Um Escritor na Biblioteca: Edney Silvestre

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Uma das maiores revelações da literatura brasileira nos últimos anos, o autor de Se eu fechar os olhos agora, romance que arrebatou crítica e público, fala sobre sua tardia estreia na ficção e sua formação intelectual


Âncora do programa Globo News Literatura, Edney Silvestre, há alguns anos, vem acompanhando todos os movimentos da indústria do livro no Brasil. Já entrevistou alguns dos nomes mais destacados da cena literária brasileira, de Cristovão Tezza a Felipe Pena, de Bernardo Carvalho a Paulo Coelho. Mas, a partir de 2010, a situação, e a condição de Silvestre, se modificou. Seu livro de estreia, Se eu fechar os olhos agora, venceu o prêmio Jabuti, na categoria romance, e o Prêmio São Paulo, na categoria estreante. O livro foi publicado em Portugal, na Sérvia e na Holanda. Em 2013, também estará disponível para os leitores da França, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália. Silvestre falou sobre esse livro, passaporte para o universo literário, em uma edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. No evento, que teve a medição do jornalista Yuri Al'Hanati, da Gazeta do Povo, Silvestre também falou sobre seu segundo romance, A felicidade é fácil (2011), e contou sobre o início de sua experiência de leitor, na cidade onde nasceu, Valença, no Rio de Janeiro, em 1950. Também revelou como superou as dificuldades da dislexia e do raquitismo, além de falar sobre música, a íntima relação entre jornalismo e literatura e alguns autores que admira, entre os quais Jack London, Joseph Conrad e Thomas Mann. Em um dos momentos mais intensos do encontro, Silvestre disse que foi após um encontro com José Saramago que ele decidiu, de fato, se dedicar à literatura. “O encontro com o Saramago foi inspirador. Comecei a perceber que vários autores haviam estreado tardiamente. O Saramago foi um desses casos. Me dei conta que, o que eu fazia, ninguém mais fazia. Não era melhor nem pior: era uma história que eu contava de uma maneira que nenhuma outra pessoa poderia fazer”, confessou, emocionado. Ele assumiu a sua paixão por teatro, falando das peças que escreveu e as que está escrevendo. A seguir, os principais momentos do bate-papo.

Pouca realidade
Não aceito o fato de um leitor abrir um livro no Brasil e não ter ideia de em que época aquele enredo se passa. Os fatos alteram a vida das pessoas. No romance A felicidade é fácil, há um contexto cruel: o Plano Collor, que destruiu milhões de vidas no Brasil. Quando lancei esse romance, muita gente disse que nenhum outro livro, no país, situa aquele contexto, nem mesmo o momento das Diretas-Já, que entra no livro por meio de um flashback. Eu não acreditava, afinal, teria de haver outro livro de ficção que incorporasse esses episódios recentes da realidade.

A descoberta da leitura
Quando eu tinha uns 5 anos, tive raquitismo. Naquele contexto, não podia andar e me traziam livros. Ainda não sabia ler, mas comecei a distinguir letras e palavras. Não sei quando, exatamente, comecei a ler. Depois, voltei a andar e descobri a Biblioteca Pública da cidade onde nasci, Valença, no Rio de Janeiro. Eu frequenta, emprestava livros sem distinguir o que deveria ler. Não havia orientação. Na escola, tive uma professora que dizia que é importante ler. Eu gostava muito de história em quadrinho.

A capa é uma isca
Eu costumava escolher os livros pelas capas. Uma vez, peguei um que, na capa, tinha um lobo no Alaska e o nome da obra era Caninos brancos. Li e fiquei embasbacado com o livro. Guardei o nome do escritor: Jack London. Mas não tinha ideia de que se tratava de um grande escritor, apenas era o autor de uma obra da qual eu tinha gostado muito. Pouco depois, encontrei uma adaptação de Lord Jim, de um autor chamado Joseph Conrad. Achei extraordinário, mas também não sabia que era um gigante das letras. Eu me sentia muito esquisito em Valença, devido aos interesses, principalmente leitura, e por ser péssimo nos esportes, o que me separava da maioria.

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Tonio Kröger

Depois de um tempo, descobri por acaso, na Biblioteca de Valença, um livro sobre um rapaz que vivia em uma cidade do interior que se sentia exatamente como eu. Até então, achava que eu era o único desajustado, que tinha de mudar e agir de outra maneira. Mas não. Graças ao livro Tonio Kröger, do Thomas Mann, me dei conta de que há pessoas que se diferem das outras.

O encontro marcado
Quando tinha 15 anos, tive o grande prazer de descobrir O encontro marcado, do Fernando Sabino. Foi uma ótima descoberta. Infelizmente, ao longo do tempo a Biblioteca Pública de Valença foi desmantelada, os livros foram colocados em caixas e distribuídos por diversas repartições da prefeitura da cidade. Em 2010, venci o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante, e recebi um convite da Secretaria da Cultura de São Paulo para visitar cidades do interior de São Paulo que possuem bibliotecas. Foi extraordinário. Fiquei com inveja e com pena, porque, em Valença, deveria ter biblioteca, mas a cidade perdeu isso.

Leituras e novas descobertas

Do Jack London, do Joseph Conrad e do Thomas Mann, que conheci quando comecei a ler, gosto até hoje. Passei 12 anos fora do Brasil e, quando voltei, em 2002, tive três descobertas, que me surpreenderam: Luiz Ruffato, Bernardo Carvalho e Milton Hatoum. Eles me apresentaram um outro Brasil por meio da ficção.

Um leitor em Nova York
Quando me mudei para os Estados Unidos, em 1990, levei três livros: O encontro marcado, do Fernando Sabino, Tonio Kröger, do Thomas Mann, e um roteiro em francês do filme Asas do desejo, do Wim Wenders. Lá, comprei muito livro. Em Nova York, tem uma livraria que comercializa livros novíssimos, que os resenhistas leem e, então, repassam. Lembro de ter saído de lá com duas sacolas de livros pesadas, e eu gastei apenas 14 dólares. Me senti um milionário.

Biblioteca pessoal
Tenho o maior cuidado com a minha biblioteca. Meus livros estão desorganizados. Consegui ordenar apenas os volumes de literatura brasileira contemporânea. Tem muito livro de teatro na minha biblioteca. Gosto de teatro, de ler obras de teatro. O teatro teve muita importância na minha formação. É um prazer. De vez em quando, vou lá e pego algum título. Recentemente, perdi um amigo querido, algo inesperado. Quando soube da morte dele, fui direto na estante de poesia e peguei um exemplar do Sentimento do mundo, do Drummond, e encontrei uma frase que diz que a vida é tênue. Vou, inclusive, usar a frase como epígrafe do meu próximo romance. O importante é que o livro me confortou. A literatura sempre me ampara em situações adversas.

Um tradutor na imprensa
Cheguei ao jornalismo por ser tradutor. Traduzia porque precisava me sustentar. No começo, eu traduzia histórias em quadrinho. Esse trabalho me proporcionou rapidez para reconhecer e traduzir diálogos. Afinal, as histórias em quadrinhos são, basicamente, diálogos que fazem o enredo avançar. Hoje, as histórias em quadrinhos estão mais sofisticadas, mas às vezes há páginas e páginas sem texto, com o mínimo de texto.

Realidade e ficção
No Brasil, a ficção é mais comportada do que a realidade. No que diz respeito a meu primeiro livro, Se eu fechar os os olhos agora, o enredo surgiu de uma nostalgia de pessoas que eu tinha perdido, e também a partir de uma história que me angustiava, de uma mulher brutalmente assassinada e mutilada, ao contrário do enredo do segundo romance, A felicidade é fácil, totalmente inspirado em fatos reais. Em 2003, 2004, quando estourou o escândalo do mensalão, comecei a me dar conta de que eu iria morrer sem ver o país que eu sonhava. Não foi por esse país que meus amigos foram torturados, desapareceram, morreram. Tinha a censura, inclusive, dentro de jornais e revistas. Passamos por tudo isso para chegar ao mensalão?

Na ilha com Saramago
Antes de escrever meus romances, fui à ilha de Lanzarote para entrevistar o José Saramago. Eu já admirava o Saramago. Mas, durante a entrevista, ele me arrebatou. Disse que não tinha cultura, que estudou até os 16 anos e se tornou mecânico. O Saramago consertava carros e, então, modestamente, apresentou o seu primeiro romance a um editor. O sujeito não só modificou o que ele tinha escrito, como trocou o título, não lembro qual era o original, por um outro, que o Saramago tinha horror. O Saramago parou de escrever, e só retomou a escrita depois dos 50 anos, quando ele já estava desempregado, após a Revolução dos Cravos.

O efeito Saramago
O encontro com o Saramago foi inspirador. Comecei a perceber que vários autores haviam estreado tardiamente. O Saramago foi um desses casos. Me dei conta que, o que eu fazia, ninguém mais fazia. Não era melhor nem pior: era uma história que eu contava de uma maneira que nenhuma outra pessoa poderia fazer. Então, procurei a Luciana Vilas-Boas, então editora da Record, por onde estreei. Hoje, a Luciana é a minha agente literária.

Escrever para saber
Somente após escrever Se eu fechar os olhos agora que comecei a perceber o que o romance queria ou poderia dizer. Não sei se quem escreve ficção sabe o que está escrevendo enquanto escreve. Vou usar uma frase do Fernando Sabino que diz, mais ou menos, o seguinte: “Escrevo para saber porque estou escrevendo”.

Trilhas idiossincráticas
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Meu pai era dono de um armazém e também era músico, de modo que lá em casa ouvia-se muita música. Outro dia, comecei a cantarolar uma canção que eu escutava na infância. Um trecho não saía da minha cabeça: “A saudade vem chegando/ A tristeza me acompanha!/ Só porque... Só porque/ O meu amor morreu na virada da montanha”. Cantarolava e as pessoas diziam que eu estava inventando. A canção existe. Chama-se “Na Virada da Montanha”, de autoria do Francisco Alves, popularizada pelo Lamartine Babo. Mas demorei para descobrir o nome. Hoje é fácil encontrar uma canção, basta digitar um trecho da letra no Google. Mas no passado, a situação era muito diferente. Bom, a música sempre me acompanhou.


Jornalismo e literatura
Eu trabalho todo dia, mas não consigo escrever ficção na redação. No que diz respeito à literatura, aprendi um truque. Se eu me deitar, os personagens chegam. Eles vão, simplesmente, chegando. No mais, escrevo continuamente. Escrevi uma peça de teatro, tem duas outras peças que estou construindo, mais um romance, um livro de contos e uma outra historieta que, acredito, pode virar um roteiro.

Cristiane Torloni
Escrevia uma peça chamada Boa noite a todos, que é um monólogo, que chamou a atenção da Cristiane Torloni. A personagem tem um passado intenso, amou, viveu, mas chega um momento em que, com idade um tanto avançada, ela perde tudo e, durante a peça, também perde a memória. Então, ela se perde. E perde o que é mais precioso no indivíduo, que é o próprio eu. Perde, ainda, o controle das funções do corpo. Mas também tem uma outra peça, com quatro personagens, mas não vou contar nada, nem o título. Gosto de teatro.

A voz possível
Tenho a impressão de que, pelo menos no meu caso, cada história exige um tipo de narração. Quer dizer, uma história surge e pode ser traduzido por meio de um conto. Outra história surge e me dou conta de que é uma peça. Se eu fechar os olhos agora tem um tom mais nostálgico, com momentos longos de introspecção dos personagens, músicas dos personagens dentro de si mesmos. A felicidade é fácil é um texto seco, com estilo nervoso e diálogos curtos. São vozes diferentes para tramas e necessidades diferentes.

A intriga do Jabuti
Em 2010, ano em que concorri ao Prêmio Jabuti, concorriam, entre outros, Chico Buarque, com Leite derramado, e Luis Fernando Verissimo, com Os espiões. Ganhei o prêmio de melhor romance com Se eu fechar os olhos agora, o Chico ficou em segundo e o Luis Fernando abocanhou o terceiro lugar. No dia da entrega do prêmio, eles também entregam o prêmio de livro do ano e concederam essa premiação ao Chico Buarque, que havia ficado em segundo lugar na categoria romance. Não é segredo para ninguém que eu fiquei chocado com a situação. Não sabia que isso poderia acontecer. Tinha a impressão de que o melhor romance, o melhor livro de contos ou de poesia receberia o prêmio de livro do ano, e nunca que o segundo colocado na categoria romance viesse a conquistar o melhor do ano.

Fora de controle
A polêmica sobre o Prêmio Jabuti saiu completamente fora do meu controle. Não procurei a imprensa. Mas as opiniões de muitas pessoas se tornaram públicas. Foi realizado até um abaixo-assinado pedindo para o Chico Buarque devolver o prêmio de livro do ano. Fiquei constrangido. Até porque, para a minha geração, há dois compositores de que estão acima do bem e do mal, o Caetano Veloso e o Chico Buarque. Então, me vi em uma situação em que pessoas que eu conhecia e que são amigas do Chico Buarque pararam de falar comigo. Sou jornalista, nunca me meti em uma situação similar, como se fosse um Fla-Flu ou um Atle-Tiba. Mas a polêmica jogou ainda mais luzes sobre o Prêmio Jabuti, uma premiação relevante, que existe há mais de meio século. Agora, se me perguntam se a polêmica foi boa ou ruim, digo que a situação foi, acima de tudo, constrangedora.

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Paulo Francis

Aprendi muito com o Paulo Francis, um sujeito que adorava teatro. Ia ao teatro com ele. O Paulo Francis era quase cego. Íamos a peças, o Francis, a mulher dele e eu, para sentar na primeira ou segunda fila. Achava tocante que ele tivesse paixão por teatro. Ele comentava e sabia o que estava dizendo. E, além do mais, ele era muito generoso com os jovens.

Paulo Coelho x Ulysses
Em 2012, entrevistei o Paulo Coelho, um sujeito brilhante e muito esperto. Ele sabe provocar. O James Joyce é estabelecido e o Paulo Coelho já vendeu 150 milhões de livros. Então, o Paulo Coelho diz que o “Joyce não vale um tweet”. Veja, há certas coisas que não são pra serem levadas a sério. O James Joyce é um autor que mudou uma face da literatura contemporânea. Não é um dos meus autores favoritos, mas vale um tweet.

Globo News Literatura
Esse programa, na realidade, começou com o Pedro Bial e tinha uma única entrevista. Seguimos com o formato durante algum tempo. Antes, editava-se menos no Brasil. Com o passar do tempo, o mercado editorial cresceu. Não seria possível dedicar todo um programa para um único autor. Então, tivemos de modificar o formato. Não gravamos mais dentro de um mesmo estúdio. Agora, há a possibilidade de viajar. Fui ao Recife para entrevistar o Raimundo Carrero, da mesma maneira que visitei Curitiba para conversar com o Cristovão Tezza. Em 2012, o Claufe Rodrigues, repórter que trabalha comigo, esteve aqui na capital paranaense para produzir uma matéria sobre revistas e jornais literários. Viajamos, e isso tem custos. O programa não tem muita verba, e, por isso, por enquanto, conseguimos colocar no ar um programa inédito por semana. Mas a Globo News faz algumas reprises do programa. Mas estamos conseguindo incluir várias possibilidades. Encerramos apresentado algum livro de arte ou uma obra literária que dialoga com o universo das visuais.

Dislexia
Eu era tímido, demais, porque não conseguia pronunciar direito as palavras. Meu pai era dono de armazém e minha mãe havia sido tecelã, era dona de casa e ajudava meu pai no comércio. Não havia diagnóstico para o problema e, se houvesse, não teríamos dinheiro para procurar, por exemplo, um fonoaudiólogo. Meu pai me levou para uma rádio de Valença. Ele era compositor e eu cantava. Parece muito com a história dos gagos que, quando representam, não gaguejam. Sabe por quê? Porque quando você tem um texto a dizer, não há dúvidas a respeito do que será enunciado. Eu era muito tímido. Tinha vergonha de tudo. Não conseguia falar, e não falava. Uma criança que fala tudo errado aos 6 anos é considerada por todos os colegas como uma idiota. Não lembro quando houve a mudança, mas superei o problema. No entanto, ainda hoje tenho dificuldade com palavras de duas sílabas, e também faço alguma confusão com números.

Cena contemporânea
Paraná, Pernambuco e Minas Gerais são Estados pujantes no que diz respeito à produção literária. Aqui, no Paraná, vocês tem o Cristovão Tezza, um grande escritor. Mas vou citar um outro livro, aliás, uma pentalogia, na qual o mais recente título se chama Domingos sem Deus. É um projeto belíssimo do Luiz Ruffato, mineiro radicado em São Paulo, que ajuda tanto a entender as transformações do nosso país. Fiquei comovido com a série, batizada Inferno provisório. O primeiro livro do projeto, Mamma, son tanto felice, me tocou por eu conhecer o assunto. Diz respeito à imigração italiana, e nasci em uma cidade onde também houve migração da Itália, principalmente de imigrantes pobres. Os italianos que a gente vê na televisão são felizes, cantam, fazem macarrão e lembram aquela atriz paranaense muito bonita, a Maria Fernanda Cândido. Mas o que vi na minha infância foi uma miséria muito grande. E Mamma, son tanto felice é um livro que trata disso. O Rufatto é um autor que se ancora na realidade brasileira para construir a sua literatura. E ele também tem um livro muito engraçada, Estive em Lisboa e lembrei de você, todo narrado na voz de uma mineirinho que vai para Portugal em busca de trabalho. A recriação que o Ruffato faz da linguagem oral para a linguagem escrita é um primor.