Reportagem | José de Alencar

O surpreendente legado do fundador da literatura brasileira

Cento e quarenta anos após a morte de José de Alencar, o pesquisador Wilton José Marques localiza oito textos do autor publicados apenas no jornal Correio Mercantil (1848-1868), inéditos em livro

Marcio Renato dos Santos
   
josé de alencar

Há dois anos, o professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Wilton José Marques realizou pesquisa nas páginas do jornal carioca Correio Mercantil (1848-1868) em busca de textos de Machado de Assis. Marques encontrou “O grito do Ipiranga”, poema publicado em 1856 pelo futuro autor de Dom casmurro e que, até 2015, não era conhecido ou citado nem por estudiosos do legado machadiano. O pesquisador decidiu ampliar a pesquisa com a finalidade de saber que outros autores também publicaram naquele mesmo jornal.

Então, Marques se deparou com folhetins de José de Alencar (1829-1877). No século XIX, a crônica se chamava folhetim: os textos extensos, publicados aos domingos, tentavam dar conta dos principais assuntos da semana. Ao fazer o levantamento da produção de Alencar no Correio Mercantil, o pesquisador da UFSCar percebeu que havia uma discrepância de número entre os folhetins do jornal e os que foram recolhidos em livro.

Publicada em 1874, a coletânea Ao correr da pena reúne 37 textos. No entanto, a pesquisa de Marques trouxe uma nova informação: Alencar publicou 45 textos no jornal entre 3 de setembro de 1854 e 8 de julho de 1855. A partir deste dado, ele se dedicou ao assunto, o que resultou em Ao correr da pena (folhetins inéditos), obra recém-publicada que traz os oito textos de Alencar inéditos em livro e “O enigma dos folhetins”, ensaio em que Marques discute os motivos que levaram o autor de Iracema (1865) a excluir conteúdos da coletânea de 1874.

O professor da UFSCar acredita que os oito textos foram excluídos da primeira edição por interferência do próprio Alencar. De acordo com Marques, o primeiro indício disso é que Alencar, no fragmento de uma carta publicada pelo organizador do livro (José Maria Vaz Pinto Coelho), afirma que, caso tivesse tempo, faria uma revisão em todos textos: “Curiosamente, o primeiro folhetim da série foi modificado em vários momentos, o que sugere que Alencar começou a mexer nos textos. No entanto, em 1873, ano da referida carta, Alencar foi diagnosticado com tuberculose e, por recomendação médica, viajou ao Ceará. Ou seja, impedido de realizar uma revisão mais criteriosa, Alencar, além de pedir a exclusão dos oito folhetins, deixou que os demais fossem publicados tais quais estavam na coluna, chamada Ao correr da pena.” 

Marques admite que é difícil explicar, em poucas palavras, os motivos das exclusões dos oito folhetins, sobretudo porque dependendo do folhetim existem vários possíveis motivos. No entanto, ele cita um exemplo, o texto publicado no dia 8 de outubro de 1854, estruturado em torno do embate entre a idealização do passado e a crítica do presente.

Após construir a imagem literária idílica dos “tempos de outrora” do Rio da Janeiro, Alencar passa a discutir a revolução tecnológica que se aproximava com a chegada das máquinas de coser ao Rio de Janeiro — “de maneira que agora sai um homem pela manhã, compra pano na loja, passa pela fábrica, e de tarde recolhe-se com o seu enxoval pronto para ir ao baile”.

Para arrematar o texto, o folhetinista faz, então, uma aparente apologia ao progresso tecnológico e, com indisfarçável e ferina ironia, destaca “que alguns países descobriram uma espécie muito importante” de melhoramento no mundo das máquinas: a “máquina-deputado”, aquela que, ao contrário de outras, era movida pelo interesse e, sobretudo, por “pão de ló”, o que, no jargão político da época, significava propina.

“No caso deste folhetim, a visada irônica sobre a ‘máquina-deputado’ e, por tabela, sobre o funcionamento da vida política no país poderiam ser os motivos óbvios que levaram o autor a excluí-lo do livro de 1874”, comenta Marques, acrescentando que Alencar não apenas tinha ocupado o cargo de Ministro da Justiça (1868-1870) como também, naquele momento histórico, era um deputado de terceira legislatura.

O professor da UFSCar analisa que a publicação deste folhetim em livro, mesmo levando-se em conta o seu conhecido temperamento de polemista, poderia criar uma situação no mínimo constrangedora para o autor romântico: “Para não ferir suscetibilidades, Alencar deve ter pensado que era melhor deixar de lado esse exercício literário de juventude.”

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Livro recém-publicado traz oito textos de Alencar e um ensaio de Wilton José Marques.

Questão de pioneirismo
O professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Eduardo Melo França admira as crônicas de José de Alencar. “Ele era o que podemos chamar de escritor engajado. Por meio de suas crônicas ficamos sabendo das (então) últimas novidades da moda ou da chegada de novas máquinas de costura quando o lemos falando sobre política e literatura. Sua coluna ‘Ao correr da pena’ era diversa, leve e informativa”, opina.

A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Andréa Sirihal Werkema acrescenta que Alencar é responsável pela criação de um estilo folhetinesco que une a observação aguda dos acontecimentos da vida nacional, centrada na Corte [Rio de Janeiro], aos devaneios literários, o que resulta em textos marcados pelos trocadilhos e metáforas de leveza e seriedade sobrepostas. Já o escritor Alberto Mussa, autor, entre outros livros, de A hipótese humana (2017) e A primeira história do mundo (2014), diz não ter interesse no Alencar cronista: “Nunca me interessei pelas crônicas do Alencar. Os romances dele é que me ocupam.” 

De fato, o legado literário do escritor cearense José de Alencar é conhecido, lido e estudado quase 140 anos depois de sua morte, em 12 de dezembro de 1877. No entendimento de Alberto Mussa, Alencar é o primeiro grande romancista brasileiro, o primeiro que demonstrou domínio pleno da técnica romanesca, associado a uma enorme capacidade de fabulação e a um amplo espectro temático: “É ainda o primeiro a propor um verdadeiro experimento da alteridade, especialmente em alguns romances indianistas e regionalistas.”

Eduardo Melo França observa que, se Machado de Assis é o maior autor da literatura brasileira, José de Alencar foi o escritor que de forma mais determinante se ocupou com a fundação de nossa literatura. Durante o romantismo, continua o professor da UFPE, Alencar foi essencial para a escolha da cor local como elemento definidor da literatura brasileira. “Além do quê, com Iracema (1865) e O guarani (1857) ele definitivamente desvinculou a literatura brasileira da portuguesa, dando-lhe o status de autônoma. Por fim, vale salientar que Alencar, com o seu romance regionalista, também contribuiu para nossa visão de Brasil diverso, amplo, com várias particularidades, mas ainda assim único”, analisa França. 

Dialogando com o professor da UFPE, Andréa Sirihal Werkema afirma que Alencar é, na literatura brasileira, o que se poderia chamar, realmente, de um fundador. “Em vários aspectos, ele institui padrões para a produção literária de nossos séculos XIX e XX. Da bandeira do nacionalismo literário, que ele empunha e fixa como padrão para o nosso romantismo, à discussão sobre uma língua literária brasileira, incluindo a criação de modelos de romance que estabelecem em definitivo o gênero entre nós e ainda a pesquisa sobre as múltiplas realidades nacionais”, diz Andréa, para quem tais questões o credenciam como um autor fundamental em nossa história literária.

Relevância e linguagem
Andréa Sirihal Werkema salienta que os romances de Alencar podem ser lidos como fragmentos de um projeto de conhecimento da realidade nacional, uma vez que contemplam diversas realidades que conviviam no Brasil do século XIX e/ou o conformavam — como cidades, vida em sociedade, campo, história do Brasil e exotismo indianista. 

“Mas não só isso. Dentro de gama tão variada, é possível dizer que o ponto de contato entre os romances do autor é a preocupação com o estabelecimento do gênero [romance] no Brasil, pois Alencar demonstrou em mais de um momento preocupação em buscar uma forma literária para a nova literatura que se instituía num país novo, e também a necessidade de usar e discutir uma língua nova, marcadamente brasileira, para a expressão de sua literatura”, diz a estudiosa.

Para Alberto Mussa, Alencar foi um romancista erótico, antropológico, heroico, irônico, psicológico, em sua circunstância histórica, ou seja, no momento da formação do romance brasileiro, quando não existia praticamente nada de relevante. Ele observa que, na obra de Alencar, convivem algumas linhas temáticas diversas, mas que não se repetem em todos os romances.

“Nem todas as narrativas têm pontos de contato. As minas de prata (romance publicado em dois volumes, em 1865 e 1866) não tem nada a ver com Lucíola (1862). Encarnação (1893) é completamente diferente de O gaúcho (1870). Mesmo entre Ubirajara (1874) e O guarani (1857), classificados como ‘indianistas’, há quase nada em comum, salvo a presença de personagens indígenas”, analisa Mussa. 

Eduardo Melo França diz que, em todos os livros de Alencar, é possível reconhecer uma vontade de desvendar e representar o Brasil: “Se é viável ler Machado de Assis, Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa a partir de chaves simplesmente literárias, como o humor, a linguagem e a construção psicológica dos personagens, toda a obra de Alencar se confunde com o Brasil.” 

França lembra que o legado do escritor cearense costuma ser dividido em três partes: romance urbano (Senhora), romance indianista (Iracema) e o romance regionalista (O gaúcho). Alberto Mussa analisa que Iracema também pode, por exemplo, ser classificado como romance histórico, “pois se inspira em um personagem real, Martim Soares Moreno (1586-1648)”.


Leo Gibran Ilustrações
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Imaginário de Alencar
A professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Maria Eunice Moreira comenta que Alencar viveu apenas 48 anos e, nesse relativo curto tempo de vida, tratou de todas as questões relevantes do contexto em que esteve inserido, mostrando-se um homem comprometido com o seu tempo e lugar. Eduardo Melo França acrescenta que, por meio do romances urbanos do autor, ficamos conhecendo a rotina da então capital brasileira, o processo de afrancesamento da nossa cultura e o que se costuma chamar mercantilização do casamento.

Alberto Mussa acredita que nenhum escritor, de qualquer época ou lugar do mundo, problematizou todas as questões do tempo em que viveu: “Nem Machado de Assis, que é o maior escritor já nascido no planeta, alcançou esse feito. E nem Balzac, que tentou fazer um painel completo da humanidade, abordou todas as grandes questões da sua época.” Mussa tem a impressão de que Alencar tratou as questões que eram relevantes para ele, José de Alencar. “Isso já é bastante”.

Andréa Sirihal Werkema pondera que não é tão óbvia a problematização de “questões de seu tempo” na obra de Alencar, a não ser que se considere um espectro maior, e não apenas os seus romances. “É da natureza do escritor romântico a evasão para tempos e lugares diferentes, o que aparece forte na veia indianista, histórica ou mesmo regionalista de Alencar. É certo que esses seriam aspectos fundamentais de uma preocupação com os temas nacionalistas e mesmo formadores de nossa literatura”, argumenta.

A professora da Uerj salienta que, por outro ponto de vista, certas questões mais diretamente ligadas ao momento da produção de sua prosa aparecem nos chamados romances urbanos, que buscavam retratar personagens e situações na corte fluminense contemporânea à sua escrita. No entanto, continua Andréa, mesmo aí [romances urbanos] as questões dizem respeito a costumes, à moral, hábitos mundanos, vestimentas, tabus e conformações das classes sociais na cidade que centralizava o interesse público do Segundo Reinado (1840-1889).

“É na crônica folhetinesca e no teatro que José de Alencar vai tocar em questões mais prementes de sua época, como a política exterior, os eventos da política nacional e a escravidão”, comenta a estudiosa. Andréa não deixa de notar a ausência de protagonistas negros escravos nos romances do escritor. “Há tematização da condição servil em peças como Demônio familiar (1857) e Mãe (1860). O teatro, no século XIX, era o lugar de debate e polêmica, e sua condição pública talvez tenha atraído o polemista Alencar a discutir certas questões”, completa. 

Múltiplo impacto
Peri e Ceci, do romance O guarani, são apontados por Alberto Mussa e Maria Eunice Moreira como os mais impactantes personagens criados por José de Alencar. “Eles representam o ponto central da proposta para a literatura nacional, nos termos em que a pensava José de Alencar”, comenta Maria Eunice. Para Eduardo Melo França, quem se destaca no legado do escritor cearense é Aurélia, protagonista do romance Senhora (1875) — uma das primeiras personagens femininas da literatura nacional: “Ela é forte, fria, magoada e maquiavélica.”

Andréa Sirihal Werkema afirma que uma das heranças da obra de Alencar é a nomeação de brasileiros e brasileiras a partir de suas obras e de seus personagens, entre os quais Iracema. O nome, lembra a estudiosa da Uerj, é criação de Alencar, que o formou livremente a partir do que acreditava significar “lábios de mel” em tupi: “No entanto, o nome não existe no vocabulário da língua indígena, sendo original e, portanto, inteiramente literário. É um atestado de força e de fixação no imaginário nacional”.

A obra de Alencar tem impacto múltiplo e influencia, como aponta Alberto Mussa, a cultura popular, “uma vez que personagens da literatura dele deram nome e caráter a caboclos da umbanda, como Ubirajara e Peri.” Andréa Sirihal Werkema chama a atenção para o fato de que o legado do escritor foi fundamental para a obra de outro grande romancista, Machado de Assis, que — de acordo com a pesquisadora — “soube ver em seu predecessor as qualidades que faziam dele um escritor original, criativo, fundador de uma tradição de narrativas brasileiras”.

Maria Eunice Moreira destaca a militância de Alencar, por meio da literatura, pela autonomia do Brasil: “Ele entendia que a literatura poderia ser um elemento forte e decisivo para a construção da pretendida independência brasileira, pois o escritor considerava a literatura nacional como a própria ‘alma da pátria’”.

Já Eduardo Melo França analisa que, até mesmo no século XXI, o Brasil segue os conselhos do autor de Iracema (1865) para se apresentar diante do mundo. “Nossas belezas naturais e exotismos ainda parecem o nosso cartão de visitas. Se hoje reconhecemos beleza e importância na contribuição indígena para a construção do povo brasileiro, devemos muito a Alencar”, afirma França.