Romance | Jorge Reis-Sá

Domingo, 9

Caliman
Encontrei o senhor Fidélio quando saía da garagem, fim da tarde — como está a sua mulher, perguntou. Ele tinha descido ao quintal das traseiras para dar de comer aos pombos que ocupam há cinquenta anos o mesmo espaço. O que começou por uma reunião amiga entre ele e o senhor Artur, pombos e pombos no quintal deste, e passou por provas profissionais e prémios e medalhas, é agora um velho a cuidar dos bichos tão parados. Quando os avós da Susana se separaram e o senhor Artur acabou por partir para parte incerta, a dona Carlota condescendeu a que mantivesse o espaço — mesmo que os pombos tenham perdido a alma nesses dias. Contratodas as expectativas, o agora velho Fidélio manteve a rotina do amor oferecido a cada bicho, criou uns, morreram outros, comprou tantos. E, num acaso da noite, vindo eu do hospital, do barulho dos rádios nas enfermarias junto ao quarto — os homens a acompanharem as esposas para a visita semanal aos doentes mas mais interessados no futebol — da Susana continuamente parada, a cilindro azul e o barulho repetido da sua respiração, vindo eu da vida que me escolheram sem uma pergunta — Francisco, importar-se de ficar viúvo? Dava jeito.


Sem uma possibilidade de aceitação, sequer, vindo eu o velho Fidélio perguntou está melhor.

Ainda nestes dias não tinha chorado, já se contam quatro. A minha mulher vai morrer, assim se desligue a máquina que a respira. O meu filho vai ficar órfão, o meu outro filho sequer vai nascer, o mais certo. E eu sóbrio e inflexível, a não querer entender. Mas a pergunta do senhor Fidélio foi a mais forte dor no coração — a Susana dizia sempre boa noite senhor Fidélio, e as pombas, bem?, sacudindo o resto das migalhas para os pardais no andar de cima. Abracei-o. Fraquejaram-me as pernas. Chorei por quatro dias, Susana — quem vai agora perguntar pelas pombas ao velho Fidélio?

Jorge Reis-Sá nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal, em 1977. Licenciado em Biologia, fundou em 1999 as Quasi Edições, que editou até 2009. Foi, entre 2010 e2013, editor na Babel. É consultor editorial. Como escritor, publicou vários livros de poesia, ficção e não-ficção, entre os quais Instituto de antropologia — todos os poemas (Glaciar, 2013), o romance Todos os dias (2006) e, com Henrique Cymerman, Francisco, De Roma a Jerusalém (2014), crônica da viagem do Papa Francisco à Terra Santa. O fragmento que o Cândido publica com exclusividade, em primeira mão, faz parte de um romance inédito que o autor deve publicar em 2015. Vive em Lisboa.

Ilustração: André Caliman