Poemas | Rogério Skylab

Ruínas

Meus poemas cumprem o mesmo destino
que os de um poeta esquecido
cujos versos viraram ruínas.

E ele reconhece
o que antes era seu estilo:
buracos na superfície do texto;

lacunas; rasuras.
A ruína faz vir à tona
o que estava por dentro.


Deixa ficar

O então secretário de James Joyce, o recém-chegado de Dublin, Samuel Beckett, estava escrevendo, certo dia, o que Joyce lhe ditava do Finnegans Wake, quando alguém bateu à porta e Joyce disse “come in”. Beckett, que não ouvira a batida, escreveu “come in” como se fosse parte do que Joyce lhe ditara; um pouco depois releu a Joyce a parte até então escrita e este estranhou o “come in” ali no meio do texto, perguntando a Beckett o que era aquilo. — “É o que você ditou”, respondeu Beckett. Joyce pensou por algum tempo e, percebendo que Beckett não ouvira a batida da porta, disse: — “Deixa ficar”. E Beckett escreveu: “deixa ficar”.


Meu pai

Eu dei à luz meu pai
no final de uma noite tenebrosa
depois de longas contrações.
O rebento nasceu aos gritos.

Eu não tive dúvidas: era meu pai,
o estrangeiro sem alma.


Paul Auster

Entrou na papelaria
e procurou um caderno vermelho.

Só escrevia à mão.
Caderno novo: vida nova.

Era detetive
e me seguia os passos.
Mas não descobria nada.

Seus cadernos eram cheios de fracassos,
rasuras, pistas falsas.


Isto aqui não é um soneto

Isto aqui não é um soneto
(estamos num sítio arqueológico).
Ruína de uma forma poética
surgida na Renascença.

Forma esvaziada, de cuja estrutura
temos uma longínqua ideia.
Isto aqui não é um soneto
nem sua réplica.

Uma carcaça carcomida
que um guia turístico informa
pertencer a um antigo soneto,

exposto a visitações públicas
essa forma espúria
é retrato dos tempos.


O calor da noite fria

Nas correspondências de Kafka a Felice,
existe um poema chinês do século XVIII
que ele o transcreve assim:
“Na noite fria, absorto na leitura

de um livro, esqueci-me da hora de ir deitar.
O perfume da cama se dissipou
e minha mulher, que até então a duras penas,
dominara sua ira, apaga a luz

e me pergunta: sabe que horas são?”
Quando ela pega no sono,
eu ligo novamente o abajur

e continuo a ler as cartas
tal como Felice as lia e você me lê. 
No calor da noite fria.


O escritor moderno

um escritor sem editora
(um músico sem gravadora),
ao léu, invisível,
sobrevivendo de vento e
sem fome
— sua forma sutil

incógnito e sem nome
e sobretudo sem fome,
um escritor moderno
que resiste a escrever

e cuja dieta o fez assim:
uma sombra
do que poderia ser e não foi

um trânsfuga
exilado de si,
o que o faz percorrer
quilômetros por dia

apresento-vos essa piada:
o escritor moderno.
um pária
sem pais
e país

quase inverossímil:
não tem peso, cor, volume

deixa pouco rastro,
zomba dos que
o pesquisam em universidades
e quase não sai de casa

pouco afeito à política,
o escritor moderno não lê jornal,
não vê TV
e se escreve algo,
rasga em seguida

gosta tanto de rasurar
que a sua obra completa
é um compêndio de rasuras

quando tenta se espelhar
em alguém,
se afunda

fica então congelado
como se tivéssemos dado pausa

e quanto mais costuramos
uma imagem, 
desaparece

o escritor moderno é um poço
de águas estagnadas
e sobre o qual
só ouvimos eco


Escrita

Antes de qualquer imagem
que me faça capturado
(como se fosse possível
fugir à captura
e eu não fosse já,
neste instante que escrevo,
escravo),
escrevo o que eu não vi,
o que eu não sou,
o que eu não acho.



ROGÉRIO SKYLAB é um músico e poeta carioca. Autor do livro Debaixo das Rodas de um Automóvel (2006) e de 21 álbuns musicais, lançou no começo deste ano o disco Nas Portas do Cu — segundo volume de uma trilogia iniciada com O Rei do Cu, em 2018, e que será concluída em 2020. Apresentou o programa de entrevistas Matador de Passarinho no Canal Brasil.