Reportagem | Biografia Wilson Bueno

Da solidão de um exagerado na província

Biografia romanceada A pulsão pela escrita, do jornalista e escritor curitibano Luiz Manfredini, recupera a trajetória de Wilson Bueno, um dos nomes mais inventivos da literatura paranaense e cuja história de vida encanta tanto quanto sua obra

Daniel Tozzi

Classificar a obra de Wilson Bueno (1949-2010) sempre foi um desafio para a crítica literária. O autor paranaense trafegava pela crônica, conto, prosa poética, romance e, como se isso não bastasse, não se limitava sequer a escrever em uma só língua (no célebre Mar paraguayo, seu livro de 1992, o leitor é apresentado a um enredo contado em um mix de espanhol, português e guarani). Quando Luiz Manfredini começou a escrever sobre a vida de Bueno, de quem foi amigo na infância, decidiu que a obra igualmente iria transgredir os rótulos dos gêneros convencionais e não seguiria a lógica temporal dos acontecimentos. Por isso, A pulsão pela escrita, como o próprio autor aponta no prefácio, trata-se de um “amálgama imperfeito de biografia, romance e jornalismo. Nem um, nem outro, um pouco de tudo.”

O livro, cuja pesquisa contou com o patrocínio da Itaipu Binacional, tem previsão de lançamento pela editora Ipê Amarelo para o dia 18 deste mês. Durante os últimos três anos e meio, Manfredini mergulhou fundo na trajetória literária e de vida de Bueno, uma personalidade “cheia de altos e baixos”, como o “biógrafo” define o “biografado”. Para escrever o livro, o autor coletou mais de 50 depoimentos em Curitiba e no Rio de Janeiro, teve acesso às inúmeras correspondências assinadas por Bueno (com destaque para as cerca de 200 cartas que o autor de Bolero's bar (1989) e Meu tio Roseno, a cavalo (2000) trocou com o também escritor João Antônio, seguramente seu maior confidente em vida) e leu as cerca de 1.300 páginas do processo judicial que envolve o assassinato de Bueno, em 2010.

                                                                                                                                                                                                                                                                                       Foto: Divulgação
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Voar sem asas
Escrito fora de ordem cronológica, a obra rememora intercaladamente passagens importantes da trajetória do escritor nascido em 1949 na pequena Jaguapitã, no Norte do Paraná. O trágico relato do assassinato de Bueno na madrugada de 31 de maio de 2010 é a cena escolhida por Manfredini para abrir o livro. O trecho, aliás, é um dos que justificam a classificação da obra como uma “biografia romanceada”, dado seu caráter mais literário. Com base em depoimentos de amigos, familiares, companheiros de trabalho e até mesmo de seu analista, A pulsão pela escrita narra a chegada de Bueno a Curitiba ainda na infância, a decisiva ida ao Rio nos anos 1960 e o posterior retorno à “província” em 1979, onde daria, enfim, início à sólida carreira na literatura e no jornalismo a partir do trabalho à frente de o Nicolau, jornal cultural de Curitiba que marcou época entre as décadas de 1980 e 1990, do qual foi editor durante 55 edições — de um total de 60.

Vizinhos de rua e amigos na infância, Bueno e Manfredini trocavam figurinhas sobre literatura — “em especial contistas norte-americanos do início do século XX” — e estabeleceram uma relação muito próxima até 1968, quando Bueno partiu para o Rio na empreitada que considerava imprescindível para suas aspirações literárias. “Ambos tínhamos essa ânsia de ir para uma cidade maior e o Rio era na época o grande centro cultural do país”, conta Manfredini. Nas efervescentes terras cariocas do final da década de 1960, o jovem Wilson teve sua temporada de desbunde e, apesar dos excessos, (etílicos e sexuais) entrou em contato com figuras do quilate de Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Waly Salomão e Clarice Lispector.

Entre o vai e vêm atemporal dos episódios da vida de Bueno, Manfredini destaca no livro dois aspectos: o sentimento ambíguo por Curitiba, cidade que, ao mesmo tempo que o irritava por seu então provincianismo reinante, também era o único lugar em que conseguia ser produtivo na escrita, e o papel preponderante que o álcool (ou a falta dele) tiveram para sua vida. “Quando Bueno voltou para Curitiba, ele viveu essa contradição. Aqui era sossegado, não tinha aquela loucura dos tempos de Rio de Janeiro, mas tinha sempre o aspecto provinciano da cidade, que o angustiava”, explica Manfredini.

Já sobre a relação de Bueno com o álcool, Manfredini comenta que, com pequenos intervalos, o autor de Amar-te a ti, nem sei se com carícias (2004) bebeu intensamente entre 1968 e 1990. “Com a sobriedade, aquilo que Bueno enxergava no álcool passou a ver com mais ênfase na palavra, o que explica o fato de quase toda sua obra ter sido produzida no período em que ficou sem beber”, diz. Para o jornalista, a substituição do álcool pelo exercício da literatura fez da escrita a verdadeira pulsão na vida de Wilson Bueno, daí o título do livro. “Ele tinha uma necessidade vital de escrever. Era a forma dele de se relacionar com o mundo”, complementa Manfredini, também autor de As moças de Minas (1989), Memória de neblina (2011) e Retrato no entardecer de agosto (2016). 

À margem de tudo
No ainda pouco explorado mercado editorial de biografias de escritores paranaenses, A pulsão pela escrita é um dos raros livros que tratam de expoentes da literatura do Estado no século XX — um dos poucos títulos do gênero é Paulo Leminski: o bandido que sabia latim (2001), de Toninho Vaz. Para além da amizade de infância entre Manfredini e Bueno, o fato deste último ser um artista que não escrevia para o gosto do mercado e a carga original de sua obra despertaram o interesse do primeiro para escrever a biografia. “Bueno fazia questão de ficar sempre na marginalidade, muito por conta do apreço que tinha pela linguagem. Foi uma grande personalidade e a biografia pode contribuir para manter viva sua literatura”, explica Manfredini, que alerta: “Não me proponho a fazer uma crítica literária da obra dele, não é minha praia. Eu procuro contar a história do Wilson e trato os livros dele pela opinião das pessoas e da crítica em geral da época”.

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Resultado de quase quatro anos de trabalho, A Pulsão pela escrita é o quarto livro do jornalista e escritor Luiz Manfredini. Lançamento acontece no próximo dia 18 pela editora Ipê Amarelo

Boa parte da obra de Bueno traz consigo uma influência muito grande de autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Franz Kafka e, para Manfredini, as leituras de Bolero’s bar (1986) e Mano, a noite está velha (2011) — livros em que Bueno mais se liberta dessas influências, segundo ele — foram os que mais contribuíram para a construção da biografia. “Essas obras possuem traços autobiográficos e me ajudaram a conhecer e entender vários aspectos da vida dele, como suas memórias de infância e a relação com a família”. Já o apreço pela transgressão e a marginalidade, que segundo Manfredini acompanharam Bueno por toda a vida, podem ser exemplificados na passagem do livro em que a jornalista e poeta Marianna Camargo, que conviveu com o escritor na redação de o Nicolau, conta a reação de Bueno ao saber da legalização da união homoafetiva: “Um absurdo, pois, para ele, ser gay era desafiar o estabelecido”.