Reportagem | Cristiano Castilho

Oásis da tradução

Uma confluência de fatores — acadêmicos e casuais — fez do departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná uma referência na formação de tradutores, que com prêmios e trabalhos de fôlego estreitaram os laços entre a universidade e o mercado editorial

Cristiano Castilho

Foto: Karina Kranz Sabbag
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Não é tão pop quanto Karol Conka. Nem tão discreto quanto Dalton Trevisan. Mas o que está acontecendo nos corredores do departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) vem chamando a atenção do mercado editorial brasileiro. 

Desde 2012, após a tradução de Ulysses, de James Joyce, feita por Caetano Galindo, professor de Linguística da UFPR, uma série de tradutores ligados à principal universidade do Estado tem se destacado. Um bom exemplo é o poeta e professor de Língua e Literatura Latina Guilherme Gontijo Flores. Ele venceu, em 2013 e 2014, respectivamente, os prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Jabuti de tradução por Anatomia da melancolia, de Robert Burton (1577–1640). No apagar das luzes de 2017, ganhou mais uma vez o APCA, dessa vez por seu trabalho em Fragmentos completos, da poeta grega Safo, que viveu entre os séculos VII e VI a.C.. 

A investigação sobre os triunfos recentes na área encontra explicação parcial na sinergia e na camaradagem que há no grupo de professores envolvidos. Por exemplo: o projeto de Burton chegou até Gontijo por indicação de Galindo. Uma coisa puxa a outra, e os envolvidos trocam trechos de traduções em progresso entre si. “Já fizemos até tradução coletiva, a dez mãos”, lembra Gontijo, que pontua os louros com dois palpites. “O primeiro é uma coincidência feliz: pessoas interessadas no assunto que se encontraram por acaso (ou não). A outra é a valorização da figura do tradutor. Antes, pensava-se menos sobre o assunto. Hoje há mais visibilidade,” diz Gontijo, autor do livro de poemas Brasa enganosa (Patuá, 2013), que ficou entre os finalistas do prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos).

A popularização da figura do tradutor encontra em Gontijo um bom exemplo. Ele é um dos integrantes do grupo Pecora Loca, que faz “performances de tradução” em eventos e saraus. Cervejinha, música e canções estão no cardápio. “É uma função importante para desmistificar o conceito de tradução e o tradutor”, explica o brasiliense, que atualmente se dedica à tradução da obra completa de Quinto Horácio Flaco (65 a.C — 8 a.C), poeta e filósofo romano.

Foto: Divulgação
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Mauricio Cardozo é o coordenador da área de Estudos da Tradução do curso de Letras da UFPR desde 2001. Segundo seus colegas, um dos responsáveis pela “era de ouro da tradução” na universidade.

Para Sandra Stroparo, professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária da UFPR desde 1998, seria “bairrismo” entender a cidade, em si, como causa da prolificação de bons tradutores. “Esta história está acontecendo aqui neste momento porque pessoas de diversos locais, que gostam do que estão fazendo, se encontraram”, diz Sandra, tradutora de Axël, de Auguste Villiers de L’Isle-Adam (1838-1889). 

Professor do departamento de Polonês, Alemão e Letras Clássicas há 25 anos, Paulo Soethe é um notório pesquisador da obra de Thomas Mann — ele assina o posfácio da nova versão do romance, feita por Herbert Caro, publicada em 2016. Pelas suas realizações acadêmicas, recebeu em 2015 o Prêmio Jacob und Wilhelm-Grimm do DAAD — Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico. Foi a primeira vez que um latino-americano foi contemplado.

“Acho que há uma confluência de fatores que explica este pequeno oásis. Temos muita sorte de termos colegas que se formaram na UFPR e são, digamos, da “cena” de Curitiba. Outras pessoas vieram de fora e se agregaram a esse time. É um momento muito feliz para a universidade porque ela sai de uma certa condição provinciana, ou periférica, em que estava. A área de Letras é uma das melhores do país há muitos anos. O sucesso me parece uma consequência disso”, diz Soethe, que cita ainda os tradutores e professores da UFPR Marcelo Paiva de Souza e Piotr Kalinowski — este responsável por verter a poesia de Paulo Leminski para o polonês — como integrantes desta plêiade moderna. 

     Foto: Kraw Penas
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Sandra Stroparo é professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária desde 1998. Para ela, o encontro de pessoas de diversos locais, não só de Curitiba ou do Paraná, que gostam do que estão fazendo, ajuda a entender o bom momento da tradução na UFPR.

A continuação de sua explicação encontra suporte no profundo e abrangente caldo cultural curitibano. “Neste momento de globalização, temos essa característica: a cidade valorizando naturalmente suas essências multiétnicas, como se reencontrasse, na tradução, com imigrantes dos países que a formaram. Isso reverbera.” Eventos acadêmicos diversos, como oficinas de tradução e colóquios promovidos pela UFPR nos últimos anos, também colaboram para aumentar o interesse e a divulgação do trabalho realizado na Reitoria (campus onde funciona o departamento de Letras), de acordo com o professor.

Para Caetano Galindo, existe incontestavelmente uma era de ouro na tradução da UFPR, que envolve Curitiba e o Brasil. “Há uma geração inédita e multilíngue de acadêmicos, o que gera um padrão de qualidade e um volume de produção nunca antes visto. Fora isso, tem a internet. Não é mais relevante o local onde está o tradutor e a editora. Isso mudou completamente o mercado e abriu possibilidades”.

O estopim
Mauricio Cardozo entrou na UFPR em 1997. Naquela época, discutia-se uma reforma do curso de Letras. Aproveitando a deixa, o primeiro ato de Cardozo na universidade foi sugerir à coordenação do curso uma matéria optativa de tradução — termômetro que provou o que se pensava. “Bombou”, diz o tradutor de Theodoro Storm (1817—1888). “Quando saiu a reforma do curso, em 2001, incluímos no bacharelado um perfil formativo em tradução. Muita gente se interessou e ajudou a institucionalizar o curso. Deu muito certo. Não movimentou multidões como filmes do Brad Pitt, mas tem uma demanda constante desde então”, brinca Cardozo, que, citado unanimemente por todos os entrevistados para esta reportagem, pode ser considerado como “o pai da criança”. Há mais de 15 anos, com “algumas interrupções”, ele coordena a área de Estudos da Tradução na Federal do Paraná.

Foto: Rafael Dabul
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Com vários prêmios por suas traduções, Guilherme Gontijo Flores também é poeta e um dos integrantes do Pecora Loca, grupo que faz “performances de tradução”.

O curso foi instituído em 2001 e, hoje, um terço de todo o contingente de alunos de Letras frequenta as disciplinas ministradas por lá. “Foi uma iniciativa decisiva para catalisar o interesse. Outro ponto importante é o espaço na Editora UFPR para a tradução, ainda sob a batuta de Luís Bueno. Isso alavancou a carreira de muita gente. Aí vieram gerações de alunos-tradutores, e o caso de Adriano Scandolara [poeta e tradutor do britânico Percy Bysshe Shelley (1792-1822)] é o mais exemplar”, discorre Cardozo. “Todo mundo vai ouvir falar dessa galera também”, prevê o tradutor da autobiografia de Johann Wolfgang von Goethe, De minha vida: poesia e verdade (Editora Unesp). 

A receita do sucesso? Um curso teórico, mas com disciplinas práticas de tradução e crítica, em que se trabalham trechos de obras em busca da melhor receita possível para a versão em português. Em resumo, proporcionar um jogo de cintura aos alunos que, recentemente, tendem a prosseguir no mundo acadêmico após o bacharelado em Tradução. 

Antes da criação do curso, ainda nos anos 1990, havia um espaço físico na UFPR dedicado à tradução. Um núcleo, digamos, já extinto. “Tinha uma sala. Era um espaço para conversas e leituras, como um escritório de criação. Foi importante porque agregou gente que tinha interesse por tradução. Um espaço herdeiro disso, hoje, é o labora - tório de teoria e crítica de tradução literária”, conta Cardozo. 

Vitrine
A era de ouro da tradução na UFPR naturalmente atrai a atenção de editoras diversas. “Estão nos olhando de fora agora”, comemora Cardozo. “Há muita gente com trabalho sério e talentoso que conseguiu destaque nacional, e outros que ainda não caíram nessas graças [do mercado]. Um exemplo nosso é Luci Collin.” A contista, poeta, profes - sora e musicista curitibana traduziu, entre outros, Gary Snyder, Gertrude Stein e E. E. Cummings.

Guilherme Gontijo Flores diz que a praxe de grandes editoras era a procura por tradutores de São Paulo e do Rio de Janeiro. “Curitiba vivia, ou vive, ilhada por uma questão geográfica. Mas os sucessos recentes e as indicações entre nós mesmos criaram um outro paradigma. Vamos ver até onde vai.” 

A FILA ANDA
O que mais impressiona na chamada “era de ouro da tradução” é sua continuidade, natural e efetiva. Veja o caso de Emanuela Siqueira, de 31 anos. Mestranda em Estudos Literários na UFPR, ela traduziu seis ensaios de Virginia Woolf (1882-1941). Os textos inéditos fazem parte da coleção Leia Mulheres e serão publicados pela editora Arte & Letra. Emanuela estuda inglês desde criança, e já se envolveu com a tradução em diferentes formas — legendas e quadrinhos entre elas. “Comecei a ‘brincar’ mais com literatura em 2013, quando pesquisei sobre escritoras da geração beat. Faço parte de uma vertente que pensa a questão de gênero também na tradução”, diz Emanuela. Ela destaca o estudo “penoso” para trabalhar profissionalmente no meio e o laboratório de prática de tradução da UFPR como características marcantes. O e-mail e a internet a ajudam no processo. “Discordo que seja um trabalho solitário. Meu trabalho é muito coletivo”. Emanuela não vê perspectiva, ao menos por enquanto, de viver de tradução — “paga-se muito mal pelo tempo que você trabalha num livro.” Mas seu entendimento sobre tradução, atual e humanista, certamente lhe abrirá portas. “Para mim é meio utopia, mas o fato de você tornar acessível e disponível um texto que muitas pessoas não leriam é gratificante.” Outro exemplo da renovação de tradutores da UFPR é Angelica Neri. Aos 25 anos, a mestranda em tradução trabalha num projeto ousado: a tradução de todas as versões disponíveis dos poemas do austríaco Georg Trakl (1887-1914), a ser publicado pela Editora da UFPR. “A área de tradução aqui é muito forte. São poucos os cursos voltados para o mercado de trabalho como o que há na UFPR, que alia teoria e prática. O tradutor sempre foi uma figura relegada, meio apagada. Isto, felizmente, está mudando”, diz.


EDITORA UFPR PREPARA TEXTOS INÉDITOS
A Editora UFPR prepara o lançamento de uma coleção de 20 volumes com tradução de textos históricos sobre teatro. Vários professores da universidade estão imersos no trabalho que envolve obras de Sêneca, Anne Carson e Thomas Bernhard, entre outros autores.
“A coleção foi aprovada no nosso conselho editorial, e o foco é a tentativa de preencher uma lacuna no mercado quando se trata de peças teatrais”, diz o diretor da Editora UFPR, Rodrigo Tadeu Gonçalves. A previsão é que o lançamento ocorra no começo de 2018. Sobre o momento singular da tradução na UFPR, Rodrigo entende que há uma retroalimentação do interesse, que passa por alunos que se tornam professores. Além, claro, da institucionalização do curso em 2001.