Um Escritor na Biblioteca | Affonso Romano de Sant'Anna

 

Ele é um dos intelectuais mais atuantes do país. Escreve crônicas para jornais e revistas há mais de meio século. É um dos principais poetas brasileiros, autor de dezenas de livros, entre os quais Que país é este? e Textamentos. Estudou a obra de Carlos Drummond de Andrade, o que resultou no livro Drummond: o gauche no tempo. O seu ensaio sobre o Barroco — Barroco: do quadrado à elipse — joga luzes sobre a realidade nacional.

Affonso Romano de Sant’Anna, mineiro nascido em Juiz de Fora em 1937, foi o segundo convidado de 2014 do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. No palco do Auditório Paul Garfunkel, ele falou a respeito de sua trajetória no universo das ideias. Da primeira biblioteca, a de seu pai, até presidir a Fundação Biblioteca Nacional, entre 1990 e 1996, assumiu a sua paixão pela leitura: “Não saberia viver sem essa coisa que é o livro, seja em papel ou digital.”
 
Lina Faria

Comentou, em detalhes, sobre o seu processo de criação, seja na crônica ou por meio da poesia: “Se eu não coloco uma emoção em palavra, não sei se aquela emoção existe. A emoção só passa a existir na hora em que encontro uma fórmula escrita que traduza aquela emoção.” Em meio ao bate-papo, houve espaço para reafirmar a sua militância por mais esclarecimento nas artes visuais, cenário atualmente nebuloso e refém de, para ele, um discurso que precisa ser discutido — o intelectual já escreveu dois livros sobre o tema, Desconstruir Duchamp e O enigma vazio. O futuro das bibliotecas, a necessidade de promover uma campanha para que os jovens troquem o videogame pela leitura e o dilema de aceitar ou não ser o sucessor de Carlos Drummond de Andrade também estão presentes no bate-papo transcrito nesta edição do Cândido.
 

PRIMEIRAS BIBLIOTECAS

A primeira biblioteca que conheci foi a do meu pai. Ele era uma pessoa estranha. Foi professor de esperanto, uma língua internacional criada por um polonês com 16 regras fixas. Enfim, meu pai tinha uma pequena biblioteca, com poucos livros. Eu só iria entrar em uma biblioteca, de fato, muito tempo depois. Inclusive, aconteceu de eu dirigir a Fundação Biblioteca Nacional, que hoje tem 9 milhões de volumes. De modo que biblioteca fazem parte da minha vida. Não saberia viver sem essa coisa que é o livro, seja em papel ou digital.
 

COLEÇÃO PARTICULAR

Lá em casa acontece uma coisa que também deve acontecer na casa de vocês. Volta e meia chega um operário ou um jornalista, o que é mais grave, e faz a pergunta: “O senhor já leu todos esses livros?”. É incrível, porque fazem sempre a mesma pergunta. Dependendo do dia, respondo: “É, eu já li. Esses aí e tem mais três cômodos de uma casa em Friburgo que também estão cheios de livros. E tem ainda os que eu não tenho, mas li em bibliotecas.”
 

 

O LEITOR ENQUANTO JOVEM

Comecei a ler, de fato, no colégio, onde havia grêmios literários, os quais eu frequentava. Lá, o aluno aprendia a fazer discurso, a falar em público e a escrever. Com 15, 16 anos, fazíamos composições, poemas. Você se apresentava e um professor fazia a crítica, o que é interessante, não é mesmo? Aprender a ouvir as críticas. Lembro que um dia fiquei um pouco envaidecido, e ao mesmo tempo chateado, porque um professor perguntou de onde eu tinha tirado o texto que havia apresentado. Acabei entendendo que ele estava fazendo um elogio de cabeça para baixo, por achar que o texto não era tão ruim assim. Desde então, segui pelo mundo afora lendo. E escrevendo.
 

O INÍCIO DA CRIAÇÃO

Quanto tinha 16 anos, resolvi escrever um artigo e levei até um jornal. Publicaram o texto e foi uma catástrofe na minha vida. Porque acreditei que o que eu escrevia podia ser publicado. Eu pegava o jornal, olhava meu nome impresso e dizia: “Que coisa maravilhosa!” Esse narcisismo tem a ver com a juventude, não é mesmo? Continuei escrevendo, mas tem um detalhe. Em casa éramos seis irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Só eu virei escritor. Então, tem algo aí, que são as diferenças individuais. Pode, de repente, uma casa ter cinco músicos, pelas mais diversas razões. Mas, lá em casa, só eu escolhi a palavra como instrumento de contato com a realidade.
 

O INEXPLICÁVEL

Se eu não coloco uma emoção em palavra, não sei se aquela emoção existe. A emoção só passa a existir na hora em que encontro uma fórmula escrita que traduza aquele sentimento. Quem escreve, ao finalizar o texto, quem realiza um concerto ou um bailarino quando executa uma dança perfeita no palco sabe: alguma coisa acontece dentro do artista em termos de realização. Um gesto artístico é um gesto de realização pessoal, é um desafio, mas também é algo espiritual difícil de descrever.
 

 

Lina Faria

SUBSTITUTO DE DRUMMOND

Então, o Wilson Martins escreveu que eu seria o sucessor do Carlos Drummond de Andrade. Sabe que a afirmação me criou inúmeros problemas? Eu não sabia que tinha tanta gente no Brasil que almejava ser o próximo Carlos Drummond de Andrade. Passei 30 anos explicando que não sou sucessor de ninguém. Mal consigo suceder a mim mesmo, imagina uma outra pessoa! Na época, o jornalista Mário Sérgio Conti ficou irritado e comentou, nas páginas da revista Veja que, se fosse para falar em sucessor de Drummond, osucessor poderia ser tanto o Pelé como eu porque, na opinião do Conti, o Pelé e eu fazíamos poemas ruins. Que coisa. Coitado do Pelé!
 

DOIS MINEIROS

Há algumas coincidências entre o Drummond e eu. Ambos nascemos em Minas Gerais. Estudei muito a obra dele e a tese que escrevi a respeito se transformou no livro Drummond: o gauche no tempo, que rendeu cinco prêmios nacionais e está traduzida em outros cinco idiomas. Desfilei na Mangueira quando ele foi tema do samba-enredo. Quando ele se aposentou como cronista do Jornal do Brasil, me chamaram para substituí-lo. Fora isso, somos totalmente diferentes. Sou extrovertido e conto piadas, já o Drummond era reservado. Um dia, recebi uma ligação do Jornal do Brasil: era o editor do “Caderno B”, o jornalista Zuenir Ventura. Ele me pediu um texto sobre a vida e o legado do Drummond, para ser publicado quando o poeta morresse. Aceitei a encomenda, mas fiquei com peso na consciência. Como escrever o necrológio de uma pessoa que ainda estava viva? Escrevi o texto, mas o Drummond não morreu. Não só não morreu, como o encontrei, dias depois, na rua. Até me perguntei se deveria mostrar a ele o necrológio que fiz, mas não mostrei. Deveria ter mostrado. Afinal, não é todo dia que você pode ler o seu necrológio feito por uma pessoa que o admira. Teria sido uma experiência sensacional.
 

UM PÉ NA IMPRENSA

Comecei a trabalhar em jornal muito cedo, ainda em Juiz de Fora. Depois, atuei nos jornais de Belo Horizonte e escrevi em alguns diários do Rio de Janeiro e de São Paulo. Durante dois anos, na década de 1970, fiz crítica literária na revista Veja. Vou, inclusive, republicar aquelas críticas em livro, porque a experiência de ser crítico é muito dolorosa e difícil. Afinal, o crítico precisa escrever o que sente sobre a obra de pessoas que ainda estão vivas e que acreditam que os seus livros são o sal da terra.
 

CRONISTA CONSCIENTE

Pensei em preparar um livro para revelar o que penso a respeito da crônica. Tenho uma ideia sobre literatura que é algo um tanto pretensioso. Quando você se propõe a fazer uma coisa, primeiramente, é necessário se inteirar do que está acontecendo. Comecei a escrever nos anos 1950 e tive que me inteirar sobre o que estava acontecendo na literatura brasileira, estudá-la e, evidentemente, eu estava prestando atenção na crônica, apesar de, naquele contexto, ainda não atuar sistematicamente como cronista. Pois bem, a crônica passou por modificações imensas. Há poucos meses, fiz uma conferência sobre Rubem Braga, que é o ápice da crônica no Brasil, o inventor da crônica moderna no país, e para realizar a conferência, tive que rever uma série de questões sobre o gênero.
 

ESTUDAR O GÊNERO

Outro dia, a Folha de S.Paulo divulgou que tem quase 200 cronistas. Curioso, não? Hoje há uma confusão a respeito do que é cronista, o que é comentarista, o que é editorialista. Há uma série de categorias que você pode diferenciar. A crônica, com o passar do tempo, aliciou pessoas de outros gêneros e foi ficando esmaecida, perdeu um pouco de suas características próprias. Isso é um assunto para ser estudado pelos acadêmicos. A universidade tem que descobrir a crônica. Afinal, é um gênero curioso, muito específico e deve ser estudada com certo método.
 

CRÔNICA E POESIA

Um dia, estava em meu escritório já preparado para escrever uma crônica e, como todo cronista, tinha uma série de assuntos que tinha tomado nota. Ia começar a escrever quando Rubem Braga me telefonou contando que o Hélio Pellegrino tinha acabado de morrer. Você está sentado para escrever uma crônica profissionalmente e recebe a notícia de um amigo informando que outro grande amigo morreu. O que fazer? Escreve uma crônica fria ou vai reorganizar suas coisas para falar sobre o acontecido? Dias depois, encontro na rua Fernando Sabino, e ele comentou que tinha lido o meu “poema” sobre a morte do Hélio Pellegrino. Sim, o Sabino, curiosamente, chamou a crônica de poema. Fiquei com aquilo na cabeça e fui reler a crônica. Decidi fazer uma experiência. Peguei a crônica, coloquei as frases em versos e a publiquei em um livro de poesias. A crônica havia surgido dentro de um momento de emoção, tensão, em forma de poesia. Saiu um
Lina Faria
a crônica, mas a rigor era um texto de força poética. Então, essa relação entre crônica e poesia precisa e deve ser estudada formalmente.
 

BIBLIOTECA NACIONAL

Eu havia recusado um cargo na Funarte, até mesmo uma indicação para ser o ministro da Cultura no governo Collor e olhe que não sou e nunca fui de paparicar os poderosos. De repente, o cargode presidente da Fundação Biblioteca Nacional caiu no meu colo. Quando retornei da cerimônia de posse, ainda em Brasília, minha esposa, a escritora Marina Colasanti, me chamou a atenção para um filme que passava na tela de uma televisão no aeroporto. Era sobre uns atletas, fortes, que levantavam pesos imensos. Falei: “Olhe, Marina, que coisa maluca. Levantar um peso desses, já pensou?” A Marina respondeu: “Pois é. E você foi aceitar a Biblioteca Nacional, né?” Era parecido e eu não sabia. Escrevi um livro, chamado Ler o mundo, onde conto sobre a minha experiência, entre 1990 e 1996, à frente da Fundação Biblioteca Nacional.
 

RODA QUADRADA

Foi maravilhoso o período em que estive na Fundação Biblioteca Nacional. Conheci bibliotecas do mundo inteiro, convivi com diretores de bibliotecas e, acima de tudo, compreendi o funcionamento do serviço público brasileiro. Hoje, quando leio jornais, tenho um certo distanciamento. Afinal, não há nada mais fácil do que falar mal do governo. É um esporte internacional. Você pode ir a qualquer lugar do mundo que o motorista de táxi começa a falar mal do governo e, em geral, o taxista tem razão. Acontece que, quando se está em um cargo público, você descobre que, na administração pública, a roda é quadrada, e a carruagem tem que andar. É aí que o bicho pega. Apesar da adversidade, de uma inflação galopante, eu e minha equipe conseguimos criar o Sistema Nacional de Bibliotecas e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), que foi uma revolução em termos de leitura no país.
 

O ENIGMA VAZIO

Você é formado, saiu da universidade, voltou, fez pós-graduação, mestrado, doutorado, você viaja, frequenta museus e, então, vai a uma exposição em uma bienal e não entende nada. Você não tem que entender sempre, mas nas bienais você não entende nada. Surge uma distonia entre a obra e o espectador. Comecei a estudar esse problema com mais atenção e escrevi dois livros sobre o assunto, Desconstruir Duchamp e O enigma vazio. Estou escrevendo um ensaio sobre a ideia de insignificância. Você vê certas coisas e percebe que elas não significam nada. Teve um cidadão, que veio da Inglaterra, pago pelo governo inglês, foi a São Paulo e a exposição que ele apresentou era a seguinte: um copo d’água pela metade, em cima de uma prateleira. Ele, o cidadão inglês, dizia que aquele copo d’água era um carvalho. Sim. O sujeito dizia que o copo d’água era um carvalho. As pessoas que visitavam a exposição tinham que olhar aquele copo d’água como se aquilo fosse um carvalho. É algo alucinado, não é? E, ao redor disso, tem toda uma teorização maravilhosa, incrível. Essa teorização, no entanto, pode ser decomposta e analisada. As pessoas não analisam as teorizações feitas a respeito de certos objetos produzidos pela arte contemporânea.
 

CARÊNCIA DE BIBLIOTECAS

Se fôssemos construir bibliotecas no país inteiro, que deveriam ter sido construídas há duzentos anos, gastaríamos um dinheiro incrível. Mas isso não bastaria porque, além da biblioteca, da estrutura física, teríamos que refazer a cabeça dos bibliotecários. Não dá para construir bibliotecas nesse país, nos bairros, no interior, na Amazônia, no Nordeste, não dá, não dá mais. O investimento é inviável. Mas temos a internet. A pessoa que mora na Amazônia, no interior do Paraná, onde for, tem que botar na cabeça que no seu celular tem, de graça, os maiores e melhores livros domundo. Todo mundo tem uma biblioteca maravilhosa nas próprias mãos. Você pode estar na margem do Rio Negro e ler um clássico russo de graça. Hoje só não lê quem não quer. Anteriormente, você tinha essa desculpa. Ah, não tem biblioteca na minha cidade, o livro é caro, etc. Hoje não. O acesso ao livro é de graça.
 

NOVOS LEITORES

Basta conferir as estatísticas. Nos Estados Unidos, os pedagogos dizem que os alunos não estão mais sabendo escrever. Reportagens mostram que na Itália, na França, na Espanha, em qualquer país, os professores e os comunicadores afirmam que os jovens não sabem mais escrever. E não sabem por uma razão muito simples: por causa da cultura digital. A cultura visual, não só o cinema, não só a televisão, mas, principalmente, os joguinhos. E esses joguinhos são fascinantes. O desafio de um professor hoje é totalmente diferente do que era no tempo em que eu lecionava. Quando dava aula em colégio estadual e tinha que falar sobre algum período da história da arte, eu levava uns livros que tinha em casa e mostrava alguns exemplos por meio de um projetor de slides. Hoje, é possível usar a internet e localizar os arquivos instantaneamente. A sala de aula se tornou um espaço diferente do que era em um passado não muito distante. E o professor tem que estar ciente disso. Se fosse professor hoje, o que eu faria? Ia começar do zero. Porque, imagine: o aluno tem, em tese, toda a informação disponível na internet, no celular, e na sala de aula esse aluno fica sentado ouvindo uma pessoa falar. Dá certo? Pode até ter um certo charme, mas é algo muito antigo. Por isso, tem que inventar coisas. Acredito que, na medida em queo professor inventa e cria com os alunos uma nova forma de aprender, ele estará achando uma solução. É preciso romper um ciclo vicioso.
 

NA PALMA DA MÃO

Temos que fazer uma campanha para que as pessoas descubram que todos têm uma biblioteca nas suas mãos. Quando você vai a uma lan house, o que se escuta? Uma barulheira incrível. Uma gritaria sem fim. O que passa? Os meninos estão jogando. São jogos de matar e morrer. Então, tem que ensinar esse pessoal a ler, seja no computador ou na tela do celular. Todo mundo está com o celular na mão, mas é joguinho ou palavra cruzada para matar o tempo, quando o sujeito poderia estar aproveitandoo tempo lendo algum livro de Dostoiévski, Cervantes ou Machado de Assis. É importante fazer uma campanha de descoberta da biblioteca digital.
 

SOCIEDADE DIGITAL

Outro dia minha filha disse que a afilhada dela falou algo maravilhoso. É uma menina de sete, oito e ganhou um livro de papel. Ela ficou passando o dedo no livro, mas a página não andava. A menina está acostumada a colocar o dedo no telefone, não é isso? Há uma diferença entre as gerações e é necessário dar um salto acima do tempo e do espaço. Eu não vou ver isso. Infelizmente, eu já estou indo embora, daqui a pouco. Mas os filhos de vocês vão ter que conviver com a sociedade digital, cada vez mais digital.


Fotos: Lina Faria