Poemas | Bruna Kalil Othero
Musa
entre as árvores do jardim botânico
esses troncos que demoraram séculos & séculos
para estarem ali
acontece um milagre
há um muiraquitã
abandonado no chão
ah, isso? a recepcionista diz
é só mais um desses artesanatos
essas pedras indígenas
o sapo coacha
amuleto da sorte
você quer? custa 10 reais.
*
a vó de uma amiga se casou com 12 anos.
teve o primeiro filho com 14, e não parou nunca mais.
(de ter filhos.)
era analfabeta. não sabia ler nem escrever,
assinava com a digital do dedão.
dizia que não se pode lavar o cabelo
durante a menstruação.
apanhava flores no jardim. também apanhava
do marido.
nasceu em 1933. um ano antes,
as mulheres haviam conseguido o voto. um ano depois,
graciliano ramos publicava são bernardo.
o nome dela era
odete.
fora deste poema que ninguém vai ler,
sua história
nunca será contada.
porque é só mais uma odete
entre tantas
outras.
Deixa acontecer naturalmente
manuel não namorava porquinhos-da-índia.
pagava prostitutas.
carlos cobiçava menininhas em copacabana
permanentemente olhando pra calçada, não pro mar.
a história se lembra dos homens pelo texto.
às mulheres, o beco.
o mundo não é o que pensamos.
Ame-o ou deixe-o
I
ó, minha pátria
estamos em um relacionamento abusivo
II
eu o amo
foi ele
quem me deixou
O matriarcado de Pindorama
queimamos sutiãs
manchamos quadros de sangue
menstrual
fomos às ruas gritar
no vácuo
tarsila do amaral quando pintou-se a si
de manto vermelho
não pensava que
anos depois
viraria propaganda da boticário.
BRUNA KALIL OTHERO (Belo Horizonte, 1995) é poeta e pesquisadora, autora de Anticorpo (2017) e Poétiquase (2015). Também organizou as coletâneas A Porca Revolucionária: Ensaios Literários Sobre a Obra de Hilda Hilst (2018) e Poéticas do Devir-Mulher: Ensaios Sobre Escritoras Brasileiras (com Constância Lima Duarte e André Magri, 2019). Atualmente, cursa mestrado na UFMG. Os poemas publicados pelo Cândido fazem parte do livro inédito Oswald Pede a Tarsila que Lave Suas Cuecas, agraciado pelo Ministério da Cultura no Prêmio de Incentivo à Produção Literária — 100 anos da Semana de Arte Moderna.