Reportagem | Academia Brasileira de Letras

Por dentro da ABL

O jornalista e cronista Alvaro Costa e Silva faz um perfil da Academia Brasileira de Letras, entidade que acaba de completar 120 anos e reúne não apenas escritores, mas também personalidades da cultura brasileira

Divulgação ABL
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A o longo do tempo, ela teve alguns apelidos: cenáculo, sodalício, Petit Trianon, Trianonzinho. E o mais imponente deles: Casa de Machado de Assis. A estátua do escritor, que antes dominava o jardim em frente à Avenida Presidente Wilson, no Centro do Rio, hoje está recuada ao lado do prédio, mas lá continuam a inscrição “Para que o desaparecido da terra voltasse à superfície da vida ressurgido em glória” e a frase famosa que anima a vida acadêmica: “... a glória que fica, eleva, honra e consola”. Ao mesmo tempo vetusta e moderna, a Academia Brasileira de Letras — ou simplesmente a ABL — está fazendo 120 anos.

A ideia da Academia foi do escritor Lúcio de Mendonça, que costumava se reunir para beber chá com Machado de Assis (eleito o primeiro presidente), Joaquim Nabuco, Graça Aranha, Olavo Bilac, os mais notáveis literatos da época. A sessão inaugural se realizou no dia 20 de julho de 1897, no Pedagogium, perto do Passeio Público. No Brasil real, jacobinos e monarquistas viviam a pauladas e pedradas nas ruas, e uma primeira expedição militar tinha sido enviada ao arraial de Canudos, no sertão baiano.

“Essas datas redondas ensejam que você se dê conta do papel da instituição na trajetória brasileira”, acredita Nélida Piñon, que desde 1999 ocupa a cadeira nº 30. “No tempo da fundação, recém-saíamos da monarquia. Tínhamos a destruição de uma iconografia sagrada, que era a barba do imperador, e vivíamos desconfiados da república. Lembremos Canudos. Para Vargas Llosa, foi um movimento de fanáticos. Para mim, a reação de um povo abandonado, repudiado, miserável, pobre. De repente, essa sociedade resolve, por força de um grupo de alto brilho intelectual, criar a Academia. E todos os acadêmicos eram pobres também.”

No início, a sede da ABL foi itinerante: mudou-se para o Ginásio Nacional, deste para a Biblioteca Fluminense e até para o escritório do advogado e político Rodrigo Octavio. Um ato oficial a instalou em uma ala do Silogeu, na Lapa. Por fim, em 1923, o governo da França doou o Petit Trianon, réplica do de Versailles, construído para abrigar o pavilhão francês na Exposição do Centenário da Independência. Nesses tempos de vacas magras, o livreiro Francisco Alves a socorreu para o futuro, deixando uma fortuna em imóveis. Ao lado do Petit Trianon, o Palácio Austregésilo de Athayde, prédio gigante com 28 andares, 12 elevadores sociais e 112 vagas de garagem, foi inaugurado em 1979. A Academia — agremiação privada sem fins lucrativos que, em sua administração, emprega 127 funcionários — depende dele para existir.

Tempo instável
Domício Proença Filho — como ele mesmo se define — é “o presidente da crise”. Eleito para o biênio 2016-2017, o pesquisador da língua portuguesa diz que anda com os cintos bem afivelados. “A ABL está sofrendo os impactos da crise econômica que o país atravessa. Muitas pessoas pensam que somos uma repartição pública. Quando tomei posse, recebi congratulações pela minha ‘nomeação’. A ABL não tem subvenção. Vivemos de aplicações financeiras e sobretudo do aluguel de nossas salas no prédio comercial. Como o mercado imobiliário foi afetado, entramos em turbulência. Por sorte, fomos precavidos e agimos com cautela. Mesmo assim, tivemos de tomar algumas medidas emergenciais.”

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O atual presidente da ABL, Domício Proença Filho, diz que muitas pessoas ainda acham que a instituição é um órgão público: “Quando tomei posse, recebi congratulações pela minha ‘nomeação’”.

A mais drástica foi o corte no programa de edições. Estão suspensas as publicações da Revista Brasileira e das coleções “Afrânio Peixoto”, que contempla obras clássicas esgotadas, e “Austregésilo de Athayde”, destinada a autores contemporâneos. Continuam em atividade os ciclos de conferências, as sessões semanais com a participação dos acadêmicos, além do seminário “Brasil, Brasis”, que trata mensalmente de temas vinculados à realidade brasileira contemporânea. A instituição oferece ainda, no Teatro Raimundo Magalhães Jr., com capacidade para 300 pessoas, concertos de música de câmara e de música popular brasileira. 

As visitas guiadas são o projeto com maior aceitação do público: um grupo de atores, com vestimentas de época, acompanha os visitantes contando fatos históricos e curiosidades dos imortais, enquanto percorrem o Salão Nobre, a Sala dos Poetas Românticos e a Biblioteca Lucio de Mendonça. Esta, atualmente com 30 mil volumes, abriga doações das coleções particulares dos acadêmicos e de bibliófilos, destacando-se a edição “princeps” de Os Lusíadas e um raríssimo exemplar das Rhythmas, de Luís de Camões, impresso em 1595.

Inaugurada em 2005, a Biblioteca Rodolfo Garcia, que atende à comunidade em geral e, em especial, a pesquisadores graduados, com quase 85 mil volumes, é a menina dos olhos de Domício Proença Filho. “Como a ABL não tem destinação pedagógica, não podemos oferecer projetos de formação de leitores. Mas tudo aqui é incentivo à leitura. Nossa escola é a literatura, respiramos livros. Visitem nossas bibliotecas e consultem nossos arquivos disponíveis na internet”, convida o atual presidente.

A próxima administração, cujo mandato irá começar no ano que vem, tem a promessa de uma folga nas finanças. Decano entre os acadêmicos, titular da cadeira nº 38 desde 1980, o senador José Sarney patrocinou a aprovação de um projeto de lei que dá isenção tributária e perdão das dívidas em aberto com a Receita Federal à ABL. O presente, que também se estendeu à Associação Brasileira de Imprensa e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, levou a assinatura do presidente Michel Temer, poeta bissexto que — dizem alguns bustos do Petit Trianon — nutre a veleidade de vestir o fardão.

“A vigência da isenção é só a partir de 2018. Mas, sem dúvida, num momento difícil, facilita a continuação das atividades”, diz Nélida Piñon, atual secretária-geral e candidata à presidência praticamente eleita na votação de dezembro. Será a volta de Nélida, que em 1997 se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo — e justamente no ano do centenário da ABL. Seu prestígio entre confrades e confreiras (Lygia Fagundes Telles, Ana Maria Machado, Cleonice Berardinelli, Rosiska Darcy de Oliveira) continua enorme. “Minha gestão como presidenta foi uma prova de que não havia preconceito. Concorri com os maiores cardeais da casa, todos os homens, e ganhei”, lembra a romancista carioca.

Para ser imortal
A Academia Brasileira de Letras é um dos clubes mais fechados do país. Com apenas 40 sócios, efetivos e perpétuos. “Quarenta grandes egos”, completa Nélida. Uma velha blague de Olavo Bilac afirma que os acadêmicos eram chamados de imortais porque “não tinham onde cair mortos”. Não é bem assim. Eles não gostam de falar no assunto, mas têm um salário, que fica em torno de R$ 10 mil mensais. São os famosos “jetons”, recebidos pelas participações nos encontros das terças e quintas. Todos têm planos de saúde e direito a ser enterrados no mausoléu do Cemitério São João Batista.  

Para entrar na ABL, o estatuto estabelece que é preciso ser brasileiro nato e ter publicado, em qualquer gênero de literatura, ao menos uma obra de reconhecido mérito. Isso explica porque não só escritores de ficção compõem o grupo. “O modelo de notáveis foi inspirado na Academia Francesa. Se fosse exclusivamente de escritores, ela teria um futuro duvidoso”, acredita Domício Proença Filho. “Daí que no passado tivemos Getúlio Vargas, e agora temos Fernando Henrique Cardoso. Ivo Pitanguy era o maior cirurgião plástico do mundo, e conhecia profundamente todos os romances de Balzac e sabia de cor os versos de Rimbaud. Hoje contamos com cineastas como Nelson Pereira dos Santos, economistas como Edmar Bacha, jornalistas como Zuenir Ventura.”

Na verdade, um candidato, para ter reais chances de vestir o fardão — o uniforme de gala, inspirado na roupa dos carabineiros de Calábria, casaca verde musgo bordada com fios de ouro, camiseta, suspensório e chapéu de veludo estilo Napoleão, além da espada presa à cintura — precisa mais do que ter publicado, por conta própria, uma pequena brochura com versos de circunstância. É necessária uma representatividade reconhecida pela confraria. Ou ter uma história indiscutível dentro da cultura brasileira. Um exemplo sempre citado é o de Alberto da Costa e Silva, que reúne, em um só acadêmico, as qualidades de diplomata, poeta, historiador, memorialista, africanólogo. 

A eleição é por maioria absoluta de votos, e os papéis com as escolhas são queimados num caldeirão. Durante a campanha, o fundamental é chegar na hora certa, ter senso de oportunidade: “Na primeira vez, cheguei atrasado”, reconhece Antônio Torres. “Fui entregar a carta de candidatura. Ainda na porta do elevador, o então presidente Cícero Sandroni a recebeu e me ofereceu uma carona. No carro, ele disse: ‘Não vou votar em você. Já me comprometi com o Luiz Paulo Horta, e acho que ele vai ganhar. Mas você faz muito bem em se candidatar. Não desista. Vá até o fim. Você vai perder, mas não desista’. Repasso esses ensinamentos para os futuros pretendentes”, diz Torres.

Na segunda tentativa, o escritor também se atrasou, mesmo entregando a carta logo após a sessão da saudade (quando a cadeira é declarada vaga oficialmente) de Moacyr Scliar. A maioria dos acadêmicos já estava comprometida com a candidatura do jornalista Merval Pereira, que, com obra menos expressiva que a do adversário, contava com a força das Organizações Globo. “Aprendi a não ficar afobado”, conta ele, enfim eleito em 2013. Sua cadeira é a 23, cujo patrono é José de Alencar e o fundador Machado de Assis — tudo a ver com um romancista de vocação como Torres. 

Na dança das cadeiras, a próxima já tem dono: o poeta e ensaísta Antonio Cícero será eleito em agosto para a vaga de Eduardo Portella. O escritor Alfredo Sirkis e Claudio Aguiar, presidente do PEN Clube do Brasil, não têm chances. A lista de futuros candidatos vistos com bons olhos pelos acadêmicos também está esboçada: a jornalista Míriam Leitão, apoiada por Merval Pereira, hoje um dos cardeais da casa; o jurista Joaquim Falcão; os economistas Eduardo Gianetti da Fonseca e Gustavo Franco; entre os escritores, os nomes mais fortes são os de Ignácio de Loyola Brandão — que ganhou o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, um indicativo da própria ABL — e de Alberto Mussa, considerado uma barbada. Ganha quando se candidatar, o que não está em seus planos, ao menos por enquanto. 

Kraw Penas
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O romancista baiano Antônio Torres foi derrotado em duas votações até ser eleito para a cadeira número 23 da ABL, cujo patrono é José de Alencar.

Clima amistoso
Apesar das disputas, o clima é de harmonia. “A ABL é uma casa de amigos”, garante Domício Proença Filho. “O mais importante é fazer de nossas sessões um espaço de reflexão e de preservação da memória. Em que outro lugar pode-se ouvir o depoimento de Alberto da Costa e Silva sobre a gênese da obra de Guimarães Rosa feita pelo próprio autor? Ambos eram colegas no Itamaraty, e Alberto conta que Rosa teve receio na hora de dar o título do seu genial romance. Achava que Grande sertão: veredas poderia soar como um plágio de Os sertões de Euclides da Cunha.”

Para Nélida Piñon, existe um raro entendimento entre os imortais, mesmo em nossos atuais tempos de radicalismo: “Somos independentes, e temos total liberdade de manifestação. Isso não significa que vamos para o plenário pregar ideologias. Entre nós há discrepâncias enormes, mas aqui não é o Congresso. Não fazemos leis que afetem a vida dos brasileiros. Cuidamos da língua portuguesa e da literatura brasileira”.

Um dos caçulas da turma, eleito em outubro do ano passado, o dramaturgo e poeta Geraldo Carneiro — que um dia pertenceu à Geração Marginal — vale-se de uma história de Millôr Fernandes para ilustrar sua recente imortalidade. Com a casa em obras, Millôr foi obrigado a empilhar todos os seus livros nos corredores, junto às paredes. Um mestre-de-obras olhou aquilo, meditou um instante e falou: “Quanta ignorância!”.

“É exatamente assim que me sinto”, conta Geraldo. “Quanto mais converso com os confrades, mais descubro que nada sei. É muito bom ter contato com grandes especialistas em diversas áreas do conhecimento. Em seu discurso de posse, Manuel Bandeira confessa que, ao entrar para a Academia, espantou-se com a massa crítica que encontrou na casa. Quando li isso, fiquei assustadíssimo. Se Bandeira se sentiu assim, como vou me sentir?”.

Com os longos cabelos que cultiva desde a explosão dos Beatles nos anos 1960 — os quais motivaram certa controvérsia durante a campanha — o poeta vai levando a nova função com garbo. Prepara um seminário sobre a arte da tradução. Já convidou o acadêmico Marco Lucchesi e o tradutor Paulo Henriques Britto, com a intenção de discutir a importância do trabalho de Olavo Bilac, Onestaldo de Pennafort, Odorico Mendes, Paulo Mendes Campos. 

Na ABL, Geraldo voltou a ser Geraldinho. Ele explica: “Só me chamavam com o diminutivo em casa. Ou amigos de infância. Ou ainda quando queriam demonstrar uma falsa intimidade. Como na Academia já estava o ilustre ensaísta Geraldo Holanda Cavalcanti, voltei a ser Geraldinho. É uma espécie de maldição ou bendição”. 


Alvaro Costa e Silva é jornalista desde 1988. Em jornais e revistas cariocas foi repórter, redator, colunista e editor. Publicou o livro Dicionário amoroso do Rio de Janeiro. Atualmente é colunista do jornal Folha de S.Paulo. Vive no Rio de Janeiro (RJ)