Reportagem

Em estado crítico

O recente fim de publicações culturais acende sinal amarelo para o espaço da reflexão literária na imprensa brasileira, enquanto a internet redefine parâmetros


Guilherme Magalhães

Durante dez anos ininterruptos, o leitor que procurasse nas bancas por uma publicação cultural que refletisse em alto nível a literatura e a arte da época encontrava eco no Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, que circulou entre 1956 e 1966. Um marco do jornalismo cultural brasileiro, o finado Suplemento, idealizado por Antonio Candido e editado pelo crítico teatral Décio de Almeida Prado, tinha um projeto, segundo Candido, equilibrado entre a tradição e a inovação. Autodefinia-se como “um suplemento artístico, não jornalístico”.

Hoje, entretanto, tal empreitada pode se provar muito mais árdua. Apenas este ano, dois importantes veículos do meio, o caderno literário semanal Sabático, do mesmo Estadão, e a revista mensal Bravo!, da editora Abril, encerraram suas atividades sob a alegação de redução de despesas em setores que não traziam margem de lucro. Dado o cenário árido para a discussão literária na imprensa brasileira, a reportagem do Cândido conversou com jornalistas e críticos para compreender esse panorama, que a cada dia se torna mais complexo com as possibilidades de conteúdo oferecidas pela internet.

MAIS DO MESMO

A crise econômica em que mergulhou o jornalismo impresso, não só no Brasil, mas em todo o mundo, é apontada pelo jornalista e crítico Sérgio Augusto como um dos motivos para as dificuldades de espaço para a cobertura de cultura. “O New York Times é o único grande jornal da imprensa americana a manter um caderno literário. Os demais ou extinguiram os seus ou tentaram acomodá-los online. Hoje, para se ler o bom crítico do Washington Post, Michael Dirda, é preciso acessar a internet”, aponta Augusto.

A jornalista especializada em literatura Josélia Aguiar diz que a crise generalizada da imprensa é um fator importante, porém defende que o espaço hoje é maior do que aquele de cinco ou dez anos atrás. “A impressão que tenho é que foi bem menor nas décadas de 1990 e 2000. Naquela época, com a abertura do país, queda do dólar e estabilização, as editoras passaram a editar muito mais gente do exterior”, o que teria, segundo ela, aberto espaço para mais autores circularem nas páginas dos cadernos.

O que não impediu o surgimento de pautas “previsíveis”, como afirma Josélia, ou, indo além, “a celebração dos já célebres”. A expressão é do editor e fundador do Portal Cronópios, site especializado em cultura prestes a completar dez anos. Edson Cruz, o Pipol, é categórico: “É verdade que os profissionais dos grandes jornais brasileiros estão um pouco preguiçosos e medrosos diante de perigo da extinção de sua vaga na empresa. Vemos com isso a celebração dos já celebres, porque é mais fácil e “não tem erro”. Ele lembra que a cobertura automática dos lançamentos das grandes editoras predomina pelo mesmo motivo.

Diferentemente dos tempos do Suplemento Literário, a reflexão parece ter cedido espaço para a divulgação. “Acredito que os jornais ainda sejam importantes para o escritor e a literatura. Mais no sentido promocional, como estimulador da leitura e divulgador de lançamentos, mais como vitrine do que como arena de discussão”, afirma Sérgio Augusto, que acumula experiência de mais de cinco décadas na imprensa cultural brasileira.

E A CRÍTICA?

O editor do site Digestivo Cultural, Julio Daio Borges, descreve o atual momento como um “vácuo crítico”. “Acredito que vamos passar por uma fase desgovernada até que um novo padrão de crítica, sistemática, se firme”, diz ele. Borges enxerga a crítica feita nos sites e blogs como uma “extensão da personalidade de cada blogueiro, sem se prender a limites, critérios ou manuais”.

Sérgio Augusto não vê negativamente essa característica mais “impressionista” adquirida pela crítica na internet, pelo contrário. “Quanto mais pessoal, melhor — ou pior, se a personalidade for pequena. Não acredito em crítica isenta, ‘científica’”, explica.

“Não há uma ciência na coisa”, concorda Pipol, porém sob um prisma negativo. “Vejo o crítico brasileiro como um desses pastorezinhos evangélicos tentando arrebanhar o seu público de leitores ingênuos”. Para ele, a crítica brasileira precisa se reinventar. “É preciso uma linha de atuação com mais ‘ciência’ e menos personalismo. O crítico brasileiro quer ser popstar. Com essa mentalidade, nem a internet é capaz de salvar a profissão de crítico”, afirma o editor do Cronópios.

FUTURO

Para o crítico e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lourival Holanda, manter o propósito crítico deliberado é fundamental, independentemente do suporte. Ele aposta em uma sinergia. “Um jornalismo revisitando bases teóricas e uma crítica acadêmica mais conectada, ainda que mais perplexa, com o real imediato, com as novas experimentações de fusão de meios e linguagens”, argumenta.

O futuro da crítica, não só da literária, está no meio virtual, vaticina Sérgio Augusto, afirmando que teremos de nos satisfazer com a superficialidade. “Nichos impressos continuarão existindo, como a revista de vocês [Cândido], a Bookforum, a New York Review of Books, a London Review of Books, o Rascunho e tantas outras, mas na mesma escala relativamente modesta de agora. São publicações de elite que mais cedo ou mais tarde talvez sejam obrigadas a migrar para a grande infovia”, completa o veterano jornalista.


Rodapé X universidade

Um marco decisivo na questão da crítica literária na imprensa brasileira foi a querela, em 1948, entre Afrânio Coutinho, oriundo da universidade, e Álvaro Lins, crítico de rodapé dos grandes jornais e apontado por Carlos Drummond de Andrade como o “imperador da crítica brasileira entre as décadas de 1940 e 1950”. O período trouxe mudanças para o jornalismo brasileiro, que começava a abandonar o modelo francês, mais interpretativo, em prol do americano, mais objetivo e dinâmico. “Desde a famosa polêmica de 1948, entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins, o teórico como especialista ganha sobre a aventura da interpretação”, comenta o crítico e acadêmico Lourival Holanda. A crítica de rodapé, que recebia esse nome por, via de regra, Divulgação ocupar a seção inferior da página do jornal, era o modelo dominante na imprensa do país até a década de 1950, e foi exercida por nomes como Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Mário de Andrade, Wilson Martins, entre outros. Marcada pela indefinição entre crônica e noticiário, pela não-especialização de seus realizadores e pelo acompanhamento do mercado editorial, era um exercício de crítica que se adaptava aos padrões industriais do jornalismo, justamente os pontos criticados pelos intelectuais das primeiras faculdades de Filosofia cariocas e paulistas, como Afrânio Coutinho, que defendiam a especialização acadêmica e classificavam a crítica de rodapé como “impressionista”. A briga entre acadêmicos e jornalistas pode vagamente lembrar o debate atual, opondo a crítica jornalística à crítica da internet, mas o jornalista e crítico Sérgio Augusto lembra que o contexto cultural é radicalmente diferente. Ele diz que os jornais dominavam, absolutos, o mercado de troca de ideias, sendo fonte de informação de todas as gerações. “A qualidade do ensino era melhor, assim como a qualidade e a quantidade de grandes críticos absorvidos pela imprensa. Não estou sendo nostálgico, estou apenas sugerindo que olhemos o presente e o futuro com outros olhos, outros parâmetros — se tencionamos de fato sobreviver com galhardia a todas as nossas perdas.”