Poemas | Carlos Moreira

primeira lição para estripar um homem:
estripa-se o seu nome em praça suja
sua língua na lama sua sombra na sombra
em cada passo um golpe de medo 
e no segredo que nunca houve
as larvas de milhões de segredos

segunda lição para estripar um homem:
para saber sua altura usar a régua do porco
a régua do rato a métrica do nojo
a balança do fogo: cada quilo valerá
menos que o outro e cada centímetro
um corpo a menos: a menos que o corpo
se jogue da ponte ou do porto
e poupe o inútil trabalho da vila
de matar um homem morto

terceira lição para estripar um homem:
não se estripa um homem só:
estripam-se os avós e netos
amigos silêncios e objetos
que cercam o homem a ser estripado
e tudo deverá caber no mesmo saco
um mundo inteiro reduzido 
ao suposto fato de que tudo
retornará ao nada de que foi originado

quarta lição para estripar um homem:
estripa-se a palavra do homem
o dito o não dito o interdito
naquilo que sendo fala também cala
o que o torna homem: sua palavra
de homem que agora estripada
vale nada ou menos o que a pele
diria à faca: bem-vinda, senhora
sinta-se em casa

quinta lição para estripar um homem:
após estripado lança-se tudo
no fosso do fundo do calabouço
entre outros tantos estripados
carcaças de sonhos pedaços de loucos
para que até o fim dos tempos
de nenhum corredor possa brotar
o vivo reflexo de seus olhos

sexta lição para estripar um homem:
a vila inteira deverá lavar a praça
as ruas as casas as igrejas as estradas
e a própria vila deverá mergulhar
e manchar o rio com o vermelho
que escorrer de suas roupas pálidas
e queimá-las numa fogueira imensa
e caminharem nus e em silêncio
cada um em direção à cova de sua casa

última lição para estripar um homem:
verificar com exato cuidado
se a baleia não quer vomitá-lo
se não possui uma flauta de pedra
ou uma antiga lira afiada
que faça arrepiar a terra:
neste caso foi inútil estripá-lo:
multiplicado milpartido libertado
ele rompe a corrente do tempo
e atinge maior o outro lado:
inútil o sono da vila enquanto
canta o estripado

*

jack e eu nos damos razoavelmente bem:
o suficiente para não nos matarmos:
difíceis são as noites porque jack reza muito
e seu arrependimento aparentemente sincero 
inunda o chão: é preciso levantar
no meio da noite e molhar os pés 
nos pedidos de perdão de jack: há muitas vidas
em sua vida na vida de sua navalha de aço
no gume de seu bisturi sedento: 
jack reza e geme e se arrepende
com aparente sinceridade: penso se algum dia
ele secará se ele transbordará até
a última gota se tudo de repente sairá dele
por simples cansaço desidratação da culpa
ou perdão de algum deus impaciente
que diga: chega jack: deixe os outros
dormirem em paz deixe de inundar o chão
na madrugada deixe os mortos em paz 
não os faça flutuar na barca furada
do teu pedido de perdão: a canoa do perdão
também naufraga no cotidiano: talvez então
jack se cale e nos deixe dormir em paz
sem a umidade debaixo da cama
e não como fetos que acordam cobertos
de musgo e sangue e água: mas no fundo
duvido que essa noite chegará: são muito sujas
as duas mãos de jack seu abdômen de inseto
seu olhar que pouco pisca: eu e ele
nos damos razoavelmente bem: mas não
o suficiente para que minha navalha
não durma embaixo do meu travesseiro 
a um toque da minha mão esquerda

*

o enterrado vivo está vivo: o sol
não percebeu sua falta: a noite chega
sem aviso e deita noite sobre a noite 
do enterrado vivo: é noite sempre
onde o enterrado vivo está: é sempre
noite quando o enterrado vivo é:
mesmo que cave em todas direções
estará vivo e enterrado: um tabuleiro de xadrez
nas paredes e o calendário inútil: para quem
enviar sinais de fumaça código morse cartas cifradas?
gastar seu aramaico com os vermes para quê?
enterrado vivo com seus livros para quê? 
enterrado vivo: maldito enterrado vivo: 
cravo na lapela flores ao redor a sombra acesa
de uma aliança: tudo vivo e enterrado
com o enterrado vivo: ele ainda é livre
para cantar: a música reverbera nas paredes
e no terceiro acorde já é outra música:
as palavras ricocheteando nos cantos: 
fonemas bêbados se abraçando no ar
em busca de uma língua: os vermes 
permanecem fora à espreita da morte
do enterrado vivo: reclamam da demora: 
seus pulmões reciclam o ar? seus olhos
escondiam luz em que retina falsa?
os dias passam e os vermes esperam: 
chove e os vermes esperam: é triste
a vida dos vermes: esperar a morte incerta
do enterrado vivo: o enterrado vivo vive:
vai libertando aos poucos a memória aprisionada:
a luz atravessando o quarto: a gargalhada
inundada de maresia: as portas se abrindo
e ela entrando vestida de sol: cães acompanhando
a volta para casa e logo desaparecendo:
bolinhos quentes de chuva brilhando entre
açúcar e canela: a voz livre ecoando no teatro:
o cheiro de uma mulher que se perdeu na multidão:
tudo vivo no enterrado vivo: nem alucinação
nem febre: só a pressão do ar nos tímpanos
que às vezes atravessa o hipotálamo: a palavra
hipotálamo e de repente o riso detonado
pelo falso cognato: qual o diâmetro
do hipotálamo de um hipopótamo? libélulas
têm hipotálamo? elas conseguem ver seu reflexo
enquanto colhem gotas? lesmas podem sofrer
de labirintite? ouriços da polinésia que vivem
cento e cinquenta anos têm memória da infância? 
o enterrado vivo ri: e ao saber que ri gargalha:
do lado de fora os vermes o escutam gargalhar
e se eriçam: devem ser gritos espasmos haustos 
de sufocamento ou um possível enforcamento
com a gravata lilás: depois o silêncio: os que estão
mais próximos avançam um pouco seus úmidos
passos de verme: mas não: o chão ainda vibra
ainda há calor na terra: amargurados
deitam-se em círculo e esperam: maldito
enterrado vivo: capaz que mesmo morto continue:
como saber a hora de cavar salivar devorar?
haverá corpo ou num último blefe o desgraçado
provoque combustão espontânea? mumificação?
talvez se confunda com as flores? talvez
salte direto para o estado mineral: pedra
carvão cobalto urânio radioativo: triste
e incerta a vida dos vermes: no fundo
mais profundo o enterrado vivo aflora:
nem fogo-fátuo nem fluorescência de pétalas:
de alguma forma o enterrado vivo aflora
e dança: dança por dentro no centro onde
tudo começa: e sem pressa respira e dorme
e acorda: ontem sonhou que era uma trufa negra:
os cães da antiga madrugada devem estar a caminho


CARLOS MOREIRA nasceu em 1974. É autor dos livros Tetralogia do nada, Cardume e Corpo aberto. Os poemas publicados pelo Cândido pertencem ao livro inédito Seol