Um Escritor na Biblioteca | José Luiz Passos

Mesmo vivendo há mais de duas décadas nos Estados Unidos, o escritor José Luiz Passos mantém o foco no Brasil. Seu mais recente livro, o romance O marechal de costas (2016), trata de uma das figuras mais controversas e enigmáticas da história brasileira: Floriano Peixoto (1839-1895), homem taciturno que de modo fortuito se tornou a figura mais importante da política nacional nos primeiros anos da República. Esse foi um dos assuntos comentados por Passos na edição de julho do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. O papo teve a mediação do jornalista e cronista Luís Henrique Pellanda.

O marechal de costas nasceu de um conto que o autor pernambucano escreveu a pedido da revista Granta. Na história, Floriano Peixoto aparecia como um personagem secundário. Por sugestão de seu editor, Passos decidiu investir em Floriano como protagonista de uma longa narrativa. Ao se debruçar sobre o período em que o livro se passaria, encontrou paralelos com o momento político atual do Brasil, o que tornou O marechal de costas um romance histórico com diálogo direto com o presente. 

Outra motivação para escrever o livro, segundo o autor, foi o fato de a literatura brasileira ter produzido poucas obras sobre figuras centrais da nossa política. “Na tradição literária hispano-americana há uma quantidade considerável de obras sobre ditadores, políticos, etc. E nós não temos esses livros. Onde está o nosso grande romance sobre Juscelino Kubitschek ou sobre Getúlio Vargas? Poderíamos ter um grande romance 'macunaímico' sobre os generais da ditadura, por exemplo.”

Nascido em Catende (PE), em 1971, José Luiz Passos atua como professor titular de literatura brasileira e portuguesa na Universidade da Califórnia (UCLA). Formado em Sociologia, aos pouco migrou para a área de Letras. Diferentemente de muitos autores, não encontrou dificuldades para publicar seu primeiro livro, Nosso grão mais fino (2009), que ganhou acolhida na editora Alfaguara, que continua publicando seus livros. 

Com o segundo romance, O sonâmbulo amador (2012), foi vencedor do Prêmio Portugal Telecom de 2013 (atual Prêmio Oceanos) e ganhou destaque no circuito literário nacional. Este ano, além de O marechal de costas, o escritor publicou A órbita de King Kong, que em 15 capítulos conta a história do macaco Ham, um chipanzé de cinco anos e 17 quilos que em 1961 embarcou em uma cápsula espacial da Nasa. O livro foi feito em edição limitada de 100 exemplares, numerados e assinados pelo autor. 

Durante o bate-papo na Biblioteca, Passos ainda relembrou o início da carreira e falou também sobre outros temas instigantes, como a democracia brasileira e a recepção de autores nacionais no mercado editorial americano.

    Fotos: Guilherme Pupo
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Formação
Tenho uma tia que foi professora do ensino fundamental, do sistema municipal do Recife. O primeiro livro que eu me lembro de ter recebido de presente, foi dela, uma tradução resumida que Monteiro Lobato fez de Robinson Crusoé. Lembro vivamente desse presente. Estudei em uma escola católica, de freiras belgas, então lá havia uma biblioteca, que na verdade era um espaço proibido aos alunos, nós não podíamos usar a biblioteca. Era um lugar para eventos, então os livros tinham uma certa áurea de mistério e proibição. O meu pai gostava de livros, nós tínhamos uma biblioteca relativamente boa, que eu acabei herdando. Inclusive alguns livros eu ainda uso para preparar minhas aulas, outros permanecem como parte da minha leitura regular: as coleções de Graciliano Ramos e Machado de Assis, por exemplo.

Família
Meu pai era administrador de empresas e minha mãe trabalhou como cozinheira, chefe de cozinha e gerente de alimentos e bebidas de um grande buffet lá no Recife. Não eram leitores particularmente assíduos, mas gostavam de livros, de cinema e de arte de modo geral. E acho que foi isso que me levou a buscar a carreira acadêmica. Meu avô era químico. Esse sim gostava muito de ler, me presenteava com livros e tinha uma boa biblioteca, mas era um acervo predominantemente técnico: de história da ciência, história da cultura, além de muitas obras sobre química. Ele era um químico de açúcar, na usina onde eu nasci.

Primeiras experiências
A minha primeira experiência propriamente dita com biblioteca foi quando precisei escrever um trabalho escolar sobre São Bernardo, o romance de Graciliano Ramos. Procurei a biblioteca pública mais próxima da minha casa, que ficava em um bairro chamado Casa Amarela, um lugar onde morava a classe trabalhadora. Lá eu retirei e li o livro para escrever o trabalho. Ao longo da vida, então, cultivei uma relação muito próxima com as bibliotecas, eu amo bibliotecas, frequento muito. Não há como fazer pesquisa senão dentro das bibliotecas. Fiz muita pesquisa na época em que estudava Sociologia e Letras, na Fundação Casa de Rui Barbosa, na Biblioteca Nacional e, depois, em bibliotecas americanas, quando fiz doutorado. Ainda hoje passo muito tempo em bibliotecas.

Migrando
No curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) passei a trabalhar mais e mais com sociologia da arte e, na sequência, com sociologia da literatura, especificamente. Acho que no Brasil há uma tradição relativamente forte de extração ou inspiração “uspiana”. Uma linha seguida por acadêmicos como Antonio Candido e Roberto Schwarz, que se volta predominante para uma leitura mais sociológica do texto. Ou pelo menos inicialmente sociológica. Foi então em sociologia que eu passei a escrever textos sobre literatura, a questão do regionalismo, o regionalismo versus modernismo, que é um tema eterno em Pernambuco. Depois passei a autores específicos: Mário de Andrade, que foi tema da minha tese de mestrado, Graciliano Ramos, que sempre releio, além da poesia dos poetas do Recife, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardoso, Carlos Pena Filho, Manuel Bandeira. Temas e autores lidos com frequência, mesmo no curso de sociologia. E aí eu me dei conta de que, na verdade, não me interessava essa parte quantitativa da sociologia, e mais e mais fui migrando para as Letras. 

Unicamp
Quando surgiu a oportunidade de fazer mestrado na Unicamp, entrei num curso que acabava de ser criado lá e que de certo modo mudou a minha vida. Era um curso simultaneamente oferecido pelos programas de Letras e Sociologia. Ele era ensinado por dois professores: Marisa Lajolo, representando Letras, e Octavio Ianni, da Sociologia. Aí me dei conta de que eu queria fazer era ler e estudar literatura — e falar sobre literatura.

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Nosso grão
Eu vinha há muitos anos escrevendo um romance, o meu primeiro, Nosso grão mais fino, que é mais lírico, de prosa poética. É um romance também que volta um pouco às minhas origens na cana de açúcar, digamos assim, pois, como disse, nasci na usina de açúcar na qual o meu avô era químico. Concluí o romance após quase 10 anos escrevendo. Mostrava a algumas pessoas, mas não tinha coragem de bater à porta de um editor de literatura, de uma grande casa. Mas algumas pessoas começaram a me dizer que jovens editores estavam procurando novas vozes e tal. A sugestão veio da parte do Samuel Titan Jr., professor da USP, que também trabalha no Instituto Moreira Salles. Ele me disse que conhecia o Marcelo Ferroni, da Alfaguara. Então eu escrevei um e-mail para ele, descrevendo o romance em um parágrafo, e dizendo que Samuel tinha me passado o contato dele. A Alfaguara era muito recente na época, e eles estavam querendo montar um catálogo. Marcelo respondeu muito rapidamente, acho que no outro dia, dizendo: “Gostei da história, mande-me o original por e-mail”. Ele leu e um mês depois respondeu dizendo que achara o livro forte. “É um livro que a gente sabe que não vai vender, mas eu gostei”, disse.

Dois livros
Nessa época eu tinha começado a escrever O sonâmbulo amador, então contei a história do romance para o editor e mandei os primeiros sonhos de Jurandir, personagem do livro. E aí eles gostaram e fizeram um contrato para dois romances — Nosso grão e O sonâmbulo. Assim comecei essa relação com o Marcelo, que tem sido muito produtiva. Eu realmente tenho muito a agradecer, devo muito a ele pela atenção que me deu. Mas é fundamental ter um editor? Eu não sei. É difícil. No meu caso, não bati em muitas portas. Não fui às grandes editoras imediatamente, o livro não foi rejeitado por várias casas. Meu primeiro livro foi rejeitado pela Editora 34, por onde sempre quis publicar, pois achava os livros bonitos, admirava os autores e tal. Mas realmente o livro não cabia no selo. Não era o tipo de livro que coubesse lá.

Pesquisas
Sempre que visito o Brasil, vou aos sebos e livrarias. Às vezes passo dias pesquisando em sebos, buscando coisas que não têm nenhuma relação aparente com o que eu estou fazendo ou escrevendo. Numa dessas visitas, encontrei uma plaquete publicada no final do século XIX chamada A execução de Silvino de Macedo. A plaquete havia sido escrita por um advogado que tentava esclarecer a execução de um marinheiro pernambucano durante a Revolta da Armada (1893-1894), no Rio de Janeiro, que se opôs à permanência de Floriano Peixoto (1839-1895) na presidência quando a república é proclamada por Deodoro da Fonseca (1827-1892). 

Marechal de Costas
A leitura desse panfleto, sobre a execução ilegal do marinheiro Silvino de Macedo, me instigou a querer escrever o romance O marechal de costas. Tive a sorte de receber na mesma época um convite do meu editor, Marcelo Ferroni, para elaborar um conto para a revista Granta, que é temática. O tema da vez era “traição”. Aí eu disse a ele que gostaria de escrever sobre traição política, não sobre traição conjugal. Ele concordou e eu fiz um conto chamado “Marinheiro só”, que é o que acontece com o marinheiro pernambucano do panfleto durante a Revolta da Armada. No conto, Floriano Peixoto aparece como um personagem secundário, sempre muito calado. Ferroni então achou que uma história maior poderia surgir a partir da figura de um presidente que cai de paraquedas na presidência, não quer sair, é caladão e que todo mundo precisa fazer um esforço grande para interpretar. Comecei a me dar conta de várias coisas e fiz um paralelo entre a Primeira República e a crise do governo Dilma. Além disso, refleti sobre o fato de que na tradição literária hispano-americana há uma quantidade considerável de obras sobre ditadores, políticos, etc. E nós não temos essas obras. Onde está o nosso grande romance sobre Juscelino Kubitschek ou sobre Getúlio Vargas? Nós poderíamos ter um grande romance “macunaímico” sobre os generais da ditadura. Mas por que não escrevemos sobre essas figuras? Foi então que comecei a pensar na possibilidade de escrever de fato uma novela sobre a vida íntima e a ascensão política meteórica de Floriano Peixoto.

Deodoro e Floriano
Deodoro da Fonseca era uma figura pública relativamente impopular, sem nenhum talento, canhestro do ponto de vista político. Deodoro e Floriano haviam voltado como heróis da Guerra do Paraguai (1864-1870). Na eleição para presidente, para substituir o governo provisório, Deodoro concorre na chapa oposta a de Floriano. Depois da contagem de votos, a chapa de Deodoro foi eleita, mas com o vice da chapa oposta, Floriano, que havia recebido mais votos que o próprio Deodoro. Então, digamos que é um pouco esquisito nosso primeiro pleito republicano. Porque você tem um presidente da república relativamente impopular com um vice que recebeu mais votos e era mais conhecido.

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Discursos
O marechal de costas já tinha, dentro dele, pedaços de discursos de Floriano Peixoto, de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e de Dom Pedro II (1825- 1891). Quando o livro estava prestes a entrar na segunda revisão, ou seja, a última antes de ir para a gráfica, a ex-presidente Dilma fez seu discurso no Senado. Fiquei muito emocionado. Percebi que precisava usar trechos desse discurso como modo de fechar a parte narrada por uma personagem, que é cozinheira e assiste, ouve, escuta esses discursos no rádio e na televisão. Então o que você realmente se lê não é exatamente Dilma falando, mas o que a cozinheira escuta, pensa, fala, reproduzindo aquilo que ouve. Escrevi para o editor dizendo que gostaria de incluir partes do discurso. Ele concordou, mas deu poucas horas para preparar o material. Encontrei a transcrição na internet, que saiu quase imediatamente após a fala de Dilma, li, reli, imprimi e comecei a fazer cortes, emendas. Parti o último capítulo ao meio, inseri essa parte, depois reli, fiz as emendas e mandei para o editor. Ele leu e gostou.

Contra o panfleto
Uma grande preocupação que tive quando escrevi O marechal de costas foi tentar ao máximo possível não escrever um panfleto. Ou, pelo menos, não fazer nem um elogio, nem uma acusação a Floriano Peixoto e a Dilma Rousseff. A ideia foi montar por meio dessas duas linhas narrativas uma tensão que permita ao leitor entrar nessa arena e perceber paralelos e ecos — e tirar as suas conclusões. Em certos momentos, no livro, sou simpático a Floriano, e em outros mostro um lado violento, tacanho dele. O mesmo se dá com com Dilma. Muitas vezes ela aparece em discursos muito desarticulados. Já em outros momentos, há uma perspectiva extremamente aguçada, extremamente pertinente. Os discursos de Dilma e de todas outras figuras públicas, foram tirados de fontes fidedignas. Em relação a Dilma, transcrevi os discursos disponíveis no site da Presidência da República. Ou seja, ela de fato falou tudo que está no livro. E, nas transcrições, como eu não uso aspas nem travessões, editei para fazer com que meus personagens também digam suas falas ou se permitam imaginar que ouviram coisas dessas pessoas.

Democracia brasileira
Vivo fora do Brasil há 22 anos. Uma coisa que noto aqui — e não sou o primeiro a perceber isso —, é que a esfera pública — e portanto a democracia deveria ser o modo como essa esfera pública opera —, permanece ainda refém de demandas particulares, de clãs familiares, de empresas. Exemplo disso foi a maneira como os deputados dedicavam seus votos na sessão do plenário que decidiu sobre a abertura do processo de impeachment contra Dilma. Ali fica claro essa confluência, ou pelo menos essa confusão, entre as esferas pública e política, em que há uma privatização de um espaço de debates que deveria ser público, em que todos deveriam compartilhar suas ideias. Mas não sei se isso é um estilo brasileiro, ou se é uma herança específica de certa maneira de organização política que vem de um legado colonial. 

A influência da poesia
Acho que eu leio mais poesia do que prosa hoje em dia. Adoro e invejo os poetas. Só consigo escrever um livro se tiver um título que eu ache relativamente final e pronto, além de uma epígrafe que, de alguma maneira, sintetize o espírito do livro. E todas as minhas epígrafes são de poetas, sem nenhuma exceção. Em O sonâmbulo amador a frase é do João Cabral de Melo Neto, O Marechal de costas traz o Drummond, e A orbita de King Kong abre com um poema lindo da Cecília Meireles, chamado “O aeronauta”. 

Diálogo com outras obras
Monto meus textos num verdadeiro diálogo com outras obras. Em O sonâmbulo amador inseri uma tradução minha de Otelo, de Shakespeare. Faço com que meu personagem assista a um filme, que seria uma adaptação cinematográfica da peça, e coloco esse discurso na boca dele, não em verso, inclusive não me referindo a Otelo especificamente.

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Relação com editores
Tive sorte com meus editores, particularmente com Marcelo Ferroni. Faz uma diferença imensa ter um editor no qual você confia, que lê as suas coisas, que lê o que você escreve com atenção, que responde na hora, que tem interesse em melhorar o texto. Realmente isso é uma bênção. Publiquei praticamente todos os meus livros pela Alfaguara mas, recentemente, trabalhei com outros dois editores também excelentes: Bruno Zeni, que editou A órbita de King Kong [em edição fora de comércio, de 100 exemplares, numerados e assinados], e Schneider Carpeggiani, que é o editor do Suplemento Pernambuco, e vai publicar um livro chamado Antologia fantástica da república brasileira

Literatura brasileira nos EUA
Acho que a literatura brasileira é relativamente invisível nos Estados Unidos. Você não entra em uma livraria americana e encontra livros de vários autores brasileiros. Isso se dá por vários motivos. Principalmente porque apenas 3% dos livros publicados lá são traduções ou escritos em outra língua. Ao contrário do Brasil, em que 65% do nosso movimento editorial, das vendas, são de livros escritos em outras línguas. Então, por incrível que pareça, o mercado americano é o mais dinâmico, o mais rico, o mair do mundo e o mais provinciano de todos. Diante disso, para o autor brasileiro contemporâneos e não-contemporâneos, em literatura de ficção e livros paradidáticos. É muito difícil encontrar esse espaço. Há exceções: a bolha universitária, por exemplo. Nas universidades, é claro, nos cursos de Letras, nós consumimos literatura brasileira, literatura portuguesa, literatura argentina no original. As traduções que chegam também são vistas nos cursos ensinados em inglês. 

Clarice
O fenômeno mais recente foi essa atenção a Clarice Lispector, por causa da publicação de várias retraduções e também novas traduções de obras diferentes da autora, que culminaram em um projeto dirigido por Benjamin Moser. A partir desse trabalho foi publicada a edição de Todos os contos, que reúne toda produção de histórias breves da autora. Um livro que não existia em português (a compilação), e que saiu publicado pela New Directions — aliás, traduzido por uma ex-aluna minha, a Katrina Dodson. Isso gera, digamos, uma bolha de consumo muito específico. 

Machado esquecido
Mas outros autores não têm essa repercussão. Mesmo clássicos, como Machado de Assis. Todos os romances de Machado foram traduzidos para o inglês, mas estão em sua maioria esgotados, são difíceis de serem encontrados. É muito raro você encontrar um livro de Machado de Assis em uma livraria americana. Em alguns sebos de cidades universitárias, você encontra as traduções da década de 1960 e algumas mais recentes.

Contemporâneos
Alguns autores importantes foram traduzidos recentemente. Sempre há autores contemporâneos traduzidos, mas a circulação é mínima. Uma vez a cada ano, ensino um curso exclusivamente voltado para a literatura brasileira contemporânea, especificamente a narrativa que é, digamos, mais a minha praia, na área propriamente acadêmica. Eu adoto esses livros, quando ensino em inglês. Usei, por exemplo, o livro do Daniel Galera, Barba ensopada de sangue, que saiu lindamente traduzido por Alison Entrekin. Mais recentemente, Diário da queda, do Michel Laub, também saiu lá, editado tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. Mas, de novo: estou atuando dentro de uma bolha, porque eu sou professor de Letras.