Romance | Paulo Venturelli

MADRUGADA DE FARPAS


Para Juraci José de Paula - a plenitude não tinha limites naquele tempo


x
Eles descem pela rampa da Universidade Federal, comentando as aulas:

— Que professorinha essa, hem...

— Fazer esquema de poesia e prosa em duas colunas no quadro! Nem no ensino médio tive professor tão ruim.

— A baixinha é terrível. Se não bastasse a burrice, a gente tem de aguentar aquela voz de quem mastigou pedras e quebrou todos os dentes.

Obadiah e Israel chegam na cantina. A turma da sala. Meninas mais salientes. Outras mais reservadas. Cercam os dois porque são atraentes e bem-humorados.

— Vocês vão na festa de Isabel no sábado?

— Ôrra! Em plena segunda e já pensando em festa.

— Ah, a gente tem que ir preparando o espírito, se não, como suportar essas aulinhas...

Israel olha para Obadiah e dá uma pequena piscada.

— Ué, não gostaram da aula?

— Que é isso, cara. Isso é aula de literatura numa universidade?

— Por isso que temos de pensar em festa. Isabel se aproxima deles:

— Vocês vão, não vão?

— Ah, cara, até lá tem muito tempo para pensar. Isabel meio rascante:

— Por que vocês estão sempre juntos e quando a gente convida para sair regateiam? Silêncio.

A cantina fervilha lá no fundo. Isabel ataca:

— Sei, não. Acho que entre vocês dois existe alguma coisa...

Obadiah solta sua risada de urso satisfeito:

— Alguma coisa? Pode ter certeza. Existem muitas coisas.

Oba e Israel atravessam o pátio da reitoria. O guarda vestido de azul e empertigado. Passam pelo saguão do Dom Pedro II e rumam para a rua XV.

 — Porra, essas meninas são pentelhas, né?

Obadiah levanta os ombros e encara Israel bem nos olhos:

— Ainda bem que não tenho nada a ver com essas galinhas. Israel se aproxima mais do negro esguio, de carapinha baixa, peitos levemente salientes e dois brincos de argola nas orelhas:

— Você se arrisca a andar de mão dada comigo aqui na XV?

— Por mim... Quem se importa? Israel estende a mão direita e Obadiah entrelaça seus dedos nela.

Do outro lado da rua, alguém grita:

— Aí, seus dois boiolas...

Israel ri:

— Foi você que disse que ninguém se importa?

— Ele que vá tomar no cu e aprenda a deixar os outros em paz.

Param na banca da Reitoria. Conversam com Vanderlei. Querem saber se a Cult e a Bravo! deste mês já chegaram. Nada. Vai demorar um pouco.

Passando pelo Teatro Guaíra, Obadiah abraça Israel pela cintura. Este exulta e sente o calor do companheiro.

y
— Cara, vai ter show da Gal.

— Nem pense, nem pense! Você sabe quanto custa o ingresso? Prefiro comprar um monte de cedês. Duram por toda a vida. O show em duas horas acaba e baubau.

— Ah, cara. Nem vem. Um show tem muito mais clima. Agarra a gente pelo nervo. Todo o cenário. Tem o lance da performance da artista. Arrepia até o gargalo da alma.

— Eu sei, Israel. O problema é a grana. Eu não tenho. Se você pagar, eu encaro.

— Ah, belezinha! Nas minhas costas, né? E muita grana que eu tenho mesmo. Preciso ralar feito escravo com o pai só para garantir um tufo até o fim do mês.

Na Santos Andrade, eles resolvem atravessar a rua e ir ao Café Expresso. Boa ideia, Obadi! Estou morrendo de sede. E um cigarrinho depois...

Sentam-se em torno de pequena mesa redonda. Pedem dois expressos. Antes, duas águas com gás. Obadiah encara Israel. Vê seus cabelos louros cacheados, caindo displicentes em torno do crânio, os olhos azuis com algum pigmento indistinguível dentro deles. Deposita o rosto nas duas mãos apoiadas pelos cotovelos e contempla com agudeza o amigo. Este pergunta:

— O que foi? Por que está me encarando desse jeito? Oba fecha os olhos por um instante.

— Não estou encarando. Estou contemplando. Fruindo. Obra de arte não é para isso?

Israel faz um muxoxo:

— Obra de arte? Eu? Branquelo desse jeito. Estende aqui teu braço. Obadi obedece. Israel coloca seu braço ao lado daquele braço musculoso, ainda que magro:

— Olha só a diferença de cor! De textura. Eu pareço pão que não assou direito. Você, não. Você é completo. Tostadinho. Sapoti. Cor deste Brasil.

Oba corta:

— Ih, cara. Que coisa mais brega. Cor do Brasil? Que cor? Como se a tua também não fosse.

— Sou muito branco para o meu gosto. Tua negritude dá a sensação de gente completa. Acabada. Perfeita.

— Ah, tá. Eu, perfeito.

— Pra mim, sim. Mais que perfeito. A água e o café chegam. Eles experimentam a temperatura do café e se voltam para a água. Bebem em pequenos goles até o meio da garrafa. Depois retornam ao café.

— Gostou?

— Está massa! Delícia pura.

Os joelhos de Israel se enroscam nos de Obadiah. Ele sente a temperatura do corpo do companheiro.

— Está quentinho, né?

Rindo Oba pergunta:

— O quê? O café ou os teus joelhos?

Israel fixa os olhos em Obadi:

— Se você não fosse meu, eu te comprava. Já pensou no tempo da escravidão: eu, o filho veado do fazendeiro, protegendo este neguinho lindo para não apanhar?

Terminam a água. Depois o café. A mochila vem até a mesa, puxada por Obadiah. Ele abre. Pega um livro velho e entrega ao companheiro:

— Olha, só. Comprei para você. Ontem, num sebo.

Ao estender as mãos para pegar o livro, Israel fica olhando Oba direto em seus olhos:

— Porra, meu. Você já tem pouco dinheiro e ainda fica gastando comigo?

— É assim que você agradece?

O louro cacheado abre bem os olhos e vê uma edição antiga de Viagem, de Cecília Meireles.

— Puta que o pariu! Que maravilha. Ainda bem que você me conhece bem para saber do que eu gosto. Pagou muito caro?

Abre na folha de rosto. Quase grita:

— É primeira edição!!!!!

— É? Não paguei caro, não. Estava numa pilha toda bagunçada de livros de poesia que para o sebeiro não tinha nenhum valor. Fui com paciência catando um a um até que encontrei este. Não duvidei um segundo.

— Obrigadão, meu anjo. Só me preocupa que depois a grana vai fazer falta para você.

— Que nada. Se falta, meu Polaquinho me socorre, eu sei.

Pagam. Saem à rua. O sol sobre os pinheiros da Santos Andrade. As colunas da universidade alaranjadas pela intensidade da luz. Um acende o cigarro do outro. E vão caminhando. Palavras. Calor. Pombos. Baforadas. Israel anda de tal maneira que sua mochila sempre bate na de Obadiah. Dentro da sombra intermitente, o negro vai mudando de tom de pele. Lustrosa. Brilhante. Mais apagada. Com as batidas das mochilas, Israel fala:

— É só para a gente não perder contato. O negro ri. Os dentes hialinos dentro da sombra da árvore.

— Sei muito bem o que você está querendo, seu vagabundinho.

O Correio antigo à esquerda. Chegam ao ponto em que a XV é só para pedestres. Oba fala meio iritado:

 — O que toda essa gente faz na rua num final de manhã?

— Êêê, tongo. O mesmo que nós. Estão indo para algum lugar ou vindo de outro.

— Falou o conhecedor das multidões.

Apagam as baganas sob os pés. Depois as atiram nas lixeiras. Já na Muricy, Oba diz:

— Vou pegar o rumo da minha kite. Você vai direto para casa?

— Pegar o busão e ajudar o pai na cantina. Se o velho não faturar bem você já conhece o bom-humor.

z

Enquanto o ônibus corre em direção a Santa Felicidade, Israel pensa em Oba. Como se conheceram. Claro, numa festa. As primeiras conversas difíceis. O tateio em terreno pantonoso. Será que é do time? Será que não é? Difícil! O coração acelerado, os olhos tomados por aquela criatura esbelta e luzidia, magrão, mas de músculos bem desenhados no peito e nos braços. A camiseta branca, justa, revelando o que dava vontade de experimentar com a língua. Vontade de apertar. Morder. Sugar. Como ir se aproximando? A jogada de sempre: Vamos beber alguma coisa? Oba dançando lento, encostado na parede e mostrou o copo na mão esquerda. Vixi! Fui mal. E agora. Ainda bem que o neguinho foi simpático:

— Já está no fim. Preciso de outra dose.

Foram os dois até o bar. Gim-tônica. Uísque com energizante. Brindaram.

Israel: — Você não é de Curitiba, é?

— Até que não. Vim de Pernambuco faz um ano. E você?

— Sou daqui. Vê só como sou branco. Gente de terra fria.

— Você fuma?

— Fumo.

— Vamos dar uma tragada lá fora?

No curral da calçada, assim que Israel tomou o cigarro, Oba já o acendeu. Prazer. Prazer. Deram-se as mãos. Meu nome é Israel. Meu nome é Obadiah. Israel não soube se entendeu direito. O outro continuou. Meus antigos foram escravos. Deve ser nome daqueles tempos. Bebem devagar. Levantam o rosto para expelir a fumaça. Lá de dentro vem música escaldante. Os carros na rua. O céu nublado, meio amarelo com as luzes da cidade. E agora? Qual o próximo passo? Simples.

— Você estuda?

— Quero tentar letras na Federal.

— Não brinca, cara. Eu também.

Lá veio o vestibular. A lista dos aprovados nos grandes vidros do teatro da reitoria. Israel passou. Procurou o nome do amigo. Batata. Tinha sido aprovado também. Deu um tempo por aí, para ver se o encontrava. Não demorou muito, lá vinha o pernambucano, estufando a camiseta. Aperto de mão. Israel se antecipa na notícia, antes que Oba tenha tempo de ver a lista. Oba agarra Israel pela cintura e o eleva no ar, dando voltas. Então vamos festejar. Atravessaram a rua XV e foram para um dos barzinhos em frente à universidade. A conversa correu solta.

Como velhos amigos. Obadiah recebia ajuda de uma tia até arrumar um emprego. Israel trabalhava na pizzaria do pai. Convidou o amigo para almoçar lá. Uma forma de comemoração. Seus pais não deram muita importância à aprovação. Letras? E isto é curso para homem? Dá algum futuro? Dá dinheiro? Israel fez a apresentação do novo amigo. Letras também? Credo em cruz! O Polaquinho pediu dispensa do trabalho como presente e disse que Oba iria almoçar ali com eles. Sem problema, mas não vá se acostumando a trazer gente da turma para cá. Não quero ninguém filando boia aqui. Ainda mais negro. Ih, pai, você ainda é desse tempo? É bom a gente manter os olhos abertos. Nunca se sabe. Se for assim, vou almoçar com ele noutra cantiga. Para com isso, filho. Só estou avisando para o teu bem. Fique de olho aberto com este tipo de gente. Claro que pode almoçar aqui com ele, já que é teu amigo. Só não quero que você dê rédeas pra teu coração mole. Almoçaram. Obadiah era fanático por gnocchi quatro queijos. Para Israel, bastava um risoto de frango. O pai abriu uma garrafa de vinho tinto para comemorar a vitória aguada dos dois. Depois do almoço, foram fumar no quintal atrás de casa. Nino, um poodle ruivo aproveitou e veio aos saltos. Obadiah se abaixou, espantado com a cor do bicho. Ainda bem que não sou só eu que não sou branco por aqui. Fez festas no cãozito que a todo custo queria morder suas mãos. Andaram sob as árvores. Sentaram-se num banco torto. Israel ironizou: cuidado, isto é obra minha. Não sou muito bom com coisas práticas. Se desmoronar, não me responsabilizo. Oba gargalhou, o som gordo de quem está satisfeito com a vida. Conversa vai, conversa vem, chegaram à música. Empate técnico. Ambos gostavam de MPB e jazz. Que o rock ficasse muito longe! Israel o convidou para ver sua coleção de discos. Subiram a longa escada dos fundos da casa. Nino atrás se fazendo de um oito em cambalhotas. No quarto, Israel tinha toda uma parede forrada de cedês em estante larga. As outras duas, só livros. Na quarta parede se encostava a cama. Oba deu uma olhada meio rápida e disse que precisava ir logo. Arranjara um trabalho em supermercado das duas às vinte e duas horas. Controle de pessoal. Por isto, não podia chegar tarde. Foram até a frente da cantina. Mais um cigarro, enquanto o ônibus não vinha. E assim a amizade começou e continuou. Quando voltou para as mesas e começou recolher os pratos, lembrou-se de que pedira folga ao pai. Mas continuou a trabalhar para não desagradar ao velho. Israel sentia um aperto no peito. Muito de angústia e sobressalto. Um gelo no cerebelo a descer pela coluna. Uma sensação de solo movediço sob os pés. E agora? Obadiah enchia suas veias de uma energia maluca. Agora é continuar até a hora do bote. Se deu, deu. Se não deu, eu que me ferre. Só sei que estou mexido. Alguma coisa dentro de mim se desestruturou ou se estruturou de uma forma desconhecida. Só sei que não sou mais o mesmo. As pancadas no peito doem na garganta. Trabalhou meio distraído até as dezesseis horas. Desamparo. Desconsolo. Sabia estar entrando numa floresta na qual nunca havia entrado e não tinha a mínima noção de como se comportar nesta geografia totalmente nova.

Paulo Venturelli nasceu em Brusque, em 1950. Mudou-se para Curitiba em 1974 para cursar Letras na Universidade Federal do Paraná, onde também fez seu mestrado. É autor, entre outros , dos livros de contos Fantasmas de caligem e Histórias sem fôlego, além do romance Meu pai. Em 2012 seu livro Visita à baleia ganhou o prêmio de melhor texto e ilustração (feitas por Nelson Cruz), concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Osvalter Urbinatti