparado que existe. Porque ele se coloca deliberadamente na posição de Deus, ele vai criar. Ele cria o mundo que quer, o cenário, as pessoas, mata um, mata outro, desmata se quiser, conserta, ele faz o que bem entender. Não é só Deus, é um Deus brincalhão. Se você olhar para o lado, para o outro, para baixo, para cima, você não vê mais ninguém. Ou você é Deus e está ali sozinho, ou então não é. Essa é a consciência de que o escritor de ficção tem que ter.

Pesquisa

Na verdade, eu nunca tinha entrado numa delegacia de polícia até escrever O silêncio da chuva. Tenho um amigo, advogado criminal, que me levou numas delegacias, para ver como funcionava e tal. O problema é que muda muito: quando o Espinosa nasceu, ele era inspetor. Depois, deixou de existir inspetor, não tem mais, só tem delegado e detetive. Aí, mudei, botei ele como delegado. Aí, não tem mais detetive, só tem inspetor, mas em compensação não tem mais delegado, e sim comissário. Bem, resolvi que não vou acompanhar isso. Eu vou deixar o Espinosa numa certa atemporalidade em relação a essas mudanças, porque isso acaba virando um inferno, fica difícil até para o leitor acompanhar.

Espinosa envelhecendo

Esse foi um dos maiores problemas que eu enfrentei: se eu fazia o meu personagem histórico ou a-histórico. Quando comecei, Espinosa tinha 42 anos, e a namorada dele 30. Bem, agora ele devia ter 55 anos, e ela 40 e tantos. Eu não poderia deixar o personagem descolado da história, não posso fazê-lo sem história, porque os acontecimentos externos vão mudando, a vida da cidade vai mudando, coisas vão mudando no entorno dele, e eu não posso mantê-lo na década de 1980 e as coisas acontecendo em 2011. Então, fui acomodando cronologicamente o Espinosa aos livros. Entreguei agora mais um livro. O Espinosa atual está com 55 anos, se não me engano, portanto já houve uma mudança. Ele envelheceu. Ele sofre com problemas da idade.

Romance sem Espinosa

Eu fiz esse romance para não matar o Espinosa. Como o Espinosa é um personagem que aparece em todos os livros, como que é que você faz? Você repete no segundo livro o que disse no primeiro romance sobre o Espinosa, para o leitor saber como ele é? Vou ter que dizer como ele namora, como é a namorada dele, ou seja, vou ter que explicar tudinho, de novo, a cada livro? Não vou suportar um negócio assim. Então, me dei conta que tinha coisa que eu não falava mais. Eu fazia de conta que o leitor já sabia, mas não poderia fazer isso, porque o leitor pode entrar na livraria e comprar o último livro, e não ter lido nenhum anterior. Então, senti que já estava empurrando algumas coisas do Espinosa que tinha que dizer, para o leitor saber como ele é, e isso estava me amolando. Então escrevi um livro que não tinha o Espinosa, para dar uma limpada na cabeça, inventar uma história, que seja de investigação, que tenha um crime, mas em que Espinosa sequer é mencionado. Quem será o personagem, então? Uma mulher. Aí, ninguém melhor que uma motorista de táxi, porque ela é uma caixa de ressonância, está o dia inteiro ouvindo coisas, informações, ela circula pela cidade, conhece todo mundo do bairro. Por isso imaginei a Berenice [personagem de Berenice procura]. E para complicar, imaginei uma história que se passa nos subterrâneos do metrô.

Coadjuvantes

O Welber, por exemplo, surgiu logo no começo, da necessidade de ter um interlocutor para o Espinosa. Ele já é solitário, se não tivesse um interlocutor, iria virar um personagem chato. Então, ele precisava de um interlocutor, de uma namorada interessante, com todo aquele fogo que a Irene tem, uma mulher extremamente sensual, mas também não perturbadora da ordem dele. Mas a própria presença dela já mexe com ele. Ele precisava disso, senão aquele personagem não se sustentaria. Ou seja, o próprio Espinosa tem um ar plácido, precisava de um entorno, um conjunto de coadjuvantes, que pudessem manter uma troca, manter a história mesmo. Daí o Welber.

Copacabana


As histórias de ficção tem como matéria-prima o imaginário, mas também a realidade, até por uma questão de verossimilhança. A matéria-prima que utilizo vem daí. Conheço Copacabana não só como a palma da minha mão, mas também subterraneamente. O Rio de maneira geral. Então, tenho o material da realidade, do que eu vejo, do que acontece, e o resto é o imaginário mesmo. Mas eu tenho, por exemplo, na parede do meu escritório, um mapa de três metros, só de Copacabana, feito pela prefeitura do Rio, tão meticuloso que ele te dá cada prédio com o número de andares, e quantos metros ele tem de frente e de fundo. Dá as ruas, as sinalizações, tudo. Também caminho bastante, você tem que fazer isso, porque nem sempre o mapa corresponde exatamente.


Construção do romance

Não construo o crime, deixo ele vir. Por exemplo, em Achados e perdidos eu estava saindo de um restaurante uma vez, em Copacabana, tarde da noite, e no outro lado da rua, tinha uma caixa de papelão, de geladeira. Quando eu vejo, uma cabeça sai de dentro da caixa: era um pivete que estava dormindo ali, coitado, não tinha outro lugar para dormir. Aí, eu vi sair um bêbado do mesmo restaurante, e indo na mesma direção, e o bêbado esbarrou, chutou a caixa. O garoto botou a cabeça para fora para ver o que estava acontecendo. O começo de Achados e perdidos é exatamente esse. É um delegado que está saindo de um restaurante com uma prostituta, um delegado aposentado e alcoólatra, e acontece uma série de coisas, só que ele deixou cair a carteira no chão, então o garoto pega a carteira e descobre que dentro dela tinha uma carteirinha de delegado de polícia. Aí, a coisa começa a enrolar. Foi assim.

Psicanálise


Deliberadamente, não utilizo nada da psicanálise em meus romances. Esse foi um dos grandes perigos que eu sabia que tinha que enfrentar. Eu tinha uma formação muito forte em filosofia, mais forte do que em psicanálise. Era o risco de começar a fazer filosofismos ou psicanalismos na ficção. O que mataria, no nascedouro, qualquer tentativa minha de fazer novela policial. Isso foi uma coisa que eu sempre tomei o maior cuidado. Quando muito, há uma citação do Espinosa a respeito de alguma coisa de psicanálise, mas inteiramente gauche, porque ele mesmo não entende muito de psicanálise. Agora, o que a psicanálise fez comigo para eu escrever como escrevo? Isso aí é outra história. Fez muita coisa. Tanto quanto a vida fez comigo. O quanto sai dos meus livros que aconteceram efetivamente? Não sei, muita coisa provavelmente. Talvez coisas que eu não tenho nem ideia que aconteceram. Impossível, num ato de criação, seja na literatura, na pintura, na música, determinar o que teve uma origem exterior e o que teve um começo absoluto no momento em que se está escrevendo. E mesmo esse começo absoluto, dificilmente será um começo absoluto, porque você já é um adulto, vivido, que está ali, escrevendo. De modo que eu não me preocupo com o quanto fui marcado pela psicanálise. Eu me preocupo em não fazer isso deliberadamente. Até hoje, acho que consegui, em todos os meus livros, não fazer nenhuma interpretação psicanalítica em qualquer momento.

Método de trabalho

Trabalho todo dia. Um pedaço da manhã, um pedaço da tarde. Não escrevo desesperadamente. Às vezes, em casa, à noite, quando tem alguma coisa que está muito na cabeça, que não consegui soltar, pego o computador e continuo o que fiz durante o dia. Mas é raro. Eu procuro manter a maior continuidade possível, porque as quebras são muitos prejudiciais. Se eu fico dois dias sem trabalhar, a retomada é difícil. Em 15 anos, escrevi 11 livros. Dois livros a cada três anos. Mais ou menos isso. E eu acho que escrevo rápido. Se eu fosse prudente, escreveria um pouco mais lento — mas aí entra a questão da urgência.

Personagem versus autor


O personagem não pode te surpreender. Ele não existe. Antes eu acreditava nisso: que se você não tomasse cuidado, a história te surpreenderia, fosse diferente do que você imaginava. Não. Se isso acontece, você já estava dando aquele caminho. O personagem é inteiramente passivo, não é sujeito de ação, nem de sugestão. Às vezes, você pode ter a impressão de que a história está tomando o rumo que não era o original, que certamente esse rumo está sendo dado por certos personagens. Mas é evidente que não, aqueles personagens ali são os seus dedinhos que não estão funcionando, eles não são sujeitos de ação nenhuma. Então, nunca fui surpreendido. Até fiquei surpreso comigo por ter dado certa solução a alguma coisa que eu ainda não tinha imaginado durante o livro. Mas eu dei aquela solução naquela hora, foi dada por mim. Esse risco não existe.

Gosto pela leitura

Isso é um mistério. Eu não cresci num ambiente de leitores. Eu, muito novo, comecei a fazer minha prateleira. Tem gente que lê onde pode, na hora que pode, contra tudo e contra todos. Porque gosta de ler. E você vê que ele lê nas piores condições possíveis, sem ter nem incentivo nem apoio de ninguém. E tem gente que cresce numa biblioteca como a do Borges, por exemplo. Quer dizer, eu nem sei se o Umberto Eco tem filhos, acho que tem uma filha, mas ele tem quarenta mil livros. Os filhos dele cresceram em meio a quarenta mil livros. Ou eles tomaram um ódio absoluto e total por livros, ou eles foram se interessando, nem que fosse pelo livro materialmente, não pelo conteúdo, nem pela literatura, mas pelo livro enquanto tal. Eu só sei o seguinte: acho ótimo quando vejo uma criança lendo qualquer coisa, pode ser bula de remédio. Porque o ato de ler, essa relação com a escrita, é que vai fazer, um dia, a coisa mágica. Uma vez, falando aqui mesmo em Curitiba, dei um exemplo: abrir um livro é uma experiência análoga a da criança que vai olhar no buraco da fechadura o que os pais estão fazendo no quarto com a porta fechada. O que tem por trás desta porta? Tem um mundo misterioso e fantástico. Ele é capaz de ficar pendurado ali na maçaneta, até conseguir ver alguma coisa. Essa magia do oculto, desse lugar, que é o lugar do não visto e do não dito, é o lugar do silêncio, dessa coisa silenciosa, e invisível, que está ali, dentro da sua casa, e que deve ser ameaçadora, porque está trancado. Essa experiência, que é a experiência analítica por excelência, para fazer jus à presença da psicanálise, é essa outra cena, que seria a cena do inconsciente. Então abrir o livro é uma experiência análoga a isso. Você abre um universo novo, de personagens, de histórias, tudo. Há, em cada criança, a curiosidade por àquilo que não foi visto e dito. As minhas primeiras leituras foram gibis. Eu lia o ano inteiro. Essa coisa uma hora passou para o livro. Se a gente conseguir fazer com que isso aconteça com a criança, está resolvido o problema. Ou ela mesma vai fazer isso, ninguém precisa fazer isso por ela. Agora, apenas dar a liberdade. Jamais pegar uma criança que está lendo um gibi e dizer para ler outra coisa, que aquilo é porcaria. Ela fica com ódio das outras coisas. É só fazer que essa curiosidade dela seja prazerosa também.