Romance | Luiz Ruffato

O verão tardio

Marcim Fonseca... Vou procurar o Marcim Fonseca! Será que lembra de mim? Nunca imaginei o Marcim Fonseca envolvido com política. Estivemos na casa dele uma vez por causa do trabalho sobre a Revolução Francesa pedido pela Malu. Marcim morava na Vila Minalda. O pai tecelão, o irmão mais velho tecelão, a irmã tecelã. A mãe, baixinha, tímida, óculos fundo-de-garrafa, olhos tristíssimos, nos recebeu com uma jarra de refresco de framboesa com pedras de gelo, igual à ilustração que aparecia nos pacotinhos de Q-Suco, e uma cestinha de bambu, coberta por um pano de prato com duas galinhas bordadas, cheia de bolinhos-de-chuva. Marcim mostrava-se visivelmente incomodado. Com a pequenez da sala, com os rasgos na napa do sofá, com os retratos empoeirados na parede, com a folha de plástico colorido cobrindo a tela da televisão, com o descaramento dos dois gatos que se esfregavam nas nossas pernas miando, com a música alta que reboava do rádio da casa vizinha, com a irmã caçula que desfilava suas coxas aos nossos olhos lascivos, com a gulodice com que o Graciano e eu atacamos os bolinhos-de-chuva e o quissuco. Durante as pouco mais de duas horas, Marcim manteve-se emburrado, impaciente para que terminássemos logo, desgostoso por ter consentido em nos receber naquele correio de casas geminadas, tão perto do rio que, da poltrona onde estava sentado, eu conseguia ver através da janela as águas mansas correndo além das goiabeiras raquíticas do quintalzinho, numa das quais, amarrado, um vira-lata amarelo-encardido balançava o rabo e as orelhas, jururu, espantando as moscas. Não pusemos mais os pés lá. Nossos encontros passaram a ocorrer ou na biblioteca do colégio ou na minha casa — na do Graciano, nunca, devia ter vergonha de nós, o pai dele dono de um posto de gasolina. A mãe estimava o Marcim, mas ela não desagradava de ninguém. O pai, no entanto, turrão, falava que o Marcim tinha olhos manhosos — e talvez, mais que todos, fosse ele o sensato. Quem pensei que pudesse se interessar por política era o Cesinha. Cesinha tinha sido colega da Lígia, um ano a mais que eu. Estava no terceiro científico quando uniu ao Aladim, professor de química, para editar um jornalzinho. Aladim era apelido, todos chamavam ele assim porque usava truques de má- gica para ensinar a matéria. Simpá- tico, cabelos pretos encaracolados caídos nos ombros, contava piadas engraçadas, tocava guitarra no The Revolution Band, conjunto que imitava os Beatles, provocava suspiros no mulherio, embora muitos alegassem que ele era veado. O professor Aladim, Cesinha e mais dois ou três alunos espalharam cartolinas coloridas no colégio anunciando, em breve, a chegada de O Intrépido. Numa manhã de agosto, logo depois das fé- rias, eles se posicionaram no portão de entrada para distribuir o jornalzinho, papel-ofício datilografado em estêncil e rodado em mimeógrafo a álcool. Mal começaram a entregar os exemplares, surgiram o Zé Leal e o Zé Adão, bedéis cupinchas do professor Carvalho Sá, que com truculência confiscaram O Intrépido e tacaram fogo ali mesmo, causando um princípio de tumulto, logo debelado. Disseram que o jornal pregava o naturismo, o vegetarianismo, a legalização da maconha e o amor livre, o que já seria motivo suficiente para despertar a fúria do professor Carvalho Sá — mas a gota d’água teria sido uma charge, feita pelo Cesinha, na qual o professor aparecia, cabeça enorme em corpo diminuto, sentado na beira da cama, apenas de cueca, a cara assustada, com a legenda: Meu deus, onde eu ‘tava com a cabeça? Naquele dia, o professor Aladim já não deu aulas e na semana seguinte o Arruda, professor-substituto, avisou que ele havia mudado para o Rio de Janeiro, em busca de novos desafios profissionais. Não ouvi mais falar do professor Aladim. Cesinha recebeu suspensão de uma semana e a mãe dele, a dona Alice, foi vista saindo da sala do diretor, o professor Guaraciaba dos Reis, chorando. A vida dela era chorar. Chorava, chorava, chorava, sem entender por que perseguiam o seu Vevé, que assim ela chamava o marido, homem bom, trabalhador, que só queria o bem das pessoas, como Jesus Cristo, ela o comparava a Jesus Cristo... Dona Alice não compreendia porque as pessoas condenavam seu Venâncio por ser comunista, se ser comunista, na visão dela, era a mesma coisa que ser católico, só que sem padre e sem missa. Naquela época, o marido andava preso na Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora. Quando voltou, alguns anos mais tarde, houve peregrinação à casa deles, três ruas antes da nossa, porque, apesar de tudo, dona Alice e o seu Vevé eram queridos da vizinhança. Causou comoção o estado em que ele reapareceu: magríssimo, cego de um olho, vários dentes faltando e tremores nas mãos. Seu Venâncio nunca mais conseguiu trabalho, passou o pouco tempo que restava com medo de sair do quarto, desperto, de todos desconfiado, mijando sangue e recusando tratamento, como lamentava a dona Alice quando encontrava a mãe varrendo o passeio, Uma desgraça, dona Stella, uma desgraça. O professor Guaraciaba dos Reis lembrou à dona Alice que, da próxima vez, se houvesse próxima vez, teria que expulsar o Cesinha do colégio, Já pensou a tragédia, dona Stella?!, e ela, desesperada, não bastasse o seu Vevé, lá longe, preso que nem bicho, e agora o Júlio César, minha nossa senhora, o que vai ser deste menino?!

(...)

Em frente ao prédio da Prefeitura, um cachorro preto, de pelagem lustrosa, abana o rabo. Subo lentamente a escadaria, penetro no salão. Um segurança, alto e forte, me intercepta, “Posso ajudar?”, pergunta, ríspido. Digo, “Bom dia”, ele se perturba, e, desconcertado, responde, “Bom dia. O senhor deseja...”, “... falar com o prefeito”, completo. “O senhor tem audiência marcada?”. “Não... Sou amigo... Vim de São Paulo... Só queria dar um oi...”. O segurança coça a cabeça, me conduz a uma mesa com dois telefones brancos, caderno escolar e conjunto de acrílico fosco, porta-canetas e porta-clipes, “Espere aqui”. Ele atravessa perpendicularmente o salão e entra numa porta lateral. De pé, observo os móveis — duas poltronas puídas, uma mesinha-de-centro, algumas revistas empilhadas num cesto — e a larga escada de madeira escura que leva ao segundo andar, ao Gabinete do Prefeito. Aguardo paciente, o silêncio só turvado pela gargalhada feminina que nasce da toca onde o segurança se meteu. Sem pressa, caminho até à porta entreaberta, empurro e deparo com um cubículo apertado, muito limpo. O segurança e duas mulheres, uma jovem, outra mais velha, me olham, espantados. Digo, “Bom dia”, e o segurança fala, “É esse, Michele”. Michele deve ter vinte e poucos anos. Muito bonita, cabelos pretos, lisos, escorridos. “O senhor é amigo do prefeito?”. Quem pergunta, debochada, é a mulher baixinha, magra, bermuda, camiseta sem mangas, sandálias de dedo, fios de cabelos brancos fugindo da touca higiênica — com certeza, a dona da risada gostosa. “Bem”, digo, “conheci ele quando tínhamos uns dezesseis anos. Depois disso, nos afastamos...”. “Ah”, ela murmura, como se tivesse ganhado uma aposta. “O prefeito não recebe ninguém fora da agenda”, Michele avisa, sisuda. “Eu falei”, o segurança como que se desculpa com ela. “O senhor já tomou café?”, a mais velha pergunta. “Já, acabei de passar naquela padaria, ali perto da ponte velha”. O segurança enfia um pedaço de broa de fubá na boca e engole o resto do café. “Que pena”, a mulher diz, “Não vai poder comer a broa da Michele”, conclui, maliciosa, fazendo a colega corar. O segurança contém o riso. “Então, quer dizer que o senhor é amigo do prefeito...”, a mulher mais velha repete. “Ele é um bom prefeito?”, pergunto. “Ô, meu senhor, somos gente humilde”, gargalha. O segurança deposita o copo vazio na pia e se vai. “O senhor é daqui mesmo?”, ela continua. Michele tem as unhas pintadas de vermelho, segura a xícara com o dedo mindinho levantado. “Sou, mas moro há muitos anos fora, em São Paulo”. “Mas sua família é daqui...”. “É... a minha irmã, a Rosana, é diretora de escola... E a minha mãe era costureira... no Beira-Rio...”. “Ah, fui nascida e criada no lado de cá do rio. Matadouro, Pampulha, não sei se conhece”. “Claro que conheço. Gostava de ir de bicicleta até lá. Era o fim da cidade. Dali pra frente não havia mais nada...”. “Michele”, ela diz, “Será que a dona Iara não arruma um encaixe não?”. “Ih, lá vem a senhora, dona Ivete! Eu, heim! Não é assim também não!”. Michele coloca a xícara na pia e sai, zangada. Dona Ivete cochicha, travessa: “O prefeito entra pelos fundos. Umas sete, sete e meia... Fica lá acoitando ele...”. Sorrio em agradecimento e me despeço. Ela liga o radinho de pilha, abre a torneira e, cantarolando, começa a lavar as vasilhas. Aproximo da Michele. “Será que posso deixar um recado pro Marcim?”. Ela está arrimada por detrás da mesa. Sem responder, pega um bloco de papel na gaveta, uma caneta no conjunto de acrílico, “Anota aí que eu passo pra dona Iara. Ela que tem contato com o prefeito. Eu sou só recepcionista”. Rabisco um bilhete: “Como vai Marcim? Sou o Peninha, seu amigo de infância, queria ver se podíamos nos encontrar para dar um alô. Volto aqui amanhã de novo”. Dobro o papel duas vezes, devolvo para a Michele. “Se você passar por ele, fala que o Peninha esteve aqui. Peninha sou eu. Não é nome não, é apelido, porque pelo nome mesmo, Oséias, ele não vai saber quem é. Ao menos, com o apelido...”. Michele diz, “É, quem sabe”, e atende o telefone, “Bom dia, Prefeitura de Cataguases!”. Ando na direção da porta, despeço do segurança, desço as escadarias. Assim que me vê, o cachorro preto acerca-se, o rabo abanando. Faço festas para ele, afago sua cabeça, cruzo a rua. 


LUIZ RUFFATO nasceu em Cataguases, Minas Gerais, em 1961. Formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou vários livros, entre os quais a pentalogia Inferno provisório e o aclamado Eles eram muitos cavalos, que recebeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. O trecho publicado pelo Cândido nesta edição faz parte do próximo romance do escritor, que será lançado em breve pela Companhia das Letras.