Romance | Leonardo Villa-Forte


Daniel passava por um momento delicado em sua curta vida. No ano anterior, sua progressão para a série seguinte não havia sido aprovada pela antiga escola. Dessa maneira, precisaria repetir a série, e era isso que estava fazendo agora, numa escola nova. Para a família, tal acontecimento — a repetência — representou uma pequena tragédia. No final daquele fatídico ano, a coordenadora chamou Virna e Marcos para conversar. Foi a única vez em que Marcos deixou a casa, sem contar as vezes em que fora ao hospital revisar os curativos em sua mão, e quando ia pesquisar e comprar objetos para o seu mais novo empreendimento. Ao ver seus pais saírem para a conversa com a coordenadora de sua escola, sentado à mesa de jantar fingindo ter fome e comer um pão, Daniel sentiu até um rápido orgulho, daqueles que brotam quando tentamos ver algo de bom numa cilada que aprontamos para nós mesmos, mas logo murcha quando nos olham com severidade e somos trazidos de volta ao mundo real. Foi esse tipo de olhar que o pai lhe dirigiu enquanto encostava a porta, e Daniel pensou ter cometido a maior falha de sua vida — poderia ter estudado mais?, se dedicado mais? —, e já abaixava a cabeça sobre a mesa de jantar, quando o pai reabriu a porta de repente e, apontando para a recente divisória que ele construíra no meio da sala, disse: “Nem pense em entrar e mexer ali”. 

Virna precisou chorar para tentar sensibilizar a coordenadora da escola. Pegou até na mão acidentada do marido e a levantou às vistas da mulher. “O pai sofreu um acidente. Foi demitido. Daniel não deve estar com a cabeça boa, ver um pai de repente sem dedo”. Marcos, pego de surpresa, lamentou. Não deu um pio quando escutou a coordenadora afirmar que as últimas notas de Daniel, somadas às anteriores, infelizmente não o qualificavam nem mesmo para um período de recuperação. Marcos permaneceu igualmente calado quando a coordenadora mencionou a ocasião em que o professor de português pedira para Daniel olhar para frente e Daniel lhe ergueu o dedo do meio. Claro, era um gesto comumente trocado entre as crianças — inspetores e demais funcionários sabiam —, mas dirigi-lo a um professor era algo de que não se tinha notícia na escola. O lindo bebê da mamãe esticando o dedo do meio para o professor? Virna se assustou ao imaginar. Como Daniel poderia ter aprendido aquele gesto? E como teria tido a coragem de usá-lo? — ela chorou mais um pouco, deitando o rosto na mesa da coordenadora, sacudindo os ombros em sofrimento. Esperava a coordenadora se sensibilizar, mas a mulher não reagia, ao menos não a ponto de rever sua posição. Eram normas da escola que precisavam ser respeitadas. No final das contas, aquela questão não era sobre uma pessoa, ou um aluno, mas sobre uma forma de proceder, e esse padrão precisava ser resguardado. 

“Você entende o que é uma repetência, Marcos, entende o que acontece?”, Virna ergueu o tronco violentamente e secou seu choro, passando as mãos pelo rosto enquanto encarava o marido. As covinhas ao lado de sua boca tremiam, sumindo e reaparecendo seguidamente. O momento parecia complicado. Marcos sentiu que deveria responder da maneira que apresentasse a menor chance de erro possível. “Sim, querida, nosso filho terá que cursar o mesmo ano de novo.” “De novo, Marcos, de novo!”, Virna gritou, e voltou a debulhar-se. Ao menos acertei a resposta, Marcos pensou, e tratou de pôr uma cara triste. “Para sempre atrasado, Marcos! Por que ele tinha que nascer com a minha cabeça e não com a do meu irmão? Temos um filho burro. Que vergonha!” 

A sensação de impotência não era nova para Marcos, mas dessa vez ele pensou que, se o desespero tinha todo esse tamanho, talvez coubesse recorrer a uma via não habitual. De modo que pôs a mão no bolso e, paciente, com aqueles seus quatro dedos que só destacavam o polegar ausente, foi, aos poucos, fazendo um volume subir de dentro do bolso, empurrando devagar — a calça apertada — até que quando estava quase conseguindo retirar a carteira do bolso, um tapa explodiu em sua bochecha. “Tudo menos isso, Marcos. Tudo menos isso”, disse Virna. E já sem lágrima alguma debaixo dos olhos, ela se levantou — “Você é outra vergonha” —, abriu a porta da sala e pôs-se a andar, o som seco dos seus tamancos espocando no ar, cada vez mais baixos, porém por um bom tempo ainda audíveis. A coordenadora ficara sem reação. Marcos, com o rosto vermelho e inchado. A carteira pulara para fora do bolso dele e os dois adultos tentavam não enxergá-la estirada no chão. 


Leonardo Villa-Forte é autor do livro de contos O explicador, do romance O princípio de ver histórias em todo lugar e da série de colagens MixLit. Seus textos foram publicados em jornais, revistas e sites no Brasil e na Inglaterra. O texto publicado pelo Cândido é parte do próximo romance do escritor, ainda sem título. Villa-Forte vive no Rio de Janeiro (RJ