Teatro

O homem desconfortável

O fragmento publicado pelo Cândido integra a peça de Edson Bueno, vencedora do Edital de Dramaturgia promovido pela Secretaria de Estado da Cultura


Escritório de trabalho de Ricardo, publicitário.
Ao telefone.

RICARDO
Alô! Alô! Dona Ana Lúcia, por favor, 
sai da outra linha que eu estou falando 
com a consultora de marketing, por 
favor! Tudo bem, tudo bem que eu tenho 
hora marcada, mas será que a “pessoa” 
não pode esperar cinco minutos? Quem 
é? Aliás, ontem não repassamos a agenda 
de hoje, não é D. Ana Lúcia? Mário 
Eduardo? Quem é esse cara? Modelo? 
Para o projeto Batman? A agência 
mandou? Tem cara boa? De homem? Tá 
bom, então manda ele esperar uns cinco 
minutos que eu já atendo. Alô? Alô? 
Maria Fernanda? Desculpe, amor, eu estava 
resolvendo um probleminha de última 
hora. Escuta, você ainda tem dúvidas 
de que o Batman é um excelente garoto 
propaganda para produtos farmacêuticos? 
Não, Maria Fernanda, não leve pra 
esse caminho, esse negócio de viadagem 
é irrelevante. Não existe prova concreta 
de que o Batman é gay! Importante 
é que ele é um neurótico! Se o Batman 
toma tranquilizantes, todo mundo também 
vai tomar. É óbvio. Tem que pensar 
mais um pouco? Tudo bem, você é 
quem sabe. Você pode ter um produto 
top de linha e gastar o dinheiro justo 
e pode ter uma merda de um produto 
e gastar uma merreca! Claro que eu sei 
que você sabe disso melhor do que ninguém! 
Agora, um produto top de linha 
por uma merreca, impossível! Se você 
quer ter uma Angelina Jolie tem que, no 
mínimo, ser um Brad Pitt! Ok! Ok! Eu
espero até amanhã, não tem tanta press
assim... Um beijo! (Segura o telefone
Gostosa! Essa mulher é tudo! Até quan
do banca a arrogante sabe tudo! (Ao telefone) D. Ana Lúcia, pode entrar. (Larga o telefone) Espera aí! Hoje à noite tenho que achar um jeito de assistir ao tal filme argentino. (Vai ao notebook) Em que ponto eu estava do romance -reportagem? Minha mãe do céu! Mal consigo enxergar a fonte 12. Vamos lá, vamos lá... Editar, selecionar tudo... Deixa ver, fonte 16... Assim está melhor... Aqui! Credo! Não consigo enxergar mais a fonte 12!

Entra Dona Ana Lúcia.

ANA LÚCIA
O rapaz está inquieto.

RICARDO
Estou ficando cego, D. Ana Lúcia, cego! Marcou consulta com o oftalmologista?

ANA LÚCIA
É “a” oftalmologista, Dr. Ricardo! Chama-se Dra. Carolina Marques!

RICARDO
É boa?

ANA LÚCIA
Foi o senhor que pediu. Diz que sua ex-mulher recomendou.

RICARDO
Ah, é uma amiga dela. Deve ser boa. Se não for também, mais míope do que já sou ela não vai me deixar. D. Ana Lúcia, quer, por favor, colocar ordem aqui nesta agendinha que eu montei à caneta? Eu já nem sei a que horas eu posso sair hoje. Aliás, eu já almocei?

ANA LÚCIA
Já.

RICARDO
Ótimo! Era comida engordurada?

ANA LÚCIA
Um número 5 do McDonalds!

RICARDO
Caralho!

ANA LÚCIA
Não se preocupe! Se alguém perguntar, digo que o senhor almoçou no restaurante suíço ou no francês ou no japonês mais caro da moda!

RICARDO
Tenho que voltar a fazer musculação. A barriga, D. Ana Lúcia, a barriga! Lembre-se, D. Ana Lúcia: apesar das aparências, sushi e sashimi engordam! 

D. Ana Lúcia vai colocar ordem na agenda. A Dra. Carolina Marques entra.

CAROLINA
Quanto tempo faz que o senhor não consulta um oftalmologista?

RICARDO
Bem uns três anos.

CAROLINA
Está vendo aquele quadro ali?

RICARDO
Que quadro?

CAROLINA
Isto é sério, doutor Ricardo!

RICARDO
Estou vendo.

CAROLINA
Pode distinguir as letras da primeira coluna?

RICARDO
Z, T, V, X, H.

CAROLINA
E da segunda?

RICARDO
Praticamente nada.

Toca o telefone. D. Ana Lúcia atende.

RICARDO
Coisa grave?

CAROLINA
Nada que um par de óculos não
resolva.

RICARDO
Está louca? Óculos envelhecem!

CAROLINA
Que é que o senhor quer, Dr. Ricardo? Veio aqui pra quê?

RICARDO
Sexo, Dra. Carolina, sexo!

CAROLINA
Tô entendendo não!

RICARDO
Sabe há quanto tempo eu não vejo uma mulher nua? Mais de seis meses. Portanto, o melhor que a senhora tem a fazer é tirar a roupa aqui e agora!

CAROLINA
Dr. Ricardo!!!

ANA LÚCIA
Dr. Ricardo! Sua mãe ao telefone!

RICARDO
Só um instantinho!

Ele vai ao telefone.

CAROLINA
(Para Ana Lúcia)
Ele falou sério?

ANA LÚCIA
Falou. Mas você não precisa levar a sério.

CAROLINA
Seis meses? Não é meio demais?

RICARDO
(Ao telefone) Alô! Mamãe? Desculpe mas a minha agenda hoje está infernal! Escuta, mamãe, a senhora compraria um produto farmacêutico vendido pelo Batman?

MÃE
Depende.

RICARDO
Depende do quê?

MÃE
Sabe a única coisa que me interessa numa farmácia, não?

RICARDO
Claro! Tudo o que fizer bem ao seu corpo e sua mente.

MÃE
Tem dias em que eu me sinto com o corpo de uma leoa e a mente de uma galinha. Você tem aí um produto que possa inverter isto?



Edson Bueno é autor, diretor e ator de teatro. Nasceu em Curitiba (PR), em 1955, cidade em que reside atualmente. Iniciou sua carreira artística em 1982. Desde então, já dirigiu mais de 100 peças, entre adaptações literárias e textos originais. Recebeu 17 troféus Gralha Azul, premiação que elege os melhores trabalhos do teatro paranaense, além de dois Kikitos no Festival de Gramado (Roteiro).