Reportagem

Antonio Candido está inteiraço

O jornalista Alexandre Gaioto visita o professor  Antonio Candido, que aos 96 anos avisa: “O crítico literário tem, sim, que falar mal”

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 Não para de entrar gente no boteco. Quem fala no celular já vai encerrando a conversa e dá logo um jeito de arranjar um lugar no balcão, praticamente lotado, em frente à TV: todos os clientes e os funcionários do bar estão hipnotizados. Há um silêncio sacana para ouvir cada sílaba de Lola Benvenutti (ó cantatas de Bach! ó redondilhas camonianas! ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!), a gloriosa bacharel em Letras que trabalha como acompanhante de luxo. Confortavelmente sentada numa cama de motel, Lola conversa com uma dessas apresentadoras quarentonas e dá detalhes sobre o seu primeiro livro, baseado em suas aventuras sexuais. Ali no bar, a poucos metros do apartamento de Antonio Candido, literatura e sociedade se esbarram às 16 horas de uma sexta-feira ensolarada. É hora de pagar as cervejas e ir ao encontro do mestre. Debaixo do braço, levo meu exemplar de Literatura e sociedade (1965), um de seus livros mais conhecidos, para ser autografado — e, quem sabe, testemunhar uma aula do Candido.

Sei que o crítico evita entrevistas. Também não dá as caras facilmente em eventos públicos — e, quando dá, éaquela correria danada atrás de ingressos, inscrições ou para dar algum jeitinho de vê-lo ao vivo. Quando Candido foi à minha cidade, pela primeira e única vez, eu ainda nem era nascido. Ele deu uma conferência antológica na UEM (Universidade Estadual de Maringá), em 1987, sobre o papel da literatura brasileira no contexto latino- -americano. Até hoje, nos corredores do departamento de Letras, ecoam histórias sobre aquela palestra, acompanhada por 250 sortudos que lotaram o auditório da universidade. “Estávamos todos emocionados. O que mais me surpreendeu foi a humildade dele. Disse até que não se considerava um conferencista. Imagina?! Considerava-se, acima de tudo, um professor”, recorda a professora Alice Áurea Penteado, da UEM.

Vinte e sete anos depois que Antonio Candido esteve em Maringá, chego à portaria do prédio do professor. “Sou estudante e vim do Paraná só para conhecê- lo”. O porteiro interfona para o apartamento e já vai abrindo o portão: “O professor já vai te receber. Pode esperar ali”, indica o funcionário, apontando para o sofá branco, próximo ao elevador do prédio.

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ATÉ ACAMPAMENTOS

 “O professor é muito querido por todos nós aqui do prédio”, comenta outro funcionário, que me acompanha até o sofá. Ele mora sozinho desde que sua esposa, Gilda de Mello e Souza, faleceu em 2005, em decorrência de uma embolia pulmonar. Recluso, raramente sai do apartamento. Quando sai, é sempre pela garagem, discretamente, com alguém da família buscando-o de carro. A família, aliás, está sempre por perto. “Hoje, se eu não me engano, é uma das netas que está aí”. Longe do público e dos eventos literários, são leitores que precisam se deslocar até Candido. “Todo mês aparece algum estudante por aqui. Ele recebe todo mundo, conversa, assina os livros. Teve até o caso de um rapaz que veio do Norte. Surgiu aqui no prédio bem no final de semana em que o professor estava viajando. Daí ele tinha uma barraca e ficou acampado aqui em São Paulo. O professor, quando voltou da viagem, fez questão de atender o rapaz. Você vai ver: é um homem muito simpático e engraçado”, adianta o funcionário.

Enquanto o sujeito continua falando sobre o ilustre morador, vou sentando no sofá. Se eu tivesse quase cem anos, levaria um século para descer até a portaria do meu próprio prédio. Mas só espero cinco minutos até o elevador abrir a porta. E tomo um baita susto com a jovialidade do elegante senhor que, a passos céleres e firmes, caminha ao meu encontro.

“Então o senhor veio de Maringá?”, indaga Antonio Candido, abrindo um sorriso amigável e estendo-me a mão. “Estive lá há quase trinta anos, para uma palestra. É uma cidade maravilhosa, mas muito quente”, comenta com uma risada.

A pedido dele, vamos sentando no sofá. Candido veste tons sóbrios. Calça, blusa e sapatos, tudo cinza. Digo que li uma porção de seus livros e que o citodiversas vezes em minha tese de Mestrado. Ele abre um sorriso: o famoso farto bigode.

“Fico muito feliz em ser lembrado pelos jovens. Sobre o que é a sua tese?”

“Sobre Dalton Trevisan.”

“Ah, o Dalton! Ele merece, é um grande escritor. Conheci Dalton Trevisan em 1957, no Congresso de Escritores Brasileiros em Minas Gerais. Ele ainda era muito jovem e surpreendentemente engraçado”, recorda, exibindo sua memória certeira.

Ao Candido, comento que seu Na sala de aula (1985) foi um dos livros mais empolgantes que li durante o curso de Letras. E que a análise primorosa feita por ele sobre o poema “Meu Sonho”, de Álvares de Azevedo, mudou a forma como eu, até aquele momento, me debruçava sobre a literatura. Pergunto, então, o que um jovem crítico literário tem que fazer para se dar bem nesse mundão.

“Quem quiser ser crítico literário tem que ler muito e passar a comparar, mentalmente, os livros: isso já é uma crítica literária. Quando eu era jovem, escrevia descompromissadamente minhas anotações, em cadernos, sobre os livros que lia. Mais tarde, essas notas de leitura foram extremamente importantes para mim. E passei a escrever muito naturalmente. Tomar notas de leitura, portanto, é fundamental. No meu tempo, as pessoas liam muito os estruturalistas, todos os nomes ligados à ‘nova crítica’. Todos liam Roland Barthes, mas não liam Machado [de Assis], Dom Casmurro, não liam Eça [de Queirós]: isso não funciona. Isso é crítica pela crítica. É preciso ler literatura, porque ela vai impregnando. Outra coisa importante: o crítico tem de ler seus próprios textos”, aconselha.

“E é difícil ser um intelectual no Brasil?”, questiono.

Com sua humildade de sempre, Candido dispara:

“Não me considero um intelectual. Sou mesmo um professor. Nem crítico literário me considero. Acho que, falando, consigo expor melhor as minhas ideias”, comenta.

Lembro que ele mesmo já admitiu certo arrependimento ao criticar veementemente Oswald de Andrade, opondo-se, principalmente, à segunda fase do ficcionista. Pergunto, então, se, hoje, Candido se arrepende de ter criticado algum outro autor. E a resposta vem ligeira, sem hesitações.

“Claro que me arrependo. Eu era, sim, um crítico severo. Se achava o romance ruim, escrevia uma crítica negativa. Um dia, depois que critiquei um autor, me avisaram que ele havia comprado uma bengala para me dar uma sova. Fiquei um bom tempo com medo”, comenta, com uma boa gargalhada. “Mas isso é essencial: o crítico literário tem, sim, que falar mal”, defende.

GRANDE WILSON

“No Paraná, vocês tiveram um grande crítico, o Wilson Martins (morto em 2010, em razão de complicações cirúrgicas). Pessoalmente, o conhecia pouco. Ele era muito talentoso. O país inteiro estava, e ainda está, produzindo coisas interessantes, embora eu não leia tudo, evidentemente: fico sabendo por meio das notícias”, diz.

Recluso dos leitores, dos alunos e da mídia, Candido também se mantém distantes dos autores contemporâneos. Quem perguntar a ele sobre a ausência de personagens fortes na atual literatura brasileira — ou qualquer outro tema sobre a ficção de agora — sairá de mãos vazias: “Sou incapaz de ler o romance moderno. Só leio coisas do passado, e meu atual ritmo de leitura é muito lento. Não arriscaria uma resposta sobre isso”.

Embora tenha escrito cerca de duas dezenas de livros teóricos, Candido revela que, em momento algum, sentiu vontade de escrever ficção. “Nunca quis escrever um conto ou um poema. Nunca quis ser um ficcionista. Nunca nem esbocei qualquer ideia de romance.”

O TAL TAXISTA

Autor de clássicos como Formação da literatura e brasileira (1975) e O estudo analítico do poema (1987) — referências básicas para qualquer estudante de Letras —, o professor revela ter, finalmente, encerrado sua
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produção. “Há 30 anos, Alexandre, tomei um táxi. Quem dirigiu foi um motorista muito inteligente. E ele me disse assim: ‘Gente é feito remédio. Tem prazo de validade’. Então, comecei a ver que meu prazo de validade já tinha vencido. Eu já estava ultrapassado. Hoje, reconheço: sou incapaz de escrever outro livro.”

“E quanto à literatura, depois de tantos clássicos e tantas obras iconoclastas, ainda é possível escrever algo inovador?”, questiono.

Sorrindo, o último sobrevivente de toda aquela turma de 1922 não perde a esperança. “Ainda é possível, sim. É como uma epidemia de gripe: de repente, surge tudo de uma só vez. Os períodos de inovações são necessários, senão a literatura se esclerosa”, diz.

Estou feliz à beça. Consegui, finalmente, uma aula com Candido. Ali está o mestre, falando sobre tudo. Música, então? É com ele mesmo.

“Você gosta de Bach, Candido?”

“Ouvi pouco Bach. Dele, o que ouvi muito foram os ‘Concertos de Brandenburgo’. Eu tinha uma grande coleção de LPs e o que eu gostava mesmo era de Mozárt, que hoje todo mundo fala Môzart. Também ouvi bastante Haydn, Chopin, Debussy, Ravel, além da música popular brasileira, as valsas brasileiras e as músicas regionais”, comenta.

O ROCK ERROU

“E o rock, Candido?”

“Ah, o rock nunca chegou até mim.”

Enquanto peço uma dedicatória numa edição novinha de Literatura e sociedade — todos os outros livros dele, em casa, rasurados para danar —, pergunto a Candido como ele quer ser lembrado daqui a quarenta anos. Ali, cara a cara, ele não esconde o sorriso irônico: “Eu não faço questão de ser lembrado. Quero é que me esqueçam”, diz o professor, enquanto assina a obra.

Ao entregar a dedicatória, já rapidamente se levantando do sofá, ele me pergunta: “E você sabe que eu já tenho quase cem anos, né?”

Aquilo soa estranhíssimo. Porque Candido está inteiraço. Algo extremamente louvável, glorioso, feérico. Poder da literatura? Vá saber.

Antes de ir embora, Candido agradece a visita, estende a mão e me dá a bênção final:

“Boa sorte com a sua defesa do Mestrado, Alexandre. E muito obrigado pela sua visita.”

Com passos firmes, o professor caminha até o elevador. Lá se vai o farto bigode. Embora se esconda de todos nós, no coração da Pauliceia Desvairada, ele sabe de nossa eterna gratidão: somos todos discípulos de Candido.

Ilustrações: André Ducci