Poesia | Fabiano Calixto

POETA

para Helio Neri

O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.
Augusto dos Anjos

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Como deve ser o pôr do sol visto de uma casa bombardeada em Sarajevo? Pergunto-me nessa sala vazia, no interior da tarde caída da janela desse mundo transgênico. É uma vida sem lágrimas, tal como a choramos. O impossível do possível, como as fotografias de Manágua liberta na sépia da memória. Na noite passada, cuja forma era a de um uivo de lobo, pensei naquele lance do princípio do cinema em Nossa música: ir até a luz & apontá-la para a nossa noite. Sabemos que os álamos não bebem sangue, que a crueldade vem trajada de plumas & que as pessoas sem imaginação creem que os outros também levam uma vida medíocre. Então, ela abriu o Zero Hora & comentou comigo, assim, meio por cima, enquanto eu lia o Monodrama, que a democracia moderna pressupõe uma nova modalidade de fascismo. Neste imenso viveiro do desespero humano, nunca é demais lembrar que o fascismo vem disfarçado de progresso — & deseducação de massa = progresso do regresso — & que eram liberais todos aqueles que defenderam a entrada do fascismo no congresso italiano em 1922. “A paz não brota no jardim com câmera & sensores / Bem-vindo ao espetáculo do circo dos horrores”, canta o poeta. Aquela garota de dezessete anos, vinda do Daguestão, portando uma pistola & deixando dois olhos castanhos escapar do recesso do véu negro, explodida junto com as estruturas de concreto, plástico & aço do metrô de Moscou, levando consigo outras tantas almas, sabia que era viúva de um islâmico da república do Cáucaso, morto em 2009, & que o que o exército russo chama de operação especial é na verdade matança. Os álamos não bebem sangue. As senhoras católicas, os comunistas, os comerciantes são piedosos, mas os poetas, os hackers & aqueles que cantam sambas antigos não podem ser. Alimento continuamente meu espírito terceiro-mundista para não ser tragado pela corrente contagiosa do Velho Mundo. Ainda verei a chama do espírito latino-americano brilhar bem alto, para dar ao novo mundo que nasce o testemunho vivo do verdadeiro humanismo. Ainda hei de ver o esplendor de nossa cultura dizer bem forte o quanto tínhamos para dar, mas, infelizmente, os donos do mundo nos impediram. O possível do impossível. O poeta chama todos à função, pois o coração do rico é o ovo do inferno. A democracia entendida como governo efetivo da maioria é algo estúpido, ilógico & irrealizável, tanto quanto a brisa de outono carregar moedas a folhas secas. Enquanto as rosas menstruam em jardins monstruosos, o poeta persegue a liberdade dentre os escombros, põe a mão sobre a arca santa & solta os demônios famintos do desejo. Quebra as tábuas da velha aliança, jogando aos porcos todas as pérolas podres dos antigos, dos torpes & dos cultos. Enquanto uma multidão de párias se alimenta de tecnofilia, o poeta (pianista arrombador de cofres), tomando cerveja & jogando fubeca, sente o hálito da bomba crestar sua camisa de flanela &, coração em frangalhos, corre para testar sua alma no deserto. Nenhuma nênia em seu coquetel molotov.


Fabiano Calixto nasceu na cidade pernambucana de Garanhuns. É autor dos livros de poemas Algum, Fábrica, Um mundo só para cada par e Música possível. Vive São Paulo (SP).

Ilustrações: Diego Gerlch