Romance | Eric Novello

Dias nublados

A ossada é de uma baleia, disso não há dúvida. A dúvida é como foi parar ali, na Praia Vermelha, sem carne, pele, gordura. Sem o cheiro de morte e a fase de putrefação. Está de lado. A cabeça pontuda parece o arcabouço de um barco, as costelas inclinadas para cima, dentes de uma duna voraz. Ícaro a observa da murada, a uma distância segura, longe dos curiosos. Sente na pele o vento que cansa, o castigo da maresia. Seu passeio pela beira cancelado esta noite. 
Desde o convite de Armando para trabalhar no Neon Azul, tira um dia por semana para ver a praia, cruzar a faixa de areia entre a montanha e o clube militar. Respira o aroma da água salgada e do óleo dos barcos, como se dependesse deles para permanecer vivo. Como se o diesel fosse o único combustível a manter funcionais rins, fígado e coração. 

Pais seguram os filhos pelas mãos, os erguem no colo. A baleia os fascina e incomoda. Sua própria existência mina a segurança da previsibilidade. Alguns, para entendê-la, a veem como arte. Uma intervenção mesmo que divina. Procuram a placa com o nome do artista, pensam na corda de isolamento como parte do pacote. Tem obras assim que são jogadas fora por uma distração da equipe de limpeza. Uma fortuna num dia, no outro já era. 

Alguém a colocou ali para obrigá- los a repensar sua interação com a natureza, é o que Ícaro escuta. O planeta está morrendo. Coisa mórbida. Perguntam ao curioso mais próximo as respostas para as próprias curiosidades: nome do artista, nacionalidade, quando chegou e, a mais importante de todas, quando a levarão embora. 

O raciocínio apaziguador é interrompido por um guarda bem informado. Simplesmente apareceu ali, trazida pela maré. É essa a explicação. Nada de arte além das paredes do museu. São ossos de baleia, arrastados por correntes do fundo do mar. 

E parou assim? Montadinho desse jeito? 

O guarda dá de ombros. Ícaro escuta a conversa de longe, enquanto anda de um lado para o outro do calçadão. Mesmo que todos saibam que a maré nunca chegaria àquela altura sem inundar o estacionamento da praça, que a calmaria do mar da Urca jamais arrastaria ossos daquela maneira, é essa a teoria adotada como oficial. Pouco importa a impossibilidade, e sim a explicação. A culpa da maré acalma a moça que solta o filho no chão. Ufa! Graças à maré o pai afrouxa o aperto na mão do filho e deixa que corra solto pela areia. Famílias se entortam procurando o melhor ângulo para a foto com a baleia. 

Vovó vai adorar. 

Nada de entrar na água, hein? Vai que ela resolve puxar de volta. 

Molhar os pés, uma ameaça mais palpável do que a aparição repentina da ossada. Um perigo com o qual podem lidar sem romper o pacto com a realidade. É só tirar as sandálias, enrolar de leve a bermuda, e o inimigo está vencido. Todos brincam, se divertem. 

Vendedores ambulantes agradecem. Um deles brinca que a curiosidade aumenta a fome. Diz isso enquanto destampa o isopor para procurar o picolé de milho verde que um garoto acaba de pedir. 

É um espetáculo da natureza, ele fala pegando o troco. Mais um a rir feliz ignorando a sentença de morte. 

Quando os carros começam a esvaziar a praça e restam somente os passos dos soldados que fazem a guarda da região, Ícaro vai embora. Deixa para trás seu recanto, hoje, mais do que nunca, transformado em atração turística. Seu interesse pelos restos da baleia é menos curiosidade e mais identificação. Ele, afinal, também é uma ossada arrastada pela maré. 

De mãos no bolso, atravessa a Urca numa caminhada vagarosa. Olha pouco a quem passa, evita interagir. É movido por um desinteresse pelo mundo cada vez mais firme, cada vez mais forte. Se pudesse, mergulhava no mar e ia descendo, descendo, para nunca mais voltar. 

Em Botafogo, abandona a enseada, perigosa por conta dos assaltos, e pega a calçada do lado do shopping que margeia a avenida. Sem fones de ouvido, sua música são os ruídos da cidade, carros apressados, buzinadas, fiapos de conversa, gritarias. É essa mixtape feita de fragmentos sonoros que cala a verdade inescapável a ecoar em sua cabeça: assim como a baleia, não deveria estar ali. 

Passa pelo mercadinho mais zoneado da cidade, pela pizzaria de dois andares que vive mudando de nome, e segue para o apartamento no Flamengo. As mãos estão sempre nos bolsos para espantar o gelo que não o abandona nem no ápice do verão. O corpo sua, a pele pinica, os cabelos se tornam grudentos. Contudo, o frio lhe habita como um inquilino encrenqueiro. Os arrepios o impedem de praticar sua arte. De destrinchar com a ponta dos dedos os desejos ocultos daqueles com quem se deita. 

Ou se deitava. 

“Acho que só esquentam quando sonha”. 

“Nunca fui do tipo que sonha acordado. O jeito é deixá-las nos bolsos e seguir em frente”. 

O diálogo nunca existiu. Ele inventa. Gosta de invencionices que tragam encanto à sua rotina. Uma estratégia ensinada por Armando na chegada ao Rio, no táxi que o levou ao Neon Azul. Entre os muitos conselhos recebidos naquela viagem de belas paisagens e engarrafamento, um havia grudado em sua mente como chiclete em sola de sapato: Aproveite a oportunidade para se reinventar, rapaz. 

Morrer, havia dito, é uma experiência que transforma.

Eric Novello é autor e tradutor. Em seus textos, ora mais próximos da ficção fantástica, ora da literatura do cotidiano, dedica-se a contestar e desconstruir a realidade. Seus livros mais recentes são Exorcismos, amores e uma dose de blues (2014) e A sombra no sol (2012). Como compositor, trabalha com sua irmã Cássia Novello no projeto Noturna. O texto publicado nesta edição faz parte do romance em progresso Dias nublados, ainda sem previsão de publicação. Vive em São Paulo (SP).