Um Escritor na Biblioteca I Assis Brasil

Da Redação

Luiz Antonio de Assis Brasil se tornou um farol para diversas gerações de autores do Rio Grande do Sul. Há mais de 30 anos conduzindo uma oficina de criação literária na PUCRS, ajudou a revelar nomes que construíram carreiras na literatura brasileira — mais de 450 alunos já passaram pelo curso. Convidado para abrir a temporada 2018 do projeto Um Escritor na Biblioteca, Assis Brasil falou com o mesmo entusiasmo tanto de suas aulas quanto de sua premiada obra. 

“Quero ser útil dentro daquilo que eu faço para a geração em que vivo. Quer dizer, quero colaborar para que essa geração deixe um legado melhor do que eu recebi. E a minha maneira de ser útil à minha geração é com minha literatura. Com as minhas aulas”, disse.

Autor de 19 livros, alguns deles premiados, como os romances Cães da província (1988, Prêmio Literário Nacional) e A margem imóvel do rio (2003, prêmios Jabuti e Portugal Telecom), o gaúcho tem obras publicadas em Portugal, na França e na Espanha. Grande parte de sua produção ficcional é calcada na reconstituição histórica.

Com uma vida dedicada à literatura, Assis Brasil falou sobre seu primeiro contato com os livros e bibliotecas, seu envolvimento com a música (que originou temas para diversos romances) e, principalmente, de questões que afligem escritores de todas as estirpes. “Os ficcionistas ficcionam até seus processos de escrita. Mas um romance não pode ser escrito sem que seja planejado, porque não vai dar em nada.” 

Ele comentou também seu próprio método de escrita ao falar do aclamado O pintor de retratos, romance que narra a trajetória tortuosa do artista Sandro Lanari, um personagem complexo, tal como acredita Assis Brasil que devem ser as figuras centrais de uma grande obra de ficção. Confira o principais momentos do bate-papo, que teve a mediação do escritor Luís Henrique Pellanda.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Fotos: Higor Oratz
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Início com os livros
Em 1956, foi comemorado o cinquentenário da aviação, a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul promoveu um concurso de redação escolar sobre o tema. Onde me preparei para escrever esse texto? Na biblioteca do meu colégio. Nessa altura eu estudava em uma escola pública, um grupo escolar, como se chamava naquele tempo. A biblioteca era muito bem cuidada. E havia lá uma coleção que as pessoas da minha geração devem se lembrar, que se chamava “O tesouro da juventude”. Era uma coleção de livros encadernados, impressos em papel couché, ilustrados — uma coisa absolutamente maravilhosa. Eu pesquisava habitualmente lá, no “tesouro da juventude”, uma espécie de enciclopédia ilustrada para uso escolar, ou pelo menos para uso da infância e da juventude — daí o nome. Foi lá que passei a entender o sentido de uma biblioteca, o quanto ela é relevante, importante e fundamental na formação do ser humano. 

Várias bibliotecas
Meu pai era veterinário da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul. Ele tinha livros técnicos de veterinária. Minha mãe lia romances. Hoje eu me lembro de alguns títulos. Não era a melhor literatura, vamos dizer assim, mas era literatura. Pelo menos sempre via minha mãe com um livro. Mas não tínhamos uma biblioteca. Isso eu tinha na escola. Depois, já em Porto Alegre, frequentei a biblioteca do Colégio Anchieta, onde fiz toda minha formação secundária. Era uma biblioteca primorosa, que me ajudou muito. E nós morávamos próximos à Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, que fica em um prédio construído na década de 1910, muito bonito, com decoração da época e toda geologia positivista representada na fachada. Aquela biblioteca era, e ainda é, um espaço de encantamento. Havia vários salões com nomes diferentes, e eu ficava encantado com aquilo. Bom, quando poderia imaginar, que como secretário de Estado da Cultura, essa biblioteca pública pertenceria à minha secretaria. 

Música
Acho que sou mais músico agora do que antes. Isso porque fazia música, na minha juventude, profissionalmente. Estudava e ensaiava todos os dias. Então sempre fui acostumado a ter uma atitude profissional perante a música e o instrumento. Logo que eu saí da orquestra, fiquei um pouco sem saber o que fazer. Depois de algum tempo me reuni com alguns amigos, pessoas da minha idade, e fizemos um quarteto. Mas aí passei a tocar cada vez pior, porque não estudava. Comecei a ficar envergonhado daquela atitude, pois isso não se faz com a música. As pessoas perguntam, com a melhor das intenções, “você não toca nem por divertimento?” Não existe divertimento na música — ou se faz bem, ou não se faz.

Escrever sobre si
No fundo, no fundo, toda pessoa que escreve ficção, escreve sobre si mesma. Ela pode disfarçar aquilo de mil maneiras, mas, no fundo, ali vão estar presentes as suas experiências existenciais, culturais, humanas. E também as experiências intelectuais e literárias. Como é o caso do Jorge Luis Borges. Ele não tinha muitas experiências humanas, mas tinha uma experiência literária incrível. Borges era, como sabem, funcionário de uma biblioteca e tinha um mundo de experiências literárias que preenchia e dava sentido à sua vida, o que está particularmente representado no conto “O sul”, que leio bastante com meus alunos. Aquela personagem, que está lá, o Johannes Dahlmann, é o próprio Borges. Hemingway, por sua vez, teve uma existência feérica, impulsiva, aventurosa, aventureira. E quis experimentar tudo que a vida tinha a oferecer. Se pensarmos, por exemplo, em algumas obras dele que são fundamentais, elas derivam das experiências do autor, como as touradas, que ele gostava muito, ou as pescarias. Então isso significa que, no fundo, quem escreve ficção escreve sobre si mesmo, mesmo que ele escreva na terceira pessoa ou crie uma personagem que aparentemente não tem nada a ver consigo. Mas, na verdade, o escritor de ficção está presente em todas as suas personagens. Alguma coisa do ficcionista está ali.

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Construção ficcional
Trabalho fundamentalmente com dois conceitos. O da estrutura orgânica, ou sistêmica, do romance — e nesse sistema, ou nesse organismo, o centro dinamizador de todo ele é a personagem com a sua questão essencial. Essa é uma expressão que tenho usado, um sintagma que inventei para o meu uso, enfim, nas minhas aulas, a personagem que deflagra o romance, a ponto de fazer com que a história tenha unidade, organicidade, seja um sistema. Essa personagem é um ser humano, portanto... Vocês devem estar pensando: “Grande novidade”. É, mas sabemos que nem sempre se pensou assim. Por vezes se pensou, e por vezes se pensa, na personagem como um constructo intelectual, e que tem uma existência literária, uma existência de papel, digamos assim. Eu penso diferente. Penso que a personagem tem uma constituição humana, e essa constituição está fundamentada em uma questão essencial, que é o sintagma que inventei para trabalhar. Essa questão essencial é anterior à própria história, ao próprio romance. Então digo para os alunos que é preciso ter muito nítida qual é a questão essencial da personagem. Depois, cria-se a história. Mas as pessoas, em geral, invertem: pensam primeiro na história, e depois acham que o leitor vai criar sua personagem. Não vai criar, se o escritor não o fizer.

O pintor de retratos
Temos que desdramatizar essa questão do estilo. Eu vejo meus alunos ficando muito preocupados com um “estilo próprio”. Quando o que interessa é a qualidade do livro. Antes de O pintor de retratos, que lancei em 2001, eu vinha trabalhando um estilo bastante complexo, com muitas orações subordinas, períodos longos. Aí, quando comecei a escrever esse livro, segui do mesmo jeito. Mas achei que não estava dando certo. Não estava contente. E me confundi, achei que tinha escolhido mal o tema. Tinha escrito pouco, umas 40 páginas, mas um dia, após o jantar, subi até o escritório e comecei a olhar a estante de livros. Com um copo de vinho na mão e olhando a estante, me chamou a atenção um livrinho que eu tinha lido na escola, um texto medieval, anônimo que retrata a vida de El Cid Campeador, que foi um guerreiro e comandante daquilo que se chamava de a libertação da Espanha dos mouros. Então comecei a ler o primeiro parágrafo: “Naquele dia, El Cid Campeador acordou ao nascer do sol, chamou seus homens e disse...” Aí vi que era aquela simplicidade, naturalidade, que eu precisava. Então me dei conta que a criação do mundo está contada em um parágrafo. Essencialidade, essencialidade, essencialidade. Trabalhando mais por coordenação, períodos gramaticais mais curtos — mas claro que isso não pode se tornar algo muito repetitivo, muito chato, senão vai ficar um texto sincopado demais, como quem anda com o pneu furado. A partir dali, percebi o que faltava ao meu livro. E não me dei conta também que, na época, estava muito seduzido pela linguagem de um grande romancista francês atual, que é Pascal Quignard.

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Primeiro capítulo
Os ficcionistas ficcionam até seus processos de escrita. Mas um romance não pode ser escrito sem que seja planejado, porque não vai dar em nada. “Ah, mas eu comecei a escrever assim, sem projeto nenhum, e resultou num bom livro”. Mas quantas vezes foi preciso reescrever? Provavelmente muitas. Esse muito reescrever significa escrever numa estrutura às avessas. E como nós não temos a vida eterna — e eu naturalmente estou cada vez mais certo disso —, não podemos perder tempo. É assim. Não é que a coisa esteja prevista em todos os seus pormenores. Não é isso. É preciso haver um espaço para o prazer da invenção, para o prazer da criação, além daquele prazer inicial de quando se tem a ideia. Esse é o grande prazer do escritor, quando se tem a ideia. Quando tudo está efervescendo. Quando todas as possibilidades são infinitas. E isso, em geral, está no primeiro capítulo. Figura feliz é do escritor escrevendo um primeiro capítulo. Acho que todo escritor devia tirar uma selfie com o monitor do computador atrás, ele rindo para o primeiro capítulo.

Desdobramentos
Depois chega o segundo parágrafo, e agora, o quê que faço?. É preciso deixar espaço para a invenção e para o prazer da criação. Como é isso? Eu sei o que vai acontecer no décimo capítulo, como vou escrevê-lo? Aí é que está a criação. Eu sei que minha personagem precisa ir deste lado a outro do rio, mas vai nadando, de barco, de canoa? Isso se estabelece no momento em que se está escrevendo. A questão toda é estabelecer, antes de tudo, antes de tudo mesmo, uma grande personagem. A partir daí, digamos, a personagem vai “criar o romance”. A personagem bem constituída dá impressão ao leitor que é responsável por tudo que acontece, inclusive erupção de vulcão, uma tempestade, tudo passa para o leitor como algo natural da simples presença da personagem. É claro que eu devo saber como vai terminar, porque senão não sei como começar. Se vou deixar para o improviso, há uma possibilidade muito grande de dar tudo errado, com a certeza que vou ter de reescrever muito. Porque, de repente, uma coisa não fecha com a outra.

Armadilhas
A concretização é sempre muito inferior à ideia. Porque se tem a ideia, que é grandiosa, mas tem um momento em que vou ter a personagem, vou ter que pensar a estrutura, vou ter que pensar num tempo, num espaço. Começa-se a dar limites ao sonho, e aquilo se transforma num livro com código de barras que é vendido nas livrarias. Pessoas que escrevem ficção precisam estar preparadas para esse tipo de conduta autoral e prevenidas para as armadilhas que a vida literária apresenta. E não se deixar abater por isso, porque senão depois vai ficar muito mal e pode até abandonar a literatura — ou a própria vida, às vezes.

Método
O horário matutino é o que gosto mais para escrever. Ultimamente, porém, tenho dormido um pouquinho mais. Também, por outro lado, agora os médicos me obrigam a caminhar, fazer passatempo de hamster, aquelas coisas. Então ultimamente tenho escrito mais no final da tarde, início da noite. É um horário em que me sinto bem. Ainda não estou com sono, e continuo estimulado pelas aulas que dei durante o dia, pelos trabalhos que orientei. Mas sei que tem alguns autores que escrevem a qualquer hora. O Moacyr Scliar era um desses. Embora tivesse um método, eu o vi escrevendo nos lugares mais improváveis, anotando em guardanapo de restaurante, essas coisas. Ele escrevia muito, era uma coisa espantosa.

Ex-alunos
De alguns alunos, me dei logo conta do talento. Outros, não. Muitos, durante a oficina, foram bastante discretos, eram pessoas que tinham textos bons, mas não eram textos excepcionais. Isso aconteceu com o Amilcar Bettega, por exemplo, que ganhou o prêmio Portugal Telecom com Os lados do círculo. Era muito discreto. Outros eu percebi algo. A Luisa Geisler, por exemplo. Era uma menina que sentava no fundo da sala, muito quieta. Fazia textos que me impressionavam. O Michel Laub também fazia textos muito bons, mas de fato ele veio se revelando no decorrer da oficina, e quando chegou no final, eu disse: “É um escritor”. Tem várias coisas que eu trabalho com meus alunos que estão nos livros do Michel, que têm uma estrutura que chamo de rondó. Isso é da música. O rondó, na linguagem musical do século XVIII e XIX, é o tema. Assim que o Michel trabalha. Não é problema nenhum. Ele usa essa estrutura sempre. Os leitores não percebem. E nem devem perceber. Ninguém percebe que Haydn, por exemplo, escreveu mais de cem sinfonias com a mesma estrutura, e são completamente diferentes umas das outras. Então não é problema de seguir um modelo.

Outros nomes
Outro que eu considerava que tinha um talento bom era o Paulo Scott. Assim como a Carol Bensimon. Já a Letícia Wierzchowski foi um caso muito interessante. Quando entrou para a oficina, cada um se apresentou e tal, aquele ritualzinho, e ela disse que trabalhava com moda. Todo mundo olhou assustado. Aí eu disse: “Acho que não tá dando muito certo, não?” Ela falou que tinha uma microempresa com uma cunhada e, como a não havia muito trabalho, ficava lendo. Quando terminou a oficina, tinha cinco romances. Estava escrevendo furiosamente. Aí, desses livros, publicou O anjo no meio de nós. Depois fez uma carreira importante, que foi valorizada por A casa das sete mulheres. Então eu disse: “Olha, Letícia, vou te dar uma má notícia. Tu não vai se livrar nunca da maldição d’A casa das sete mulheres”. Era a época em que estava passando a minissérie na TV Globo. E, de fato, ela escreveu muitos livros melhores do que esse, muito mais maduros, e no entanto as pessoas, quando conversam com ela, só falam n’A casa das sete mulheres. Mas tenho experiências também com pessoas extremamente talentosas, absolutamente brilhantes, jovens, que depois abandonaram completamente a literatura.

Sucesso
Acho que hoje estamos incidindo em um sistema bastante problemático, que é o livro da estação, do momento. Então tem alguns editores — inclusive uma grande editora brasileira faz isso — que publicam as primeiras edições de um autor e depois o esquecem. Mas vendeu a primeira edição! Sim, mas não vamos reimprimir mais. Aí a pessoa fica incomodando e vai para outra editora. Lá nos Estados Unidos funciona assim, o livro da estação, o autor da estação. Aquela pessoa escreve um livro que possivelmente é transformado num filme, faz sucesso, dá entrevista sobre qualquer assunto, principalmente sobre o que não entende, é celebrado, vai a um monte de festas, etc. No segundo livro a crítica já acha alguns problemas e no terceiro acabou o autor. Isso é dramático e cruel. 

Conselhos
Eu sempre digo para os meus alunos: não caíam nessa. Não fiquem extasiados com um primeiro livro que teve um retumbante sucesso. Isso pode não acontecer no segundo, embora o segundo possa ser melhor que o primeiro. Uma carreira se constrói com o tempo. Como dizia o Alejo Carpentier: “A carreira do escritor é a mais longa para ser construída. No entanto, quando se chega lá, o leitor nos acompanha em todas as nossas loucuras”. Acho isso magnífico. A pessoa tem que pensar em termos de carreira, e não na explosão de um livro. Carreira mesmo. Um segundo livro melhor que o primeiro, um terceiro melhor que os dois anteriores. Pelo menos tentar isso. E é o que todo mundo quer, não é verdade? Todo mundo quer escrever uma obra grandiosa. E como aquela obra grandiosa não acontece, então se escreve um novo livro, para ver se surge enfim a grande obra que vai mudar o destino do Ocidente, da literatura do Ocidente — e talvez do Oriente junto.

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Novos tempos
O Rio Grande do Sul não é mais uma questão a ser enfrentada atualmente pelos escritores de lá. O autores podem situar suas tramas em Porto Alegre, como o Daniel Galera faz eventualmente, usando até o “porto alegrês”, com umas combinações linguísticas e sintáticas bastante curiosas, mas, em geral, são pessoas que podem situar suas tramas em qualquer lugar do mundo. Até a minha geração, a história do Rio Grande, o passado do Rio Grande, era uma questão a ser enfrentada. Nos escritores anteriores, era algo a ser exaltado. Era uma questão que tinha que ser tratada. Mas isso mudou, mudou muito mesmo. 

Legado
Quero ser útil dentro daquilo eu faço para a geração em que vivo. Quer dizer, quero colaborar para que essa geração deixe um legado melhor do que eu recebi. E a minha maneira de ser útil à minha geração é com minha literatura. Com as minhas aulas. Eu coloquei aqui no mesmo plano, mas ultimamente tenho pensado que, se ficar alguma coisa de relevante de mim, vão ser as minhas aulas. Mais do que a minha literatura. Mas eu não vejo isso com drama nem com tristeza, porque essa é uma maneira de ser útil.