Prosa | Samir Machado de Machado

Homens elegantes

 
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Toda viagem é uma tradução. Aquele que desembarca não é a mesma versão que parte, e sim algo novo, adaptado, uma releitura de si mesmo para um novo público, ainda que mantendo a essência. Não raro algo se perde, algo se ganha, sobrepujado pela nova versão revista e alterada. Pois que uma viagem é tanto o resultado quanto o processo: viajar é transferir, transferir é transladar, transladar é traduzir. Ele ama viajar, ele odeia viajar. Após tanto tempo cruzando o oceano, já não sabe dizer se o arrebatamento da chegada é maior do que o alívio de se ver livre da travessia. Foram dois meses no mar indo do Brasil à corte, e mais duas semanas indo da corte ao seu destino final. Nem os livros que trouxe consigo foram suficientes para afastar a melancolia. A solidão é o veneno que lhe corrói o espírito, que o torna cada vez mais cínico e indiferente, a cada ano que se soma aos seus atuais vinte e quatro. Olha em volta: ninguém está lhe dando atenção. Aproveite a oportunidade! Lança-te ao rio logo de uma vez, que falta fará? Pule agora, ninguém notará sua ausência, jamais notaram, e nunca notarão. Vamos, pule! Não há nada para impedi-lo. 
Exceto a visão daquela cidade. Santo Agostinho estava certo: quem não viaja não sai da primeira página, e por um breve instante, quase interrompeu tudo antes mesmo que começasse. Uma nova cidade é uma nova oportunidade: reinvente a si mesmo. Reconstrua. Retraduza. Anime-se, homem! Apenas os vivos podem se reinventar, e é cedo na vida para tanta melancolia! 

O Rainha de Portugal manobra sua entrada às Grandes Docas de Howland. Há mais de cinquenta naus abrigadas ali, cujos mastros de velas recolhidas oscilam ao vento como uma floresta de troncos nus. O capitão diz que ali já vira mais de cem navios atracados, numa azáfama de embarques e desembarques, uma balbúrdia de marinheiros, pescadores, aguadeiros e vendedoras de ostras a gritar por todo lado, gente e naus do mundo inteiro confluindo. Diz que, se isso acontece, é por aquela cidade ser o nó que une linhas invisíveis que se espalham por todo o globo. Que há algo em comum entre os negros levados à força da África para viver e morrer nas plantações de açúcar da América; entre os livres e cativos que se embrenham e sufocam nas Minas Gerais a lhe arrancar as joias debaixo da terra; entre os que cruzam e afundam pelo oceano atrás do óleo de baleia que ilumina as ruas das cidades; das famílias nos vinhedos do Douro, aos batalhões que sangram sob o calor sufocante do Oriente para fazer valer o comércio dos chás e dos temperos; todos os homens da Terra estão ligados um ao outro sem o saberem, fluindo como sangue pelas veias invisíveis das rotas de comércio, bombeando e fazendo pulsar a cidade que é o monstruoso coração do mundo: Londres. 

Érico Borges nunca cobiçou uma carreira diplomática. Com uma juventude dividida entre a corte e a colônia, e um trabalho como meirinho da alfândega no Rio de Janeiro, não sabia dizer bem o que ambicionava, mas sabia que era mais do que havia conseguido até então. Aquela nova oportunidade que lhe surgira, fruto do acaso, era a oportunidade de uma vida. 

Nos dias em que o navio passou fundeado no porto de Gravesenda, na entrada do Tâmisa, houve tempo o suficiente de despachar um mensageiro alertando a embaixada de sua chegada. À tarde, finda a revista do Fiscoinglês e enfim livre para descer às docas Howland, é sem surpresa que recebe aviso de que alguém o aguarda. Olha pela amurada. Ali está um homem “no chifre da moda”, como se diz no Brasil: sobrecasaca e calção de seda rosa claro, babados nos punhos, chapéu bicorne com plumas e um longo bastão de caminhada. Tal é sua elegância que Érico se constrange pela simplicidade de seus próprios trajes — veste casaca e calção preto de corte simples sem nenhum adorno, pois no Brasil o governo de Sua Majestade proíbe as sedas finas e os enfeites nas roupas, e sua passagem pela corte foi tão rápida que não lhe ocorreu comprar trajes novos. Mas aqui ninguém o conhece, aqui o mundo é novo e cheio de possibilidades, e decide que aqui irá se tornar, enfim, o homem que sempre quis ser, e não aquele que as circunstâncias lhe impuseram. A ideia de renovação o anima e o desperta. Assim são seus humores: num instante, cogitava atirar-se ao rio, no outro, tal pensamento já lhe parece absurdo e a custo contém a empolgação juvenil com a novidade. 

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É o primeiro dia do mês de outubro no ano de 1760. Doze anos atrás, a redescoberta de Pompeia e Herculano reavivou o interesse pela cultura clássica, que agora se impõe como nova moda; em Portugal, nobreza e clero se recuperam assustados da execução dos Távora e da expulsão dos jesuítas; na França, Voltaire acaba de publicar a obra pela qual será mais lembrado; no Vaticano, o papa Clemente XIII cismou com as estátuas de mármore e mandou cobrir as genitais com folhas de parreira; na Áustria, Maria Antonieta é ainda uma criança a brincar com suas bonecas — dez anos a separam ainda do dia em que provará seu primeiro macaron, e três décadas de quando será separada de sua cabeça. Por toda a Europa, philosophes divulgam ideias inconvenientes: de que não se deve aguardar a felicidade somente após a morte, mas buscá-la em vida — contanto que não seja nos campos de batalha de uma guerra ainda sem nome, mas que será lembrada por sua duração de sete anos.

A carta de apresentação que Armando recebeu na embaixada cedo naquela manhã, dando conta da chegada de um enviado de Lisboa, dizia que: a) deveriam manter segredo de sua chegada para os ingleses até decisão em contrário; e b) deveriam atender a todas assuas necessidades, gastos inclusos, para o cumprimento de sua missão. Com o embaixador fora da cidade até o dia seguinte, restou a ele, no papel de primeiro-secretário da embaixada, receber o sujeito. Mas quem é aquele recém-chegado? Numa primeira olhada não há muito o que dizer, exceto que se veste com a simplicidade básica que se atribui na corte à falta de estilo dos brasileiros. Contudo, tal é a confiança casual de seus ares, o olhar calmo e desinteressado, o corpo compacto e firme a andar com uma elegância sinuosa e gingada de pantera, que compensa em sua atitude qualquer falha em suas vestes. O rosto triangular faz a boca parecer mais larga, especialmente marcada nos cantos dos lábios dando ao seu sorriso uma seriedade grave, o cabelo moreno é cortado curto, a franja caindo sobre a testa num floreio tipográfico e a pele com o bronzeado de quem passou as últimas semanas no mar. Esperava por alguém mais velho, mas este que vem ali parece ser mais novo do que o próprio Armando (no que, tendo chegado à fronteira dos trinta, sente com amargor e arrependimento a alcunha de “jovem” afastando-se de si). Há um único detalhe particular no rapaz: desce do navio carregando uma caixa de chá em mogno, ao estilo bombé, com as iniciais E.B. gravadas em letras douradas, que segura debaixo do braço num modo protetor, como uma criança o faria com seu brinquedo favorito. O olhar tranquilo acompanha um sorriso formal, um pouco irônico, reforçado pela curvatura das sobrancelhas. Dele só sabendo o nome, é com isso que o interpela. 

— Tenente Borges, presumo? Sou o sr. Pinto, primeiro-secretário do embaixador. 

— Por favor, chamai-me Érico, responde, com um aperto de mão áspero e um pouco forte demais, que faz Armando se questionar: será descuido ou exibicionismo juvenil de força? 

— Neste caso, chamai-me Armando. Venha, um hackney nos espera, diz, referindo-se aos coches de aluguel. Olha ao redor confuso. 

— Sem criados? 

— Viajo sozinho. 

Armando ergue uma sobrancelha, surpreso. Que incomum! Suas malas? Érico aponta um único baú, que um carregador aloja no coche. Os dois entram, sentando-se de frente um para o outro. Armando puxa o relógio de bolso. São duas horas de viagem até chegarem em Westminster, e pergunta, para puxar conversa, se Érico já fizera seu câmbio. 

— Ainda não. Quanto estão valendo os nossos réis frente às libras esterlinas?


Samir Machado de Machado nasceu em Porto Alegre, em 1981. Desde 2007, organiza as antologias de contos Ficção de Polpa, dedicada à literatura de gênero. É autor da novela O professor de botânica (2008), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura, e do romance Quatro soldados (2013), que, junto de Homens elegantes, teve os direitos para o cinema adquiridos pela RT Features. O Cândido publica o fragmento inicial de Homens elegantes, a mais recente longa narrativa do autor, que a Rocco publica durante o mês de setembro