Reportagem | Romance histórico

Invenção e memória 

Negligenciado por autores brasileiros durante muito tempo, o romance elaborado a partir de fatos históricos se transformou e ganhou relevância nas últimas décadas 

Helena Carnieri 

                                                                      Foto: José Juliani/ Acervo Museu Histórico de Londrina 
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Primeiros trabalhadores de Londrina (PR), nos anos 1930, capturados pelas lentes do fotógrafo José Juliani.

Matéria-prima pouco explorada pelos autores brasileiros durante boa parte do século XX, os fatos históricos ganharam protagonismo na ficção brasileira nas últimas décadas. A professora Marilene Weinhardt, do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estuda as transformações dessa possibilidade literária desde 1995. Hoje, sua lista conta com mais de 300 obras analisadas.

O ponto de partida de Marilene foi o romance Em liberdade (1981), de Silviano Santiago, um marco na recriação da história brasileira. No livro, Santiago imagina o que Graciliano Ramos teria anotado em um diário a respeito do que viu e viveu nos primeiros três meses fora da cadeia, após mais de um ano preso pelo Estado Novo — fato ocorrido em 1936 e que deu origem ao romance Memórias do cárcere (1953). 

A publicação nos anos 1980 de Em liberdade fazia um claro paralelo entre o período vivido por Graciliano e a ditadura então vigente, que censurava e oprimia desde 1964, apesar da distensão em curso na época.

Mais de duas décadas depois de iniciar sua pesquisa, Marilene vê traços comuns em obras publicadas no período mais recente. “Duas características me chamaram a atenção: o uso do discurso de memórias como recurso ficcional e a insistência na ficcionalização do período do regime militar, muitas vezes ficcionalizando a experiência dos filhos da geração que viveu o período”, diz a pesquisadora da UFPR. Em sua tese de doutorado, defendida em em 1994, ela estudou a ficção histórica da região Sul na segunda metade do século XX.

                                                                                                                                     Foto: Kraw Penas
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Domingos Pellegrini é autor de vasta obra, com mais de 30 livros publicados. Alguns de seus romances, como Terra vermelha (1998), têm como pano de fundo a construção de Londrina nos anos 1930.

A professora destaca Leite derramado (2009), de Chico Buarque, e Herança (2008), de Silviano Santiago, como exemplos relevantes no uso do recurso da memória. Já A chave de casa, de Tatiana Salem Lévy, e Azul-corvo, de Adriana Lisboa, se enquadram no grupo de ficções sobre o período ditatorial pós-1964.

Evolução
Autor de vários romances que utilizam fatos históricos como pano de fundo, Luiz Antonio de Assis Brasil também percebe mudanças na produção mais recente do romance histórico. “Vejo uma evolução no sentido de minimizar — ou até apagar! — o fato histórico e concentrar-se na humanidade dos personagens, vertente que, salvo erro, teve início com Avante, soldados, para trás (1992), de Deonísio da Silva”, exemplifica o professor, que cita ainda a novela Homens elegantes (2017), do autor gaúcho Samir Machado de Machado, como um exemplo de excelência dessa nova linhagem de romances. 

“Temos de banir a nomenclatura ‘ficção histórica’, que não se aplica, de modo nenhum, à produção atual, em que o passado é apenas um espaço e um tempo. E não precisamos de outra designação, pois qualquer adjetivo é redutor e, no fim das contas, o que importa é a qualidade da obra”, diz Assis Brasil.

Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Miguel Sanches Neto convive com os dilemas dos mundos teórico e ficcional. Para sobreviver a esse embate, afirma que escreve “apagando os conhecimentos teóricos” que tem. “Isso [ater-se à teoria] mata qualquer romance. Esses conhecimentos [históricos e teóricos] são, em certo sentido, muito nocivos. O romance é um espaço da imaginação. Tento apenas viver naquele espaço e naquele tempo”, diz.

Para Assis Brasil, A máquina de madeira (2012), romance de Sanches Neto que recria a trajetória do padre Francisco João de Azevedo, precursor da máquina de escrever, é exemplar em termos de pesquisa, narrativa e linguagem. Aliás, o escritor nascido em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná, vem se especializando em narrativas de fundo histórico. Além do romance citado por Assis Brasil, ele escreveu livros como A Bíblia do Che (2016), A segunda pátria (2015) e Um amor anarquista (2005), entre outros. 

Outras narrativas 
Assis Brasil também cita a produção de Ana Miranda, em especial o romance Desmundo (1996), em que a autora narra a vinda da órfã Oribela ao Brasil colônia. A autora cearense também tem se notabilizado por tornar escritores personagens de seus livros, a exemplo de Gonçalves Dias, Clarice Lispector e Augusto dos Anjos. Na primeira experiência em ficcionalizar a vida de um autor, escreveu Boca do inferno (1989), sobre o poeta satírico Gregório de Matos. O livro venceu o Prêmio Jabuti de 1990 e se tornou best-seller.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                          Foto: Fábio Santiago
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A escritora Ana Miranda  tem se notabilizado por escrever obras de ficção de fundo histórico, transformando grandes personalidades da cultura brasileira em personagens.

Amigo de Gregório, o padre Antônio Vieira é personagem central na trama também. O religioso e escritor é mostrado em meio a muitas reflexões sobre sua atuação tanto poética quanto política, em meio a revoltas que marcaram o ano de 1683.

Marilene Weinhardt lembra que, para suprir o desejo dos leitores de consumir narrativas “baseadas em fatos reais”, há uma série de outros discursos: jornalístico, histórico, sociológico, cinematográfico, televisivo, sem falar no romance de não-ficção. 

O sucesso editorial dos romances históricos, segundo Sanches Neto, nada tem a ver com tendências. “O nosso público reage muito bem ao romance que teimam de chamar de ‘histórico’, e normalmente são campeões de venda. Mas o são porque têm qualidade, antes de qualquer outra consideração”, considera Sanches Neto.

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Os romances Em liberdade (1981), Azul Corvo (2010) e Leite derramado (2009) são alguns dos mais de 300 livros analisados pela professora da Universidade Federal do Paraná Marilene Weinhardt.

Paraná reescreve sua história
O interesse pela ficção histórica entre escritores paranaenses se revela em bons novos títulos, a exemplo de Guayrá, de Marco Aurélio Cremasco, que revisita nossas missões jesuíticas, O herói provisório, obra de Etel Frota que ficcionaliza um fato praticamente desconhecido da história paranaense ocorrido em 1850, e Quatro gerações, de Ivo Pegoraro, sobre a colonização do sudoeste do Estado. Todos foram publicados em 2017. 

A nova safra, no entanto, é um ponto fora da curva. Não pela falta de interesse dos autores, conforme sugere Miguel Sanches Neto, mas sim por conta do alto grau de exigência que a escrita de um romance histórico demanda. Em geral, as pesquisas são longas e caras. “Isso desanima a maioria dos romancistas”, lamenta o autor de Um amor anarquista, livro que recria a experiência real de uma colônia anarquista no interior do Paraná no final do século XIX. Para ele, o romance histórico ainda é um nicho pouco explorado pelos autores. Autor prolífico, Sanches Neto já tem novo projeto: escrever uma ficção sobre a Guerra do Contestado (1912- 1916), conflito que envolveu os Estados de Santa Catarina e Paraná e é considerado uma espécie de Canudos paranaense. “Gostaria de escrever uma trilogia. Mas não sei quando terei tempo para isso — depois da aposentadoria, com certeza.”

Adentrando nosso “sertão”, a colonização do Estado é cenário de diversos títulos paranaenses.

Apesar de Terra vermelha (1998) se referir à região de Londrina, o extenso relato que parte dos patriarcas José e Tiana, na opinião do autor, Domingos Pellegrini, “é similar ao de muitos outros municípios e regiões, começando com a chegada de pioneiros de várias etnias e também de outros Estados do país, enfrentando dificuldades de transporte, de subsistência, geadas, pragas, carências ditadas pelo isolamento”. 

Uma característica percebida em obras como essa que destacam nossos termos e costumes, costurados entre tantas etnias migrantes ou imigrantes, é a tentativa de captar a fala coloquial do povo, sua cadência e vocabulário. Herdeiro de Guimarães Rosa, José Angeli (1944- 2012) fez em A cidade de Alfredo Souza (1979), o que Wilson Martins chamou de “o romance do Paraná”, contando a formação de uma cidade com todos os seus tipos e dizeres. 

“O estilo oral de minha linguagem — embora depurada literariamente — vem dos peões, mascates e camelôs que eu via/ouvia contando histórias acocorados ou sentados em tijolos em redor do meio tambor em que minha mãe fazia sabão na pensão [Alto Paraná], como também ouvia sitiantes e fazendeiros na barbearia de meu pai. Então a memória funcionou não apenas para informações históricas mas também para formação da linguagem”, conta Pellegrini.

Um senão a se lamentar: a dificuldade em encontrar nossos títulos, a exemplo de Terra roxa de sangue (1996), de Joaquim Carvalho da Silva; Os dias do demônio (1995) e Júlia (2008), de Roberto Gomes, entre outros.

Precursor
Davi Carneiro (1904-1990) escreveu um dos primeiros romances históricos do Paraná, chamado O drama da fazenda fortaleza. O livro, que Carneiro dizia ter escrito “mais como historiador que como romancista”, pode ser lido na página do Museu Paranaense: http://www.museuparanaense.pr. gov.br/arquivos/File/odramadafazendafortaleza.pdf

Narrativa (histórica) curta 
O vento nas vidraças (1983), do gaúcho Roberto Bittencourt Martins, resgata e debate questões do Brasil colonial. Para isso, ao invés de um romance, o autor escreveu oito contos, algo pouco usual entre narrativas históricas. 

História alternativa
Outros Brasis (2006), de Gerson Lodi-Ribeiro, é composto de três novelas que ficcionalizam episódios da história do Brasil simulando finais diversos, com a vitória do Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança, a vitória do Quilombo de Palmares sobre os portugueses e o domínio da Holanda no nordeste do Brasil.