Romance | Rui Cardoso Martins

O osso da borboleta

caliman


Chegava-me um deus todas as semanas pelo correio. Tenho Zeus, Apolo, Vulcano, Neptuno, Marte, uma Vénus de peito esférico, Diana a caçar, Pandora a abrir a caixinha dos sarilhos grandes, Amon Ra sentado no trono. Gregos, romanos, egípcios. Atlas segurando o calhau do firmamento por toda a eternidade e Jano, o deus das portas e duas cabeças que assim vê Janeiro a chegar e o ano que passou ao mesmo tempo. Tenho quase todos os deuses dos céus, da terra, dos mares, das guerras, do amor, tenho de tudo, sou muito prevenido, ou era. Sou proprietário dum Olimpo de vitrine.

Hoje misturados com bonecas que nem sei como vieram aqui parar, de certeza ideia da mãe misturar deuses com bonecas de plástico, peixeiras de sete saias bordadas, uma Barbie antiga made in Japan. Brinco com eles (parecem estatuazinhas desenterradas, têm as cores do mármore e do barro) e meto-os a fazer coisas que não querem, incluindo porcarias com as bonecas. Não é nada de mais. Segundo a Grande Enciclopédia Ilustrada dos Deuses da Antiga Grécia e Mitologias Afins, Zeus estava sempre a descer do Olimpo e disfarçava-se de touro brancoou de cisne ou o que lhe desse na cabeça para engravidar jovens mortais. Por vezes pergunto-lhes: posso fazer isto, querem fazer aquilo? Mas eles ficam calados. Não respondem nem por enigmas. Vão castigar-te mais tarde, não devias meter-te com os deuses. Já basta o que foi.

Ouve-se o último ganido estremunhado do cão que ladra aos morcegos do poste eléctrico, há sempre um cão de serviço à noite, como as farmácias, disse o outro. Os guardas- -nocturnos das lâmpadas são os morcegos, guardam a luz sem a verem, em rondas periódicas. Mesmo assim, enganei toda a gente. É nesse poste que roubo a electricidade, fiz uma puxada. Não digas a ninguém, o piquete da companhia não deu por ela, parece um fio de cobre descarnado, esquecido durante outras crises nacionais e internacionais.

A quantidade de coisas que ficam penduradas, até as memórias e amores, de súbito ligam-se à corrente e recomeçam.

Tudo combinado, o ar, o cheiro, a luz dão um impulso aos nossos instintos e deveres. Ou é esperança ou vingança o que aí vem, nos próximos dias teremos de ver melhor o mecanismo.

O Sol chega e o morcego do poste foi dormir com o estômago a abarrotar de traças, mosquitos, melgas e sangue de pessoas dentro da tripa das melgas. Pendura-se para baixo num canto qualquer de caverna, num sótão abandonado como este onde ninguém o encontra, num barco podre ou nas rochas da praia, a palitar os caninos com o ganchinho da asa, lâmina contra lâmina dos dentes, tem uma unha igual à unha do mindinho crescida dos malandros de salão de baile, dos donos de carro com buzina polifónica, dos jogadores de taberna, um traço afiado da evolução que permite palitar os dentes. Mastiga os restos de espigões, asas e patas das melgas e, porque engole o nosso sangue humano dentro das melgas, guincha num arroto de felicidade.

Aos vampiros pendurados de pernas para o ar desce-lhes o sangue à cabeça, e têm sonhos delirantes durante o dia, imagino. Os pombos, as pombas representam o espírito santo. Mas o morcego é o espírito santo do diabo, como disse o outro.

Mas que grandes cabras. O que é que eu vos disse ainda ontem? Cresçam!

A vizinha de baixo acordou e fala com as plantas. Começa cedo o espectáculo.

Rui Cardoso Martins é escritor, roteirista de cinema, cronista e repórter. Tem 47 anos e nasceu no Alentejo, em Portalegre, a 20 quilômetros da fronteira com a Espanha. O trecho publicado no Cândido faz parte do romance inédito O osso da borboleta, que a editora Tinta da China publica ainda em 2014. Martins vive em Lisboa, Portugal.

Ilustração: André Caliman